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15/09/2022

Fulas, Fulanis e Outros

Estação dos comboios do Rossio, Lisboa - fotografia de Oswaldo Gago, Wikimedia Commons


Antonio Carlos Rocha

Em julho último, estávamos eu e Heloisa, minha consorte há 48 anos, passeando em Lisboa, terra que gostamos tanto.

Era domingo, e fomos para a Estação de Comboios (trens). Íamos visitar, do outro lado da cidade, na região das praias, uma família amiga desde 1980, quando moramos lá a primeira vez. A característica deste ramal ferroviário é que ele passa debaixo, pendurado em uma das pontes que embelezam a capital portuguesa, como se, por baixo da Ponte Rio-Niterói passasse uma linha de trem (sonho meu...)

Mas, eu não sabia, os trabalhadores do sistema estavam em greve. Mesmo assim as composições funcionavam com pequeno atraso. Bilheterias fechadas, os passageiros compravam os tickets nas máquinas eletrônicas.

Nos informamos para a plataforma certa e subimos as escadas rolantes. Para me certificar que estávamos no lugar indicado, perguntei a uma jovem senhora que estava com um carrinho de criança e seu filho saboreando mamadeira.

Ela respondeu que era ali mesmo, onde estávamos, e eles iriam para a mesma estação onde deveríamos saltar, inclusive, na saída precisa que os nossos amigos haviam falado e estariam nos esperando, para não nos perdemos nas saídas que são várias.

Percebi o sotaque, vi que era africana e perguntei qual o país de origem? A jovem respondeu “Guiné – Bissau”.

Eu sorri e falei: “Que bom, eu gosto muito do seu país. Em 1980 estudei aqui e na Faculdade de Letras aprendi Literaturas Africanas de Expressão Portuguesa, inclusive sobre um dos libertadores - Amílcar Cabral”.

Ela sorriu e disse: “Ele é um dos pais da República da Guiné-Bissau”.

Então completei: “E um colega brasileiro foi professor de Português lá, nesse período”.

Ficamos então enturmados e bem animados, conversando ali na Estação.

Já do outro lado da ponte, saindo do vagão agradecemos muitíssimo à nossa jovem orientadora.

Esta é uma das razões que, vez por outra, publico no Facebook fatos diversos sobre os países de africanos de Língua Portuguesa. Através da arte literária, mais ou menos, acompanhei e acompanho o crescimento de tais jovens nações.

Explico o título, uma das etnias da Guiné-Bissau são os Fulas, ou Fulanis. Aqui no Brasil, popularmente, uma das gírias é “Eu fico fulo(a) da vida” para designar alguém que está zangado, impaciente ou com raiva. Esse é um bom assunto para a Etnolinguística.

A beleza de estudarmos tais países é que as culturas plurais mostram uma multiplicidade de aspectos no falar, no escrever, na música, dança, vestuário, artes em geral e os modismos atuais.

Mas, nem tudo são flores... Estas reflexões me vem à mente, pois, recentemente, na Rua Senador Dantas, em pleno centro do Rio de Janeiro vi uma adolescente, moradora de rua e seu filho recém-nascido. O menino chama-se Manuel, sempre que os vejo, colaboro financeiramente mediante as minhas possibilidades. Não posso fazer muito, mas é uma forma de ajudar.

Manuel vem do antigo hebraico e quer dizer “Deus conosco”, lembro de Jesus, claro... “O que fizerdes a um destes pequeninos, estareis fazendo por mim”. Não estou me vangloriando. E como diz o verbo, é uma “vã glória” ficar citando temas aparentemente caritativos... não é isso, por favor, entendam.

Refleti no menino lisboeta e sua mãe da Guiné-Bissau. Imigrantes com o apoio do governo lusitano: tem uma casa, trabalho, moram bem. A criança portuguesa terá escola garantida, assistência médica e afins.

Já o Manuel e sua mãe, torço para que mais pessoas os ajudem e que apareça no Brasil, um sistema político ético, honrado que legisle para os mais pobres também, sem pieguice e sem falsas promessas.

Segundo a canção antiga: “Sonho meu ...”

 

07/09/2022

Objetividade e a lógica lusa – segunda parte

Fotografia Carlos Monteiro

    

Carlos Monteiro

(continuação...)

Contei-lhe uma história deliciosa, relatada por Mário Prata em seu “Schifaizfavoire” – Dicionário de Português, pela Editora Planeta, dando conta que essas ‘confusões’ linguísticas salvaram-lhe a vida. Quando estava muito mal, internado em estado grave, com transfusões de sangue e bolsas e mais bolsas de soro, que chamava carinhosamente de vinho branco e tinto, sentia que iria sucumbir tal era sua fraqueza... eis que surge uma enfermeira adentrando ao quarto do quase moribundo, que mais parecia um sepulcro e solta um tonitruante alívio verbal:

— Ó seu Prata, trago a pica das quatro, vai ao braço ou ao cu? Mesmo sem forças para aprazer-se, gargalhou. Salvou-lhe não o Rum Creosotado, mas a eficácia da senhora, prova cabal que rir é o melhor remédio.

Dicas dadas, informações relatadas, contatos passados, dias depois, ligo para saber como andavam os preparos àquela altura. Encontrei o amigo aparvalhado de indignação. Ao tentar reservar os hotéis para estada, só os encontrava com o pequeno almoço. Como assim? Não ficaria para refeição. Por que pagar por algo que não consumiria? Explique-lhe que era apenas o café da manhã. Naquele momento me dei conta das dificuldades que teria com hábitos, com a objetividade lógica portuguesa e, pasmem, com a língua.

 

Fotografia Carlos Monteiro

Viagem feita, chegada à Portocale, felicidade só, em plena primavera lisboeta, quiçá uma quimera. À Ribeira para encostar a cabeça, doce e macia almofada do Tejo. Pura poesia e logo uma indignação. Fumante inveterado logo foi atrás de tabaco, fumos diários. Ao pé do balcão da Tabacaria Mónaco a fatídica pergunta:

— Tem Marlboro? O atendente, com aquela cara de pasmo, olha para o meu amigo como se ele fosse papalvo e responde com um certo grau de deboche:

— Temos! Meu amigo achando que estava no Rio, onde o balconista, no máximo, perguntaria se de caixa ou maço e a versão já buscando-a na prateleira, ficou lá parado aguardando. Mais uma vez: — Tem Marlboro aqui? Já completamente indignado o vendedor trava com ele o seguinte diálogo:

— Ó pá, anda cá; não tens o que fazer? Achas que estou a brincar? Entras numa tabacaria para ficar a perguntar se temos tabacos de marca, o que estás a pensar? É o que estás a fazer gajo, anda-te daqui já. Pondo-no-lo para fora do estabelecimento.

— Ó pá, anda cá; não tens o que fazer? Achas que estou a brincar? Entras numa tabacaria para ficar a perguntar se temos tabacos de marca, o que estás a pensar? É o que estás a fazer gajo, anda-te daqui já. Pondo-no-lo para fora do estabelecimento.

O português, de um modo geral, é objetivo ao responder o que é inquirido. Em outra passagem, meu caro amigo pergunta à concierge do hotel:

— Como chego ao Castelo de São Jorge?

— Apanhas um táxi à porta e indicas d’onde queres ir.

— Mas eu quero ir a pé...

— O senhor não apontou tal detalhe.

Indicações feitas, Sol causticante, meu amigo e a família chegam ao destino que se encontrava fechado. Às tintas, volta e cobra do atendente o fato com indignação plena. A resposta veio de bate-pronto:

— O senhor me perguntou como se chegava lá, não me questionou se estava ou não a funcionar!

Errado não está!

 

Fotografia Carlos Monteiro

Esta crônica é uma homenagem a Carlos do Carmo.

“...Lisboa no meu amor, deitada/Cidade por minhas mãos despida/Lisboa menina e moça, amada/Cidade mulher da minha vida...”


11/08/2022

As imagens da fé

 

Fotografia - Vera Godoy

Leida Reis*

A fotógrafa Vera Godoi poetiza com imagens um tema sagrado de sua aldeia, daquelas que retratam o mundo. Durante longos anos, a mineira dividiu seu tempo entre o trabalho em redação de jornal e os registros das festas e encontros da Guarda de Moçambique Nossa Senhora do Rosário do Bairro Alto dos Pinheiros, em Belo Horizonte. O resultado é um livro, (Guarda de Moçambique Nossa Senhora do Rosário do Bairro Alto de Pinheiros) lançado neste dia 5 de agosto, com recursos da Lei de Incentivo à Cultura de Belo Horizonte, editado pela Páginas Editora.

Os ‘congadeiros’ estão espalhados nas páginas e suas cores são de dias de festa. As celebrações de coroação, as cantigas, a comida, as viagens, as bênçãos, os costumes que passam de pais para filhos só poderiam produzir um livro com energia tão alta quanto a fé do povo da Guarda de Moçambique. Belas fotos também na “troca de moeda”, quando as visitas são mútuas, e nas idas a Aparecida do Norte (SP), quando fica clara a vinculação do reinado à igreja católica. “Quando dois Rosários se encontram, une-se o céu e a terra, um só povo, um só coração, soa tambor, canta tambores”, diz o Capitão Geraldinho.

Vera Godoi já estava realizada com a fotografia, a arte que escolheu para sua vida, e agora se regozija com o livro, que será distribuído gratuitamente aos membros do Congado no lançamento. Ela quis, e conseguiu, eternizar em fotos a cultura de um povo no espaço urbano de uma capital de dois milhões e meio de habitantes. Afinal, desde os nove anos tem contato com essa cultura do povo preto, pela qual se apaixonou.

Os 14 ritos da Guarda de Moçambique do Bairro Alto dos Pinheiros ficam agora, no foto-livro, para sempre retratados, e uma cultura oral e familiar passa a ter um registro físico. Dentre tantos livros publicados para contar os costumes do povo brasileiro, este é mais um a fazer sentido na eternização da memória brasileira.

 

Fotografia - Vera Godoy

Falando em foto-livro, a Páginas Editora acaba de lançar o Prêmio de Fotografia “Das Minas às Gerais, pelo olhar do seu povo”, para tanto premiar quanto produzir um foto-livro revelando as belezas naturais e culturais do Estado. As inscrições, para profissionais e amadores, estão abertas no site       

www.paginaseditora.com.br/premiodefotografia.

Viva o livro e salve a fotografia, a escrita pela imagem. 

 *Leida Reis é escritora com oito livros publicados, jornalista e fundadora da Páginas Editora – leida@paginaseditora.com.br

O post foi enviado pelo Carlos Monteiro

02/08/2022

Objetividade e a lógica lusa (primeira parte)

 

Fotografia - Carlos Monteiro

Carlos Monteiro

Dia desses conversava com um amigo que me relatava momentos engraçados e histórias vividas, absolutamente curiosas. Lembramos de sua primeira viagem a minha amada Portugal. Trago nas veias o sangue português com muito orgulho. Sabedor do carinho e da relação afetiva que tenho com o país além-mar, pediu-me referências e dicas de locais imperdíveis, comidas imprescindíveis e vistas incríveis para alvoreceres, entardeceres, cartões-postais registrados de forma autoral.

 

Fotografia - Carlos Monteiro

Debulhei um rosário de informações como se estivesse rezando o terço na Sé de Braga. Tascas, imperial, bica, fixe e gira, frigorífico, casas de fado, castelos, ascensores, eléctricos, Lavra, Glória, Bica, a Baixa, o Alto, Santa Justa, Santa Maria Maior a Mouraria, Chiado, Alfama, o 28, o 15, freguesias, Pastéis de Belém, Confeitaria São Nicolau, passadeiras, pastelarias, Casa Brasileira, telemóveis, Pombalinas, Convento do Carmo, Cais do Sodré, Torre de Belém, da Gare do Oriente, obra de Calatrava, do Arco da Augusta, calceteiros, Jardim das Pichas Murchas, Azinhaga da Bruxa, Alentejo, Algarvias praias, Matosinhos, Mindelo, Leça da Palmeira, Alfacinhas e Tripeiros, Amoreira, Évora, Porto, a história da Inês de Castro, São Jorge, a Vicentina, Tunas, Florbela, Camões, Ruy Guerra, Saramago, Café Magestic, Pessoa, a Bertrand, a diferença entre facto e fato, que a francesinha é um sandes típico do porto.

 

Fotografia - Carlos Monteiro

Falei do Teatro Nacional Dona Maria II, na Praça Pedro IV – Praça do Rossio, da Adega Machado e do Café Luso, da  Severa, da Amália, do Xutos & Pontapés, do Filho da Mãe, do Abrunhosa – gravado por Bethânia, “Quem Me Leva os Meus Fantasmas”, “...e a ursa maior eram ferros acesos...” -, Carminho, Zambujo, Ana Moura e Mariza, dos “Olhos Castanhos”, da “Casa Portuguesa”, da “Gaivota”, da “Mãe Preta”, de Piratini e Caco Velho, compositores brasileiros que em terra lusa, censurada pela PIDE do regime Salazarista – foi considerada subversiva por expor a triste realidade de seres humanos escravizados -, se tornou “Barco Negro”. Gravada inicialmente por Maria da Conceição, fez sucesso na voz de Amália em 1955, para a trilha do filme “Os Amantes do Tejo”, com toda a letra alterada, adaptação de um poema de David Mourão-Ferreira. Em 1978 a fadista se redimiu e gravou a versão original. “...Enquanto a chibata batia no seu amor/Mãe Preta embalava o filho branco do sinhô...”.

Claro, não poderia perder a oportunidade de ensinar algumas bobagens. Nunca se deve dizer que vive a fazer freelas (bicos) ou broches, que paneleiros não são profissionais na arte da latoaria, que entrar no rabo da bicha não tem o mesmo significado do Brasil, que há uma diferença crucial entre o bombeiro e picheleiro, entre o banheiro e a casa de banhos. Falei do duche, do autoclismo, da retrete e da sanita. Indiquei como se dirigir a um empregado de mesas, se me faz favor. Que pedir um gelado não é entrar numa fria. Que miúdos são crianças assim como os putos e que rapariga é uma moçoila. A canalhada é um grupo de putos a fazer algazarra. Do breque e dos travões, da porra recheada que é porreiro, das punhetas de bacalhau, da sopa de grelos, do cacete e da pastilha elástica. Caralho e caralhinhos não são pejorativos, e estar cheio de pica é um bom negócio. Cuidado com a rata crica.

(continua...)

12/06/2022

Cinzas, cinis, gris, gray...

Fotografia Carlos Monteiro


Carlos Monteiro

Na escala grey da Kodak® não passam de onze. Na obra de E. L. James são cinquenta, na escala Pantone®, uma infinidade, quase, incontável. Vai do 7653 C ao Cool Gray 11 C, passando pelo 409 C. Uma lindeza.

Temos ainda as réguas de impressão, escalas de tintas para arquitetura, pastas para silkscreen, linhas para bordados, crochês e tricô. Uma infinidade de nuances nesta mistura encantadora entre o ébano e o marfim, como as teclas do piano que se fundem em tons musicados. Afinal o cinza é uma cor chique. Na arquitetura, na arte ou na fotografia preto & branco ele romantiza.

É também uma cor estigmatizada; talvez por não fazer parte do ‘Disco de Newton’ ou do arco-íris. É quase uma cor considerada, do ponto de vista preconceituoso, é claro, purgatório.

As meninas não podiam usá-lo lá nos idos dos anos 1960, pois, segundo suas mães e avós, era uma cor para francesas lindíssimas. Com o que, humildemente, não concordo. Como esteta que sou – vem da fotografia, muitos olhos azuis deixaram de embelezá-lo (o cinza), por puro preconceito à cor. Muitas meninas lindas deixaram de desfilá-lo nas calçadas de Ipanema, Copacabana, da Rio Branco ou da Ouvidor. Quantas não foram ao chá das cinco da ‘Confeitaria Colombo’, acompanhados dos deliciosos leques ou casadinhos, na ‘Confeitaria Manon’, com os verdadeiros madrilenhos, na ‘Casa Cavè’ com as almofadas, mil-folhas e Dom Rodrigos e, finalmente, no ‘Cirandinha’ com os deliciosos waffles. Quantos metros de organza, tafetá e crepes deixaram de ser vendidos pela ‘Notre Dame de Paris’, ‘Casa Assuf’, ‘A Imperatriz das Sedas’ ou pela ‘Kalil M. Gebara’? Quantas estilistas deixaram de copiar os moldes encartados na ‘Manequim’, simplesmente porque a cor sugerida era cinza? E os ‘Courrèges’ que deixaram de ser copiados...? Puro estigma, ou quem sabe, astigmatismo.

Fotografia Carlos Monteiro


Os dias têm amanhecido (em tons) cinzas, talvez as cinzas chegadas das dores sem fim, talvez o nublado de mentes apequenadas, que não conseguem perceber o significado da palavra, ou mesmo, do sentimento, amor, paixão, tesão, entrega; sejam elas em qualquer esfera. Mentes equivocadas que deixam escorrer por entre os dedos suas melhores oportunidades em troca das cinzas provocadas e, claudicadas, pela fogueira das vaidades, eternos perdedores encimados em seus pequenos e voláteis “podres poderes”.

Meu santo Pai sempre disse uma coisa interessante: “quando escrever, saiba ser sutil, ao ponto de que vistam a carapuça àqueles a quem não foi endereçado o texto”. Tinha absoluta razão.

Mas há, ainda bem, o Phenix que ressurge das cinzas... borralha... Cedo ou tarde, apesar de se pôr, o Sol brilhará amanhã.

Fotografia Carlos Monteiro


 

07/06/2022

Gentileza gera mais amor por favor

Fotografia Carlos Monteiro

 

Carlos Monteiro

O Profeta Gentileza e sua delicadeza em flores astrais, físicas e espirituais, distribuídas e semeadas, ao longo de anos, pela Cidade Maravilhosa e em terras de Araribóia, foi telúrico, metafórico e visceral. Mostrou ao Rio de Janeiro que, se quisermos “Celacanto não provoca maremoto”, não provoca sismos, não provoca guerras. Muito pelo contrário, a gentileza é agente provocadora de paz e gratidão... era José Agradecido e enobrecido, pura ternura.

Vivemos um momento conturbado em que o coletivo tem tomado muito mais as formas ‘eu’ e ‘meu’, em que as almas têm se trancado em feudos, murados de egos, aflorados em ids, desequilibrados em superegos. Momentos de um ‘venha a nós, deixando ao vosso reino absolutamente nada’. Encimamentos e egocentrismos, os ególatras estão à postos! Afasta-nos desses ó Pai!

Fotografia Carlos Monteiro


Ímpar em sua singularidade, o “eu maior” rege esse império, mesmo que esta monarquia seja protegida por exércitos brancaleônicos fardados em utopias e quimeras. Farrapos existenciais de idolatrias soberbas.

As chamas das fogueiras da vaidade, mais que nunca, são lume do egoísmo, atiçadas pelo mal querer, pelo mal poder e, principalmente, pela má vontade. Vidas já não importam nas câmaras de gás das viaturas. Basta!

Os tentáculos ardilosos da veleidade, fazem imergir ufanismos perversos capazes de afastar, sobremaneira, o que há de melhor em cada um. Apaga o logos. Retém o ódio arraigado.

Aforismos. O amor deve ser pago com amor? Gentileza gera gentileza? Nome-do-pai...? Adágios de realidade em sociedade. Mero apotegma existencial.

Dias difíceis em que a solicitude e prestatividade ficaram em baixa. O lugar comum, “novo normal” suscitou sentimentos divergentes, pintou cenários plúmbeos, deixou a psique à deriva. Generosidade não é mais a palavra de ordem... Talvez Freud explique, quem sabe? Ou não...

A velha esperança de tudo se ajeitar deve brotar no amor sublime e na partição do pão nosso de cada dia.

Fotografia Carlos Monteiro


Por mais tapumes Lerfá-Mur em chão de giz! Por mais ‘Gentilezas’, por mais rosas vermelhas do bem-querer, por mais loucos de amor e malucos-beleza.

Que brotem sementes, frutificando todo sentimento nas metáforas mais sutis e belas, delicadas e deferentes. É dia, eu já escuto os teus sinais. É a bruma leve. Zéfiro em lufadas, límpido páramo. Solidários, serenos, sagrados, sinceros, sóbrios, salutares. Deixa fluir o amor e o sal da Terra! Seremos um Planeta-amor.

 

Fotografia Carlos Monteiro


 

19/05/2022

Tenho andado meio desligado

 

Fotografia Carlos Monteiro

Carlos Monteiro

Andava eu, distraidamente pela cidade, observando novos ângulos para fotografar. Absorto em detalhes, luzes, quinas e esquinas, levava a mochila, com os equipamentos inerentes a tal tarefa, à frente do corpo como maneira de proteção ao equipamento e rapidez ao buscar a câmera. Confesso, é um peso considerável, mas nada que os dias e dias de academia não possam dar conta.

E lá ia eu, um clique ali, outro lá, um outro, ainda, acolá... aliás, que advérbio bonito esse, junto com libélula, apontada por Aurélio Buarque de Holanda, na minha opinião, é uma das palavras mais sonoras da Língua Portuguesa. Via-me com Rubem Braga ‘perseguindo’ a “Borboleta Amarela”, tal qual era minha plenitude em conseguir enxergar novas perspectivas da cidade, novos vértices, aparar as arestas através das lentes.

No meio do caminho não havia uma pedra drummoniana, mas vários buracos, crateras lunares insepultas, cujo alcaide teima em não as ver, muito menos em consertá-las. E agora burgomestre o que será de nós se cairmos nesses buracos negros? Levarão a outra dimensão? Continuava eu, visão aguilar, pensamentos perdidos em ilusão metropolitana sueca. Dado momento, minha catarse, onde expurgava os problemas da Cidade e vislumbrava a minha panapaná, sou interrompido por um sonoro “psiu” e vários “eis”. Achei que não era comigo, talvez fosse o chamamento a algum transeunte não tão distraído, quem sabe, até um paquerador machista, em galanteios inversos, à dama que, transeunte apressada, transpunha a passadeira do sinal.

Com a intensividade e aproximação sonora e afincada, pus-me a, displicentemente, dirigir o olhar para onde partiam as tais notas, quase musicais, cadentes e silentes que eram, quase um mantra, entremeadas de ‘psius’, ‘eis’, ‘ois’ e ‘aís’. Maviosas poderiam ser, sem dúvida, uma das maravilhosas músicas, saídas das carrapetas dos DJs do Baile Charm de Madureira. Não eram, mas o chamamento era comigo, era para mim, era meu. Vinham de uma jovem franzina, seus trinta e pouquíssimos anos, claramente deficiente intelectual. Olhar perdido, sorriso largo, lhe faltavam alguns dentes. Parei para lhe dar atenção como sempre faço. São personagens riquíssimos, contam histórias de vida inimagináveis, são os tais invisíveis que, infelizmente, a sociedade não quer enxergar.

 

Fotografia Carlos Monteiro

Nem tive tempo de cumprimentá-la; antes do meu boa-tarde veio um sonoro “ajeita essa postura homem!!!”, com uns quinze pontos de exclamação, tal foi a enfática que usou e, no mesmo pé que veio, se foi em meio ao caos dos viandantes da megalópole. Fiquei ali, parado e pregado na pedra de Drummond. Então era isso; uma deficiente intelectual me mostrando o quanto eu estava desprovido de sensatez. Aprumei o corpo, empinei o peito, estufando-o tal qual galo de briga e segui meu caminho pensativo cantarolando “Balada do louco” de Lóki e “Balada para um loco” de Astor Piazzolla.

“Cuándo, de repente, detras de un árbol, me aparezco yo...

Por la ribera de tu sábana vendré

Con un poema y un trombón

A desvelarte el corazón...”

A razão tem razões que ela própria desconhece.

Fotografia Carlos Monteiro


 

26/04/2022

Uma noite pra se guardar no lado esquerdo do peito

Desenho a nanquim - Ana Nunes

 

Ana Nunes

A noite era cálida no alto da rua íngreme. Cálida e tranquila, macia. 
E a rua tão íngreme que me fez pensar em castelo. Mas era um castelo!    
Cheio de sorrisos, as pessoas no seus melhores panos e cores, saudosas de verem e serem vistas!       
Tinha um pequeno príncipe com sua espada mágica e seus óculos azuis para ver melhor. E uma princesa saída da concha de Botticelli que me mostrava a casa e contava do seu cantinho do pensar e acalmar, a parte mais linda do castelo.     
E os donos do castelo? Lindos e acolhedores. Imperdíveis!

E a noite foi nos levando para uma mesa comprida, toda de toalha branca e sousplats verdes azuis, nem sei mais de tanta beleza. Tinha flores, com certeza, e copos bojudos cheios de promessas. Promessas de cores mais lindas que minhas aquarelas. Tinha claro dourado, rosas claros e escuros, e o mais denso vermelho escuro. Cada um ao seu tempo e cuidados.

O chef, e que chef, que nariz de linhas mais puras! Reinava e brilhava no seu reino encantado com apenas uma frigideirona preta e um caldeirão misterioso! Tão misterioso, dei uma olhada nele sem o chef ver, que pensei na poção mágica do Asterix. E era verdade, gente! Dali saíram coisas impensáveis. Tudo meio mágico, chef, fogão e panelas.

Primeiro uma delícia de batata doce, fatias finíssimas grudadinhas num rastro verde de molho pesto. Não gosto de dizer isso, porque tenho artrite, mas era de se comer de joelhos.
Depois bruschetta, de nome sensual, de porcini e tomate cereja, maravilha do paladar, crocante nos dentes gulosos!       
E dá-lhe vinhos coloridos nas mais altas notas musicais.  
E o risoto gente, que entre sabores divinos de amêndoas e crocante de queijo, deixava a uva estalar no céu da boca como um orgasmo inesperado!         
Lombinho saltimbocca , lindo esse nome para essa carne preciosa! E ainda tinha um peixe exclusivo para a convidada natureba. Que metideza!!! Caramba!        
E por fim, para nos levar ao céu e nos deixar lá, um tiramisu que tirou esse nome de todos que já provei. Tiramisu agora só o do chef! Do nosso chef.

Pensava eu na minha simplicidade que a Festa de Babette acontecia só no imaginário do cinema. Mas vi, eu mesma, as mesmas bochechas coradinhas de prazer e os olhares de gula e culpa! E a volta inebriada para casa.

Esqueci de contar que os pratos eram trazidos um a um daquele antro de sabores pelos donos do castelo e a filhota princesa. E a cada prato a explicação do chef. Nem Atala fez melhor! Porque esse deguste deslumbrante foi entre amici e informalidades, com a gente invadindo a cozinha e bisbilhotando o cozinheiro e seus ingredientes mágicos, seus segredos e sua intimidade.

E assim foi nossa Cena per amici, uma cena inesquecível de generosidade e beleza.     
Gratidão. A palavra que me sobra.    

12/03/2022

O homem que alimenta e encanta pardais

 

Todas as fotografias, de Carlos Monteiro

Carlos Monteiro

Foi numa manhã veraneada, onde o Sol não deu muito as caras, mas fez bonito por entre as nuvens, em mais um amanhecer numa empoeirada e calorenta Brasília - capital do país -, por falta de chuvas que já acumulavam ausência por tantos quinze dias, em janeiro de 2019, que percebi o São Francisco de BSB.

Encontrávamo-nos tomando café da manhã numa daquelas padarias tradicionalmente deleitosas, assiduamente frequentada por ele, aquela em que todos te dão bom-dia te chamando pelo nome e conhecem os seus gostos especiais, ali na SQN, após uma sessão de fotos da alvorada brasiliense. Havíamos chegado, ainda na madrugada, no Congresso Nacional, para registramos os primeiros sinais do Astro-Rei junto às metades abobadadas sonhadas e realizadas por Oscar Niemeyer, de quem o Britinho, como é chamado carinhosamente pelos mais chegados ou Orlando Brito, como são assinados seus trabalhos, é fã incondicional. 


Aboletados, confortavelmente, em cadeiras na área externa vermelho-alaranjadas, acompanhadas por mesas fazendo par de jarras, ricamente adornadas por porta-guardanapos em verde-neon, oferecimento da marca de goma de mascar Trident, papeávamos sobre amenidades, política, que ele conhece como ninguém. Estava na Capital Federal em sua inauguração ainda menino. Cobriu, praticamente, todas as posses presidenciais por lá; foram muitas, catorze ao todo, inclusive durante a ditadura militar, de Costa e Silva a Bolsonaro.

Estávamos preparando o roteiro de visitas a alguns pontos turísticos e a ida até o Vale do Amanhecer, na cidade de Planaltina em Goiás, que abriga a Doutrina do Amanhecer, religião espiritualista cristã, para registrar uma ‘função’. Lá conheceu, pessoalmente, Tia Neiva, sua fundadora, trazida, alegadamente, pelo espírito de São Francisco de Assis - nada é por acaso –, reverenciado nesta doutrina como ‘Pai Seta Branca’, no ano que este, que vos escreve, nascia - 1959 e mantém amizades sinceras com os assessores de imprensa e frequentadores.

Após pedirmos a tradicional média, em copos americanos, com pão na chapa – ele optou pelo café puro coado como bom mineiro de Janaúba que é -, migalhas do pão torrado, deliciosamente ‘confeitado’ por generosa camada de manteiga das Gerais, começaram a se desprender daquela guloseima de encher os olhos de qualquer gourmet. Eram pequenas, porém gigantescas para os pardais que começaram a cercá-lo. Como um ‘santo’ Brito começou a alimentá-los e a cada momento mais vinham e o cingiam à pequena distância. Havia um diálogo mental, uma troca de gestos, piados, olhares. Pairava no ar uma enorme sinergia, algo absolutamente astral em momento telúrico. Estávamos assistindo a um espetáculo sem par com exclusividade como são as imagens que produz. Quanto mais se aproximavam, os passarinhos, mais, propositadamente, era esfarelado o pão, trigo renovador da natureza, alimento energético com doses lautas e borbotoantes de amor e carinho. 


Brito está e estará infinitamente vivo em meu coração, em nossos longos diálogos às sextas à tarde e no almoço dos sábados no Piantella, em suas incríveis histórias de jornadas fotográficas pelos rincões desta imensa Terra Brasilis, na grandiosa vivência, em setenta e dois anos, de existência terrena. Da sua ‘implicância’ para que ficássemos sempre em sua casa, onde cedia a suíte, por si habitada, em nossas estadas na Capital, e das ‘brigas homéricas’ se assim não o fizéssemos.

Das narrativas acerca do trabalho magnânimo de Lúcio Costa, Burle Marx, Athos Bulcão e, o seu preferido, Niemeyer. Das citações e contribuições de Juscelino Kubitschek para a grandiosidade deste país-continente, do ‘círculo de fé’ do Templo da Boa Vontade e da incrível foto junto ao anjo nos vitrais, ângulo perfeito descoberto por ele, da visita ao Mosteiro Budista e o retine do címbalo em horas exatas que ele guardava de cor e salteado, da Capela a Nossa Senhora de Fátima pérola alada, da pirâmide em homenagem a Dom Bosco, das ‘cobranças’ de minhas crônicas para seu portal, “Os Divergentes”, do carinho e cuidado que tinha para sugerir alguma correção em alguma imagem ou texto.

Brasília não é mais a mesma sem vê-lo de Sol a Sol, segunda a segunda na lida fotográfica, nenhuma coletiva terá o mesmo sabor. O Brasil não é mais o mesmo sem as suas imagens grandiosas, quer sejam documental, política, indígena ou de paisagens paradisíacas.

Britinho é daqueles seres humanos tão únicos que O Criador dispensou a fôrma e só Ele tem a fórmula, guardada a sete chaves, cujo fiel depositário é São Pedro. Em paráfrase da querida fotógrafa Marlene Bergamo: “Brito e Dida (recém-falecido) devem estar agora planejando como fotografar Deus e dar um furo intergaláctico. Vocês fazer falta por aqui, meninos.” Nada traduz melhor estes sagazes rapazes latino-americanos.

Orlando Brito: o ser humano que alimenta e encanta pardais, como São Francisco de Assis, no Planalto Central. O Poeta da Luz que escreve com suas Leicas a história deste país. O amigo incondicional que gargalhou inúmeras vezes conosco e nós com ele. Brito: sinônimo de fulgor e paz! 


 

01/02/2022

A princesa e a torre

 



Ana Nunes

Parece conto de fadas
Mas não é. 
Parece Rapunzel        
Mas não é. 
Parece princesa presa na torre  
De marfim
A reluzir em ouro       
Mas não é. 
Não é Rapunzel das tranças        
Porque seus quase nada cabelos
Nas cores acaju 
Ganharam peruquinha na cor    
Para compor o rosto  
E completar o resto   
Por que não é princesa       
Nem fada.  
É velhinha, velhinha  
Feinha, feinha.   
Presa na torre   
Que não é torre 
Nem tem marfim        
Nem reluz a ouro.      
Fica no alto da escada gasta        
Exaustiva no subir da idade       
Sem floresta nem nada       
Nem vista da cidade. 
Só árvore com maritacas   
E minúsculas flores brancas       
Que perfumam a noite solitária.
Não tem príncipe       
Nem cavalo branco.   
Lá no alto  
A colocaram, a velhinha     
E trancaram a porta  
E levaram a chave.     
Ela perdeu tudo, a velhinha        
Perdeu suas caminhadas de legumes 
Perdeu seu caminho para a igreja.      
Sobrou o fogão e seus aromas    
E cresceu-lhe a barriguinha        
De birra sem caminhada.   
Mais nada.
Velhinha, velhinha     
Pela janela não vê floresta 
Nem príncipe     
Nem cavalo branco.   
Nem lembra o passado       
Porque traz estórias  
De bêbado de doido   
De fugido e de histérica.     
Nem sonha com futuro       
Porque não lhe traz nada.  
Só pensamentos obscuros.
Triste pobre velhinha
Que no fim
A vida só lhe trouxe idade.