-----------------------------------------------------------------------------------------------------------------

29/01/2019

Os afrescos de Sigiriya

fotografia Schnobby (Wikipedia)

 Moacir Pimentel
Entre todas as maravilhas de Sigiriya a mais impressionante é mesmo a coleção de afrescos. As pinturas já dominaram a maior parte da face ocidental da rocha, uma área de cento e quarenta metros de comprimento e quarenta metros de altura. No entanto, a maioria delas se perdeu para sempre sob os maus tratos da natureza, fustigadas pelo sol e a chuva e o vento.
A gente fica ali maravilhado imaginando essa parede imensa quase inteiramente coberta pelas pinturas de mais de quinhentas mulheres seminuas há mil e seiscentos anos. Deve ter sido uma visão maravilhosa. Com certeza os afrescos eróticos de Sigiriya - como uma enorme tapeçaria colorida que se desenrolava ao redor da rocha - já foram o destaque maior da fortaleza, talvez a característica mais bela da sua visão impressionante. A gente olha e olha de novo e não tem como não perguntar:
Mas, pelamordedeus, como foram pintados esses afrescos?
Dizem os doutos que dezenas de milhares de pedaços de bambu foram transportados para o local e amarrados com cordas feitas de fibra de coco para formar uma enorme rede que se estendia desde a base da rocha até o cume. Não havia quaisquer escadas nem andaimes e muito menos a mínima segurança.
Eu lembro de olhar para o paredão e de tentar imaginar os pedreiros trabalhando a face da rocha, cinzelando a sua superfície e criando uma borda para impedir que a água fluísse pela curvatura natural da pedra sobre a área onde os afrescos seriam pintados. E, em seguida, um exército de rebocadores limpando a superfície e sobre ela aplicando camadas sucessivas de gesso. E finalmente os artistas pintando sobre o gesso enquanto ainda estava molhado usando pigmentos vegetais.
Todos eles pendurados! Impressionante! Os afrescos de Sigiriya, como todos os verdadeiros afrescos, foram pintados rapidamente porque a tinta é imediatamente sugada pelo gesso. Como consequência, é quase impossível apagar um erro na pintura. E as de Sigiriya têm um grande número de falhas.
Pudera! Aqueles afrescos foram pintados por pintores empoleirados e/ou pendurados em frágeis andaimes de bambu. Acredite, ali eu não seria capaz de pintar nem uma casinha torta! Os dedos faltando e os braços estranhamente curtos das damas na pedra ou quaisquer outras falhas são desimportantes. Ademais as belas mulheres foram pensadas para serem admiradas de uma distância razoável e defeitos menores nas pinturas não seriam visíveis.
Também é importante ter em mente que os afrescos que sobreviveram moram em uma pequena reentrância na rocha e ocupavam apenas uma posição menor na tapeçaria maciça que um dia já revestiu o paredão. Portanto eles podem ter recebido menos atenção artística do que outros afrescos maiores, exibidos de forma mais proeminente, exatamente por essa razão se perderam no tempo.
É triste pensar que ao longo dos anos a maioria das pinturas foi apagada da face da rocha e que só dezenove entre quinhentas senhoras conseguiram chegar até os nossos tempos. Mas o pouco que restou é mais do que suficiente para que se possa imaginar a beleza que a rocha deve exibido tanto tempo faz.
A técnica e o estilo das pinturas de Sigiriya diferem completamente daqueles de outros afrescos, entre eles os de Anuradhapura. É única e fabulosa a volumetria das figuras obtida apenas através dos traços e da variação dos tons das cores. Uma visão inesquecível.
fotografias Jerzy Strzelecki (Wikipedia)

Mas uma vez a gente fica matutando quem foi aquela gente ociosa e civilizada e rica o bastante para se permitir um projeto de arte de tal envergadura? E, mais importante ainda, quem eram aquelas mulheres de seios de fora? No quinto século do primeiro milênio e na pintura ocidental nem as deusas se atreveram a tanto!
Não se conhece a identidade das senhoras nessas pinturas. A maioria dos especialistas acredita que as damas do rei - tanto esposas quanto concubinas - teriam sido retratadas enquanto outros pensam que as figuras são sacerdotisas participando de cerimônias religiosas.
Todas têm grandes seios nus, cinturas finas e corpos sinuosos, pouca roupa e mesmo assim de tecidos transparentes, olhos largos e estão ricamente adornadas por joias e flores. Protegidas das intempéries pela indentação natural da pedra as moças da montanha flutuam sem esforço entre suas nuvens e permanecem silenciosas, sorrindo enigmaticamente há séculos. Os seus nomes assim como os dos artistas que as pintaram estão perdidos mas seu legado dá testemunho do gênio de seus criadores e da civilização que os contratou.
A teoria mais aceita sobre os afrescos defende que eles foram idealizados para expressar artisticamente a grandeza e o status do rei Kashyapa e dotar a sua corte com dimensões estéticas e eróticas. Acredita-se que as pinturas foram luxuosos motivos decorativos calculadamente elaboradas para exaltar Kashyapa, retratando suas mulheres – a rainha, princesas, amantes, servas e sacerdotisas da sua corte.
Porém...
Uma outra hipótese é bastante defendida. Muitos argumentam que no topo da rocha em vez de palácios havia prédios onde monges budistas viviam em meditação e contemplação e doutrinação, que as calçadas pavimentadas eram para as suas caminhadas meditativas e que as lagoas e os jardins foram projetados para a contemplação, para buscar o “vazio divino” do Nirvana. E muita gente boa duvida valentemente que as mulheres de Sigiriya sejam a rainha e as concubinas se embelezando para seu senhor preferindo acreditar que, em vez, elas são imagens da deusa Tara e que, na metade do primeiro milênio AC, Sigiriya era um enorme centro Mahayana para a iniciação de budistas e um templo dedicado a Tara Devi.
imagem pinterest

Assim como Cibele, Diana, Ceres e tantas outras mais, Tara é uma deusa-mãe que, como todas as demais, reflete o desejo humano de buscar a proteção e o cuidado materno divinos. Não se sabe se a deusa Tara original era hindu ou budista mas com certeza ela nasceu na Índia. Em muitas das línguas indianas contemporâneas, a palavra 'tara' também significa estrela e no hinduísmo Tara é uma energia primitiva em forma feminina, a fome que impulsiona toda a vida. No budismo Mahayana Tara é um Bodhisattva feminino, o aspecto feminino do universo que dá alívio aos maus karmas, o nome genérico de um conjunto de metáforas para as virtudes budistas.
Tara tem várias caras e cores mas com qualquer uma delas ela é sempre mãe. A Tara negra está associada ao poder e a prosperidade, a verde oferece proteção e esclarecimento, a branca garante longa vida, cura e serenidade, a vermelha magnetiza tudo o que é bom, enquanto a azul expressa uma energia feroz, cruel e feminina, cuja invocação destrói todos os obstáculos.
Independentemente dela ser carimbada como deidade, ou Buda, ou bodhisattva, Tara é muito popular no Tibete, na Índia, em Sri Lanka, na Mongólia, no Nepal, no Butão e é reverenciada por comunidades budistas em todo o mundo.
Sucede que a iconografia ligada ao culto de Tara é muito semelhante às pinturas de Sigiriya, sendo ela representada exatamente como as musas locais: esplendidamente adornada por joias e flores.
Para mim as figuras de Sigiriya são bem mais parecidas com as mulheres das pinturas que moram nas cavernas de Ajanta na Índia, na montagem abaixo.
imagens Wikipedia

O maior problema dos defensores da teoria da deusa é que a primeira estátua de Tara, encontrada na Índia, é datada do século VI DC e a pergunta é o que estaria fazendo a deusa quase dois séculos antes em Sigiriya? Os especialistas também não explicam porque outros monges budistas da gema escreveram diferentemente em dois livros do Culavamsa, afirmando que Sigiriya e as suas pinturas foram feitas por ordem de Kashyapa para o prazer e a glória de Kashyapa.
O fato é que sobre o tema as tradições budistas Mahayana e Theravada na antiga e na atual Sri Lanka divergiram e divergem ferozmente e não se tem como saber quem foram as damas da Rocha mesmo tendo elas sido objeto de especulação por quase mil e seiscentos anos.
Mas tomando o caminho do meio (rsrs) atrevo-me a dizer que não creio que as pinturas de Sigiriya tenham servido tão somente a um propósito essencialmente decorativo na egotrip de um rei desequilibrado. Creio que cada figura é única, com traços fisionômicos, forma, pose, colorido e vestes diferentes que me parecem carimbá-las com bastante individualidade. Acredito que tenham sido as mulheres de carne e osso do rei Kashyapa.
fotografia Jerzy Strzelecki (Wikipedia)

E que ele usou a rocha como uma galeria de retratos e que, quando o palco foi definido, os mestre pintores foram liberados para circular no harém real e estudar os traços e formas das mulheres para poder pintá-las mas estimulados a fazê-lo sem se preocupar muito com semelhanças faciais e corporais.
Até porque as pinturas lá no alto da rocha, seriam contempladas de longe e, ao fim e ao cabo, o que importava era transmitir a mensagem do rei que nada tinha a ver com detalhes como feições, medidas ou colorido. O importante era o ambiente, a riqueza, o porte real, a postura, o gestual e os objetos que elas carregam, a impressão da beleza que tinham e do poder que o rei desejava propagandear. Afinal a rocha era um outdoor.
Penso que aos pintores foi permitido usar livremente as suas tintas e pintar os seus caprichos nas muitas centenas de “retratos” de mulheres que lhes eram familiares. As figuras são representadas com um realismo e naturalismo que me trazem à mente as artes de Caravaggio ao pintar temas sagrados que incluíam as características físicas dos personagens que ele conhecia pelas ruas de Roma.
Já que Dona História não explica a contento, não compro a versão da “fortaleza”. Porém me parece razoável que o rei usurpador Kashyapa, quisesse ser visto como o ideal da realeza, como um novo deus das águas e da fertilidade em uma nova cidade-estado e inédita religião que obliterasse a imagem do pai que não conseguira assassinar no coração do povo. Penso que, face à sua impopularidade junto aos cidadãos da antiga capital de Anuradhapura, Kashyapa pode ter usado sua riqueza para turbinar seu Ibope, criando uma prodigiosa obra-prima para si mesmo. A sua visão pessoal da cidade mitológica dos deuses - Alakamanda! - que na mitologia budista, pelo menos, é uma “cidade nas nuvens”.
Assim inspirado o rei bem que poderia ter mandado caiar a rocha, pintá-la do mais puro branco para que se parecesse com uma nuvem. Sucede que uma pedra branca de duzentos metros de altura, por mais que tenha sido uma visão impressionante, deve ter parecido mais com um elefante branco do que algo celestial. Então é provável que Kashyapa e seus arquitetos tenham decidido decorar a rocha com um belo tema. Que melhor exemplo de beleza poderiam eles desejar povoando a pedra do que a das mulheres que adornavam a corte real?
Assim, as mulheres da corte de Kasyapa, do “rei-deus” que morava nas nuvens alvas, rodeado por tudo o que excitava o corpo e a mente, foram representadas como donzelas celestiais enfeitadas de flores, como ninfas, ou semideusas, ou com o propósito de glorificar a imagem de Kashyapa como um governante divino.
Por isso acho que Sigiriya era sim mais do que uma fortaleza, que sua inédita arquitetura foi planejada como um cenário para deificar Kashyapa, nos moldes da literatura indiana clássica, que fala em “palácios no céu”.
Não seria preciso muito para imprimir na mente de um povo crédulo a crença da recém-adquirida divindade do rei parricida. Em outros lugares, mais perto de nós, como Roma, por exemplo, há seis séculos já se deificava imperador e segundo as tradições egípcia e persa.
Ademais, se é que eu aprendi alguma coisa sobre a Ásia em geral e sobre a Ilha Abençoada em particular, nos mais de três anos que por lá perambulei é que, naquelas paragens, por trás de TUDO rola sempre alguma espiritualidade. Simplesmente e sempre em qualquer conversa o divino é colocado na frente.
Na minha opinião a própria escolha do lugar onde Sigiriya foi construída foi religiosa. Todas as religiões antigas versaram sobre polos ou eixos ou rodas simbólicos em torno do quais o mundo girava. As cidades eram erguidas nos tempos ancestrais segundo as coordenadas de uma espécie de geografia sagrada. E não foi diferente no caso de Sigiriya.
Parece que todas as tradições religiosas do vasto mundo, a qualquer tempo, trataram e tratam de uma mesma “terra santa” arquetípica, defendida por guardiões que a mantém escondida da visão profana, inacessível e invisível para todos, exceto para alguns iniciados que possuem as qualificações necessárias para cruzar-lhe os umbrais entrando e saindo e assim assegurando uma certa comunicação exterior com os pobres mortais. Tradições semelhantes do “paraíso terrestre” – o nosso paraíso veio do sânscrito “paradesha” - como ilhas e montanhas verdes e/ou brancas estão presentes no esoterismo islâmico, celta, indiano e até asteca como é o caso da mítica Aztlán, descrita como uma “alva montanha” tantas vezes. Para não falar de Machu Picchu nos versos de Neruda...
“Madre de pedra, espuma dos condores.
Alta rocha da aurora humana...”
Pode-se constatar claramente que a ideia de um paraíso espiritual ou de uma ilha paradisíaca ou de uma “montanha sagrada”, ou de um axi mundi entre o céu e a terra é universal e não uma invenção de um rei megalômano com alguns problemas mentais e dilemas morais.
Jamais saberemos todos os motivos pelos quais a cidade foi construída, jamais saberemos o que se passava na mente de seu idealizador, construtores e artistas. Se acreditavam que o lugar era sagrado e o ergueram como um símbolo do cosmos com seus sete níveis representando os sete céus ou como um umbigo da ilha – quiçá da Terra. Jamais descobriremos se como se sussurra à boca miúda havia um lado escuro e sacrifícios humanos nas festas sazonais, no erotismo pictórico, no povo isolado. A história de Sigiriya é feita de pontos de vista opostos dos acadêmicos e historiadores argumentando detalhes bobos, dos brâmanes e monges e sacerdotes discutindo tecnicidades espirituais (rsrs)
É estranho que a história escrita de Sri Lanka mal descreva o lugar, sendo o seu nome mencionado apenas quatro vezes nos livros Culavamsa. Teria essa conversa sido escrita diferentemente se não tivese sido da lavra de mãos budistas? Talvez sim. Mas o budismo sempre esteve presente em Sigiriya antes, durante e depois da sua construção. E ainda hoje em volta do rochedo nos vários pontos brancos que à segunda vista a gente identifica como Budas...
fotografia McKay Savage (Wikipedia)

O fato é que simplesmente não há como determinar o significado do lugar. Não se pode provar que Sigiriya tenha sido projetada apenas como uma fortaleza inexpugnável ou como a capital de uma realeza amante das artes ou como um santuário budista ou como um templo dedicado à deusa.
Até porque não é possível compreender a mente de humanos espiritualizados a partir da nossa própria perspectiva materialista. Mas lamentei, e muito, quando lá voltei em 2009, depois de uma ausência de mais de vinte e seis anos, ter encontrado Sigiriya mais parecida com um parque temático ocidental do que com um local de peregrinação.
A gente sai de Sigiriya matutando sobre o que teria justificado a tarefa gigantesca e quase impossível de arrastar materiais de construção a uma altura de duzentos metros. Como objetivamente não se chega à solução da equação termina-se poetando que uma cidadela no topo da rocha provavelmente foi percebida como um portal entre esse mundo e o mundo dos deuses.
Talvez um dia quando tivermos desenvolvido olhos para ver e ouvidos para ouvir, as senhoras de Sigiriya nos contem a sua história. Até lá, o que é verdadeiramente sagrado permanecerá em segredo.
Por fim e para quem ainda tiver tempo recomendo o link abaixo que contém, além de uma canção da banda Duran Duran que fez sucesso nos anos 80, algumas imagens muito belas de Sigiriya.



24/01/2019

Conversas íntimas


Henri Matisse - Nu Rose (1935) - alterado por Ana Nunes




Ana Nunes
Roupas penduradas no varal.
Acho lindo. Já desenhei e aquarelei muitos varais. E encantei-me com um a caminho de serras, terra vermelha, casinha outrora branca e o varal com roupas coloridas nessa imensidão de mundo.
Tudo muito lindo, poético, tipo “alma funda”, de que fala o amigo.

E aí toca o varal comum. De apartamentos próximos, áreas de serviço um pouco devassadas. É preciso pudor! Muito pudor. Roupas íntimas em cantos reca(n)tados. Pensa no vizinho vendo uma calcinha vermelha pendurada sem vergonha na reta branca do varal suspenso... trágico!
E de repente me deparo com um sutiã pendurado sozinho num canto do varal, comum, triste, sem rendas nem fitas, nem preto nem prata. Bege! Como aquela velha piada, “Bege, vou pintar de bege”, o teto!

E não sei porque, porque o pensamento tem causas que nem Freud explica, a razão tem razões de que nem sabe, pensei num troféu. Um troféu nem triste nem alegre. Melancólico. Um troféu de vida. Que veio mudando no correr da vida útil. Da dona, lógico.
Foi de algodão branco ou rosa, “o primeiro sutiã a gente nunca esquece”. Aqueceu seios botões adolescentes, pequenos anúncios de uns seios mais redondos, mais cheios, mais ambiciosos. Para esses vieram os sutiãs de bojo, os wonderbra, pop up, que elevam os seios às alturas. E que sempre me lembram capacetes de aviadores de guerras passadas. Aqueles com os protetores de ouvido. E que, mesmo debaixo de roupas pesadas, fazem o homem sonhar com o desconhecido! Esses são Darlings pretos, Victoria Secrets importados, Intimissimis prateados, combinados com calcinhas mais que audazes. Trazem alças móveis para concordar com o vestido, ou são cruzadas estilo nadador, e outros modelos para decotes profundos.

É um ápice. Os seios que chegam ao auge pedem sutiãs compatíveis. E dá-lhe ouro, incenso e mirra na forma de rendas e fitas e brilhos. Nem precisava de tanto para a desejada sedução. Seduzem eles, os seios, pelo próprio projeto arquitetônico, empinados e oferecidos, vestidos em pele de pêssego. Nem Niemeyer seria capaz de tais curvas impensáveis e perfeitas.

Mas a vida continua, o tempo é implacável, a força gravitacional imperdoável megera!
Dizia um amigo francês que as mulheres, quando fazem plástica de seios, deviam colocá-los nas alturas das bochechas por dois motivos: quando cumprimentadas com dois beijinhos poderiam ter os seios beijados no lugar das bochechas e, com o tempo, eles estariam nos devidos lugares. Pode, conhecer um francês para ouvir isso? Bem safado ele!
E eles, os seios bem amados e já maduros amaciam um pouco e fazem umas curvas doces, suaves e mais bonitas. Encantadoras! Não gritam, sussurram! Sem atrevimento adoram mãos em concha num capricho delicado.
Por mais um tempo.

E os sutiãs vão mudando com a dona desses seios. Que agora quer mais conforto. E mais exigente, quer sedução por ela mesma. Sem a necessidade de truques disfarçados em fitas e rendas. Mais segura, mais sedutora, mais direta. Muito mais seletiva.

Esse sutiã de história longa e duvidosa, já foi brassière para os franceses, simples bra para os ingleses e, porque não, porta-seios para os portugueses. São wonderbra, viraram adesivos. E agora, de longe, vem notícia francesa de sutiã em spray de proteína. Será mesmo?

De qualquer modo são roupas íntimas. São troféus. Como as fraldas e as calcinhas e as cuecas. Cuecas essas que também acompanham a história de seus donos. Primeiro são cuequinhas de algodão de Batman ou SuperHomem (Tomara!), depois fantasias eróticas de seda em samba canção, em lycra atualizada macia ao toque e às carícias, boxer, ciclista ou cavadas, e com costuras invisíveis para maior conforto! Envolvendo bundinhas tesudas, mira secreta de muitas mulheres. Ou deixando entrever volumes cobiçados.

Elas vieram com os homens das cavernas. E sei consternada que, mesmo assim, tem cuecas ausentes  que não fazem parte  das gavetas. Serão homens mais práticos, prontos para o embate? Ou mais Sugismundos?
Não sei, meu conhecimento não é tão plural.

Ganharam seu nome de uma palavrinha pequena e feia, de baixo calão, origem latina culus e do grego, eca que significa domicílio. Achei romântico, para mim agora serão para sempre domicílio! Domicílio das joias da coroa.
Elas também, como os sutiãs, vão tomando, com o tempo e a gravidade, um ar mais confortável, elásticos mais macios, cores mais neutras. Apesar de aparecem umas em estampado super colorido de flores e caveirinhas. Sensacional! Devem tentar os velhinhos em formação! Que antes não admitiam ter essas vaidades. E, com certeza, essas cuecas fashion divertem as velhinhas desses velhos! Tudo em formação, velhinhos, velhinhas e cuecas fashion.
E assim vão acomodando traseiros mais chapados e volumes mais tímidos. Uma gordurinha aqui e ali. E fazendo estórias de época e de uso. E de donos.
Certamente são também troféus de vida tomando ares de bandeira ao vento nos varais.
Roupas íntimas!
Quem diria!

21/01/2019

Sigiriya

fotografia Moacir Pimentel


Moacir Pimentel
Sei perfeitamente em que hora, dia, mês e ano experimentei pela primeira vez a bela visão da rocha de Sigiriya. Foi há trinta e cinco anos e não esqueci por um simples motivo: na véspera eu assistira numa pequena televisão em p&b de escassas polegadas o Brasil vencer a Nova Zelândia por 4 x 0 na Copa do Mundo da Espanha de 1982. Então basta jogar a goleada no Google para descobrir que eu pisei no chão sagrado de Sigiriya no centro da ilha de Lanka às oito horas da manhã de 24 de junho de 1982.
Mas afinal o que é Sigiriya?
Complicado! Mesmo os mais renomados arqueólogos ainda não sabem porque um esforço tão grande foi feito para construir uma cidade em cima dessa rocha. Mas Sigiriya é, com certeza, a visão mais dramática que o país me ofereceu, com seus paredões quase verticais se elevando até o topo plano onde moram as ruínas de uma antiga civilização do século IV DC e de onde se descortina uma vista fascinante de florestas cobertas de nevoeiro no início da manhã.
Há evidências - o cinzelamento nas rochas e muitas inscrições - de que várias cavernas na vizinhança foram ocupadas por monges budistas e ascetas desde o século III AC, mas acredita-se que o entorno de Sigiriya pode ter sido habitado desde tempos pré-históricos do mesolítico.
“Oficialmente” o lugar foi uma fortaleza construída no topo dessa pedra de cerca de duzentos metros de altura no centro de Sri Lanka a vinte quilômetros das impressionantes cavernas de Dambulla povoadas por budas imensos.
fotografia Moacir Pimentel

No entanto todos concordam que, com certeza, Sigiriya é uma amostra muito bem conservada de planejamento urbano antigo e foi considerando as suas singularidades que a UNESCO transformou em Patrimônio Mundial essa combinação inigualável de urbanismo, engenharia hidráulica, horticultura e artes que se ergue imponente das selvas de Sri Lanka.
Quem me falou pela primeira vez sobre o antigo Ceilão foi Marco Polo o viajante que, em 1271 e com apenas dezessete anos, partiu de Veneza seguindo as rotas comerciais para a Ásia e, na China, impressionou de tal maneira Kublai Khan, o então todo poderoso imperador, que foi nomeado embaixador da corte imperial e nessa condição supostamente visitou a Ilha Abençoada.
Diz Dona Lenda que o seu objetivo era apoderar-se do “Dente de Buda”, uma das relíquias mais sagradas do Budismo. Felizmente, a expedição não teve êxito: Sri Lanka não desiste de seus tesouros facilmente. (rsrs)
Não é de admirar que Marco Polo a tenha considerado “a melhor ilha do seu tamanho em todo o mundo” nem que o viajante tenha sido cativado pelas especiarias locais - pimentas, gengibre, canela e cocos – e desenvolvido uma predileção pelos lençóis cingaleses, os buckrams, descritos por ele como “a tecitura de textura mais delicada do mundo”.
De resto o mercador veneziano descreveu os ilhéus como idólatras que andavam completamente nus, “exceto pelo meio”, observando que não tinham trigo mas o substituíam por arroz e explicando-nos que faziam o “seu óleo do sésamo” e que fabricavam “vinho de árvores”.
Porém Marco Polo, sendo antes de mais nada um bom comerciante, deu mais espaço nas páginas do Livro das Maravilhas a um tipo de pau-brasil e às pedras preciosas - safiras, topázios e ametistas e rubis - pois falou minuciosamente delas e, especialmente, do imenso rubi de um dos reis nativos, segundo ele “sem jaças e tão espesso como o braço de um homem” jurando de pés juntos que a gema era “o objeto mais resplendente da terra”.
Tal rubi não foi louvado apenas pelo famoso vêneto. Das páginas da Topografia do mercador grego Cosmas Indicopleustes - literalmente “o que viajou para a Índia” - e daquelas do monge budista chinês Xuanzang, outro grande erudito e viajante, também emergiram histórias sobre um rubi vermelho sangue de valor inestimável que fora fixado “no topo de um pagode no coração da ilha”.
Hayton de Corycus, o nobre armênio autor de La Flor des Estoires d'Orient, descreveu o grande rubi “que os reis do Ceilão usavam no dia da sua coroação” e, bem assim, Odoric Mattiuzzi, Ibn Khaldun, Frei Jordanus, Andrea Corsali, Lord Emerson Tennant e muitos mais.
Inclusive Simbad, o Marujo! (rsrs)
Pois nos relatos de suas viagens - acrescentados às Mil e Uma Noites no século XVII - o famoso marinheiro ao contar suas aventuras na “ilha de Serendib” afirma que havia “diamantes em seus rios e pérolas em seus vales” e descreve “um copo esculpido em um único rubi”.
Porém foi mesmo Rustichello de Pisa, nas suas conversas com Marco Polo quem, dentre tantos escribas, talvez tenha linkado mais fortemente o rubi mítico a Sigiriya. Pela boca de Marco Polo disse ele:
“Há dois reis que governam em extremos opostos da ilha, um dos quais possui o hyacinth e o outro o distrito no qual estão o porto e o empório. Um templo em particular, situado em uma eminência, é o lar do grande hyacinth, tão grande como um cone de pinho, da cor do fogo, e piscando a uma grande distância, especialmente quando captura os raios do sol - uma visão incomparável”.
Por óbvio que se supõe que o tal do “hyacinth” teria sido um rubi fixado na torre de um palácio ou templo construído no topo da “eminência” de Sigiriya. Mas nem uma mísera menção sequer ao badalado rubi foi registrada nas crônicas históricas de Sri Lanka nas raras menções que nelas encontramos sobre a rocha. Aliás nem mesmo sobre o significado do nome “Sigiriya” há consenso. Para alguns ele significa a Rocha da Lembrança e para a maioria a Rocha do Leão.
Se o próprio nome de Sri Lanka é místico e, no mito e na lenda e de acordo com a tradição oral, ela é desde tempos imemoriais “A Ilha Abençoada” não é de estranhar que no seu coração more um misterioso monolito de rocha maciça cujo nome tem duas traduções em torno do qual estão as ruínas do século V dos edifícios mais magníficos que em Sri Lanka já se edificou. Nunca é aquilo que está escrito, mas principalmente o que não é dito, a grande dificuldade da história cingalesa.
De acordo com a crônica Culavamsa – a história oficial dos monarcas da ilha do século IV até 1815 escrita por monges budistas - o local para a construção da cidade de Sigiriya foi escolhido a dedo pelo rei Kashyapa para sediar uma nova capital e abrigar um palácio rodeado por jardins. A história de Sigiriya é, portanto, a desse rei.
Em 477 DC, sempre segundo as crônicas budistas, Kashyapa, o filho primogênito e bastardo do então rei Dathusena com uma de suas concubinas, assassinou o pai e em seguida usurpou o trono que legitimamente pertencia a seu irmão Moggallana, que jurou vingança mas fugiu para o sul da Índia para não ser assassinado.
No exílio Moggallana tratou de formar um exército com a intenção de retornar a Sri Lanka e retomar o poder. Kashyapa, receoso da vingança fraterna, tomou a decisão estratégica de transferir a capital do reino da cidade de Anuradhapura para Sigiriya. E aqui começam as perguntas sem respostas.
Quem conhece o local não consegue compreender por quais cargas d’água um rei poderoso resolveria viver e reinar empoleirado no cume de uma rocha de duzentos metros de altura. Como poderia ele administrar um grande reino e manter contato com seus súditos no topo de uma montanha no meio da selva descendo e subindo setecentos e cinquenta degraus todos os dias de sua vida?
Como alimentava o seu povo sem poder cultivar o chão de pedra? É possível que fosse tolo o suficiente para não perceber que, caso Sigiriya fosse sitiada por exércitos inimigos, ele condenaria a si mesmo e sua corte e seus soldados à morte por inanição? Quem escuta essa história doida de pedra e olha para a rocha não pode deixar de pensar em outra fortaleza: a de Massada.
Sinceramente? Depois do ritual de purificação que é escalar a pedra confesso que a teoria da fortaleza para proteção de um rei idiota não me convenceu e é exatamente a falta de nexo da história de Kashyapa que turbina as versões alternativas sobre Sigiriya.
Mas é assim que a conversa foi escrita por Dona História nos anais oficiais a ilha: foi durante os dezoito anos de reinado do rei Kashyapa – enquanto ele esperava pelo inevitável retorno do irmão - que Sigiriya transformou-se em uma fortaleza defensiva que, no entanto, também abrigava um “palácio de prazer” com jardins magníficos e um engenhoso sistema hidráulico.
fotografia Moacir Pimentel
Decerto que o príncipe Moggallana retornou e derrotou o irmão Kashyapa no ano de 495 DC. Diz Dona Lenda que, sendo demasiado orgulhoso para render-se, o rei usurpador teria sacado a espada da cintura e se matado diante dos seus soldados.
Rei morto rei posto, e o novo rei Moggallana fez de Anuradapura novamente a capital de Sri Lanka, entregando Sigiriya aos monges budistas até o século XIV. Depois o lugar desapareceu das crônicas, não existe qualquer registro sobre a Rocha do Leão até o século XVII, quando a fortaleza foi usada como um posto avançado do Reino de Kandy.
Porém... as histórias alternativas juram de pés juntos que foi o pai de ambos os príncipes, o próprio rei Dhatusena, quem começou a construir Sigiriya como uma comunidade budista, sem uma função militar. Kashyapa é descrito não como um guerreiro ambicioso mas como um “rei playboy”, muito pouco preocupado com fosse o que fosse exceto o próprio prazer. Até mesmo a heroica morte do soberano é posta em dúvida: para muitos ele foi envenenado por uma concubina, para outros ele teria fugido da raia na batalha final e desertado.
Foi só em 1831 que o major Jonathan Forbes, dos Highlanders do exército britânico, ao retornar a cavalo de uma viagem a Pollonnuruwa se deparou com uma “cimeira coberta de arbustos”, escalou-a e, em seguida, despertou a curiosidade dos arqueólogos do vasto mundo. Mesmo assim Dona Arqueologia se arrastou por um século e meio pois foi somente em 1980 que o governo de Sri Lanka focou sua atenção nas ruínas de Sigiriya.
E aí os turistas invadiram a ancestral cidadela! Que, no entanto, se recusa a revelar seus segredos facilmente e obriga os curiosos a subir escadas de aparência deveras precária e vencer muitas centenas de degraus para chegar ao topo, passando por gigantescas patas de leão, pinturas, fossos cobertos por lírios d’água e santuários budistas em cavernas.
Escalar Sigiriya é perigoso? Bem... digamos que escada a cima eu não me animei a olhar para baixo nem a fazer muitas fotos panorâmicas (rsrs)
fotografias Moacir Pimentel
Mas entre mortos e feridos e exaustos, todos se encantam ao descobrir que a fortaleza tinha cinco portões e que a principal entrada – provavelmente privativa da realeza! - é a que fica do lado norte do paredão, projetada com a forma de um enorme leão de pedra que perdeu a cabeça e o tronco mas cujas patas e garras sobreviveram intactas.
Graças a esse felino acéfalo a fortaleza foi batizada de Sigiriya, da palavra sihagri, isto é, do leão. Os vestígios da cabeça esculpida do bicho, acima das pernas e patas, ainda podem ser identificados. Mas depois do leão ninguém resiste à curiosidade de subir até as ruínas do palácio lá no topo da rocha, com suas cisternas cortadas na pedra.
É fascinante descobrir na cimeira as fundações dos antigos prédios, os fossos, os vastos jardins em socalcos, as cavernas, as pedras enormes cujos topos também eram habitados, as escadarias, as calçadas e os terraços.
Os vários jardins de Sigiriya - das águas, das cavernas e das pedras - estão entre os mais antigos projetos paisagísticos do mundo e são surpreendentes por seus lagos e neles as pequenas ilhas artificiais e as prováveis ruínas de palacetes de verão, os canais e pontes e alamedas e piscinas e, principalmente, pelo sistema hidráulico complexo, de superfície e subterrâneo ainda em funcionamento.
Do lado oeste da rocha vemos o que dizem foi o parque da família real e nele as grandes estruturas para a retenção de água, como canais, cisternas, barragens, reservatórios e fontes. A água necessária para alimentar as fontes era operada pela gravidade e pressão artificial, e funciona até hoje.
Na estação chuvosa, todos os canais ficam cheios e a água começa a circular por toda a antiga fortaleza, cujo projeto, muito elaborado e imaginativo, combinou conceitos de simetria e assimetria para interligar as formas geométricas e naturais do ambiente.
Eu poderia escrever um post para cada foto da montagem acima chamar de seu e, ainda assim, não seria capaz de lhes comunicar o que é realmente Sigiriya. Dizem que às vezes uma imagem fala mais alto do que qualquer quantidade de palavras. É o caso...
imagem Wikipedia

Essa foto aérea nos deixa claro que, do alto de suas duas centenas de metros Sigiriya é o coração da ilha rodeado pelo mar verde da selva circundante. Sua visão surpreende pela harmonia única entre a natureza e as imaginação e capacidade de realização humanas. A construção de tal monumento arquitetônico há mais de um milênio e meio em uma rocha maciça exigiu avançadas habilidades arquitetônicas e de engenharia e técnicas e tecnologias exclusivas e criativas.
Uma das características mais interessantes do monumento é uma parede - que hoje é cor de laranja! - mas que nos seus primórdios era tão brilhante e branca que o rei podia ver a si mesmo enquanto caminhava ao lado dela. Por essa razão o muro entrou para a história batizado como a Parede do Espelho.
fotografia Moacir Pimentel

Tratava-se de uma parede de alvenaria branca, altamente polida, que avançava precariamente - é quase perpendicular! - ao longo da rocha, como um parapeito protetor para uma passagem de mais ou menos dois metros de largura pavimentada com lajes de mármore polido.
Ela só pode ser avistada, como um cinturão alaranjado, do lado ocidental do rochedo. Dela restaram apenas cerca de cem metros porém os restos de tijolos e os sulcos na face da rocha mostram claramente que a parede começava no alto do íngreme lance de escadas dos Jardins dos Terraços, percorria uma distância de duzentos metros ao longo da galeria dos afrescos na direção do pequeno planalto onde mora o Portão do Leão.
A antiga parede branca brilhante terminou virando uma tentação de imortalidade irresistível e foi parcialmente coberta pelos versos e inscrições rabiscados por antigos visitantes e viajantes, alguns deles datados do século VI. Pessoas de todos os tipos escreveram no lado interno desse muro sobre os mais variados temas durante séculos. É divertido constatar que sempre existiram turistas mal educados e grafiteiros criativos (rsrs) Tais inscrições são conhecidas hoje como os Grafites de Sigiriya . E é exatamente uma delas que dá testemunho de que o gesso refletia as pinturas das damas na parede oposta e que o tal brilho decantado em verso e prosa fora obtido através da utilização de um emplastro especial feito da mistura fina das cascas e claras de ovos e do mel. A superfície da parede em seguida teria sido polida com cera de abelha.
É claro que rabiscar na Parede do Espelho – assim com fotografar as pinturas! - agora é estritamente proibido. (rsrs)
O certo é que os turistas têm visitado Sigiriya desde o século VI, apenas cento e cinquenta anos depois da cidadela real ter sido abandonada e convertida em um mosteiro budista. É provável que os monges, em tempos difíceis, tenham decidido complementar sua renda, permitindo que visitantes e peregrinos visitassem a cidadela desde que lhes pagassem pelo privilégio.
E além do mais os afrescos deviam despertar muita curiosidade. Pequenas esculturas de má qualidade reproduzindo as famosas pinturas foram descobertas nos jardins. Acredita-se que podem ter sido bugigangas vendidas aos turistas ancestrais como souvenirs. Isso confirma que Sigiriya se tornou uma atração turística muito cedo.
Há uma especulação, não fundamentada por provas, no sentido de que um grande número de afrescos teria sido removido pelos monges budistas por serem provocativos além da conta dos religiosos, que precisavam meditar em paz. Atos de vandalismo já foram cometidos nessas paragens resultando em obras de arte de valor inestimável destruídas ou seriamente danificadas, graças ao puritanismo equivocado de celerados fanáticos.
Mas a essa altura do post você deve estar se perguntando de que pinturas eu estou falando. A resposta virá em outra conversa.
Até lá convido você a dar uma espiada nesse vídeo da fortaleza/ templo do Leão que, inclusive, termina noutra rocha, a de Pidurangala, cuja escalada se faz sem degraus e usando os  braços e as pernas (rsrs) 




17/01/2019

Beco sem saída

imagem pngfree.com

Heraldo Palmeira
Era mais uma véspera de Natal. Vacilei, entretido em ler algumas coisas e rabiscar outras. Quando voltei ao mundo, o dia já beirava três da tarde. Eu não tinha almoçado e estava com fome a granel.
Entrei no carro e saí pelas redondezas, no bairro cheio de restaurantes. Parece que estava combinado, todos com a plaquinha “Fechado”. Mesmo assumindo minha culpa, minha máxima culpa por ter esquecido do tempo, o meu melhor espírito natalino pensando nos funcionários que tinham suas famílias e o direito de comemorar o Natal foi se desgastando e virando irritação quase incontrolável a cada nova plaquinha na porta. A fome é mesmo algo irracional, ainda mais quando passa da hora.
Rodando apressado sobre mais um tanto de avenidas virando ruas, ruelas e becos, veio o estalo da memória: sim, havia o velho mercado, decadente, com aqueles pés-sujos de comida insuperável, simples, direta, sem qualquer firula, iguarias inegáveis. Quem sabe?
Fui chegando acelerado, pelos fundos, e já parei o jipe de ré contra a calçada, na posição de não perder tempo caso tivesse de sair à toda de novo. A fome é irracional, mas mantém algum tirocínio quando age em interesse próprio.
Quase todas as espeluncas estavam fechadas, restava uma, a redentora! No meio do corredor, uma mesa e duas cadeiras apenas, de plástico. Dois bêbados sentados, um traçando pedaços esgarçados de frango outro lutando contra os cochilos cada vez mais vitoriosos na luta de ficar balbuciando uma conversa sem importância.
Cerveja quente nos copos, perfeita sintonia com o calor infernal. Vidas trançadas por pobrezas, fatalidades, desesperanças. Pelo abandono visceral.
O comilão me saudou com respeito, o “doutor” inevitável. Tentou ser gentil e buscar mesa e cadeira para mim, numa pequena pilha já arrumada para fechar a casa. Desistiu diante da dificuldade de levantar. Mas deu ordens no terreiro, com voz embargada de álcool dirigida ao taberneiro. Agradeci a gentileza e baixei a cabeça, não tinha qualquer interesse em encompridar conversa. Até porque não havia chance de conversar.
O comilão seguiu zombando do cochilo do outro, em gritos controlados pelo taberneiro com a ameaça de suspender os serviços.
Em pouco tempo, o carneiro ao molho e milhares de acompanhamentos desceram sobre minha mesa. Eu não tive dúvida de que aquilo era um manjar dos deuses, indeciso entre a fome ser o melhor tempero ou algum milagre de Natal.
Um cachorro vadio, de estimação do taberneiro e associado pelas cores ao seu time de coração, foi encostando sorrateiro como convém aos cães vadios. O faro apurado indicava que restos apetitosos poderiam cair ao chão por simpatia dos comensais. E o taberneiro ralhou com o comilão quando ele jogou ossos de frango. “Isso fura o bicho por dentro!”, gritou raivoso.
O comilão chegara àquela fase em que a boca entorta e os olhos piscam em desacordo, cada um num tempo, e resmungou alguma coisa incompreensível. Pelo menos estava concordando, não deu mais ossos de frango, limitou-se a sujar o chão com arroz e feijão derramados na direção do animal.
Olhei para o fim do corredor do mercado. Além do portão havia um largo arborizado e calmo, que terminava num beco estreito que ia ficando ainda mais apertado e íngreme. Alguns homens sentados na calçada, quase no ponto em que a vista não dobrava e o que havia depois se perdia de vista.
Um pouco antes do ponto, uma mulher que cumprimentara o taberneiro com intimidade chegava em casa depois do trabalho – havia trazido alguns ingredientes da ceia que acabara de preparar na casa da patroa e confidenciara que a noite de Natal por lá prometia.
O taberneiro quis saber por que não ficou. “Não é festa pra mim, homem. Meu presente ia ser uma pilha de louça suja”. Sábia de sabedoria extraída do cotidiano.
Quando ela foi saindo devagar, ele ficou acompanhando o movimento dos quadris como quem conhecia a intimidade daqueles passos. Teve a dignidade de não dizer palavra.
Um homem veio descendo, tão esquálido quanto o beco. Trazia um resto de cigarro pendurado no canto da boca, deixando um pequeno rastro de fumaça pelo caminho. Era profissional do tabaco, sequer usava as mãos para o ritual de fumar. O cão vadio correu para lhe cercar, demonstrando alegria. Recebeu um leve aceno e veio ao redor.
Resolvi imaginar que aquele homem nunca havia entrado num cinema e visto a mise-en-scène do manuseio calculado dos cigarros ensinada nos filmes, a peso de ouro para a indústria do tabaco. Ou, por certo, ele adotaria a coreografia enfumaçada dos galãs de Hollywood, não teria razões para resistir.
Parou respeitoso encostado no balcão, falando baixo, e comprou cigarros vagabundos no retalho. Meia dúzia. Pediu uma coxinha e um copo daqueles sucos feitos de qualquer jeito. Imaginei que era seu almoço. Comeu em pé, sem muita demora.
O taberneiro falou com orgulho sobre estar trabalhando naquele dia. “Pra mim é um dia comum!”, alardeou. O homem fez um ar de riso sem convicção e respondeu que não tinha nada programado, iria dar um giro e ver se encontrava alguma coisa.
Pagou tudo com algumas moedas catadas a custo no bolso da calça, surrada como ele mesmo, e foi embora devagar por dentro do mercado, até sair na avenida principal e sumir na incerteza do dia que ia virar noite de Natal.
O taberneiro contou, sem eu perguntar, que aquele homem era biscateiro no entreposto de hortifrutigranjeiros que abastecia a cidade. Vivia uma vida difícil, solitário e caladão, mas era boa gente. “Acho que ele anda adoentado”, encerrou.
Fiquei calado para cortar o assunto, não queria detalhes, estava mais interessado naqueles sabores. Incapaz e controlar a língua, aproveitou meu silêncio como senha para me perguntar o que eu fazia e se ainda estava trabalhando naquele dia especial.
“Sou contador”, menti. Fui certeiro, não havia a menor chance de prosperar uma conversa em bases fiscais num ambiente de negócio informal como aquele. Ainda tentou continuar informando que os dois bêbados eram operários da construção civil. Eu aquiesci com um leve aceno de cabeça, sem levantar os olhos. Enfim, o silêncio que eu queria apareceu soberano.
O comilão, que tripudiara do amigo, agora também dormia a sono solto, a cabeça pendida sobre a parede ao lado do balcão. O cão vadio deitou aos pés dele, talvez orientado pelo registro daquele osso de frango na memória da sobrevivência. Continuou ignorando o arroz e feijão espalhados pelo chão.
Paguei míseros pouco mais de dois dólares por aquilo tudo. O taberneiro praticamente me intimou a voltar no dia seguinte. Foi insistente. Fiquei na dúvida se queria manter o cliente ou tentar descobrir algo mais a meu respeito – dera inúmeros sinais de que adorava a vida alheia. Prometi, para encerrar a prosa.
À noite, a caminho da ceia programada pela família, passei por uma grande avenida. Havia um quiosque num terreno baldio, lugar com cara de lugar nenhum, onde pessoas foram apenas chegando por ajuntamento em busca de uma noite de Natal não programada. Mesmo na pressa do trânsito tive quase certeza de ter visto o homem solitário, caladão, que comprou meia dúzia de cigarros vagabundos no retalho. Ele caminhara um bocado em busca de um lampejo na escuridão.
Com lápis invisível
Descrevo na escuridão
O que não vejo
A viagem tinha sido tranquila e eu estava num quarto enorme de hotel em Buenos Aires, com uma lua humilhante aparecendo na janela, espalhada sobre a cidade no infinito limitado ao alcance da vista.
Saí algum tempo depois para encontrar um casal de amigos argentinos, íamos a uma casa de tango de verdade, nada daquelas pantomimas montadas para turistas onde até cavalos aparecem no palco.
A casa de tango era pequena. A orquestra soberba. A plateia podia pedir músicas, que iam sendo inseridas no repertório. Arrisquei Libertango.
Súbito, o velho maestro perguntou quem havia feito aquele pedido. Levantei a mão timidamente, quase me desculpando. Quis saber de onde eu era, fiquei com a impressão de ser o único estrangeiro naquela noite.
Ele foi encantador ao me cumprimentar pela escolha, disse que era uma música complexa e belíssima, uma peça genial que poucos músicos ao redor do mundo se arriscam a tocar – inclusive nas casas de tango de Buenos Aires. Por fim, falou com enlevo de Piazzolla e ainda me agradeceu por fazê-lo lembrar do amigo.
Eu estava numa das primeiras mesas, perto demais. Contrariando meu temperamento reservado, não resisti, dei três passos e fui até diante do palco, me curvei perante o maestro. Ele me estendeu a mão. Nossas quatro mãos entrelaçadas transmitiram o que sentimos pela música. Imagino que os aplausos soaram respeitosamente para concordar.
O tango começou sem meias-palavras, ferino, ferindo na carne. Não sei de onde aquele homem solitário, caladão, que comprou meia dúzia de cigarros vagabundos no retalho surgiu na minha mente.
Talvez porque sua vida fosse aquele tango nu e cru, que não foi orquestrado para entreter quem está na vida a passeio, que só era encontrado por quem pisava ruelas e becos. Que só era tocado por quem formara calos no piso irregular da estrada.
Comecei a enxergar o homem esquálido, que desceu o beco estreito, debaixo daquele chapéu antigo, dentro do terno risca-de-giz sob a luz dramática, deslizando nos sapatos luzidios, retratado nos traços magros e marcados do dançarino que flutuava sobre o palco.
Imaginei-o tentando encaixar suas marcas de desilusão nos movimentos da dançarina linda com aquela flor vermelha no cabelo negro, nas suas curvas perigosíssimas, na fenda cruel do vestido sempre ludibriando o bote do fogo de todos os desejos mais secretos. Vi a paixão e o medo duelando sem piedade em cada passo, aquele jogo de tentativas de fugir e impedir, a coreografia de um amor que não se deixa amar. Os dois esgotados, abraçados numa réstia fugidia do escuro do palco, com a morte decretada pelo fim sem reconciliação, e a dor para o resto da vida.
Sob o peso da noite
E do vinho amargo
Bati à porta da treva
E gritei o teu nome
Mas nada ouvi senão ecos
A fulminar a memória
Alguém chora
Mas não há lágrimas
Exceto vagalumes
Náufragos aéreos
Que à deriva espalham luzes
Do éden perdido
A música parou a dança, aplausos desmoronando de pé. A luz acendeu o fim sem direito a bis, a plateia – imóvel – de náufragos aéreos tal vagalumes à deriva, espalhando luzes do éden que se perdeu no acorde final, no passo que parou a dança que não foi feita para parar.
O velho maestro me dirigiu levemente a batuta entre as duas mãos, nota além da partitura, último aceno encantador. Como que me abrindo os olhos, me dando respostas. Como se tivesse enxergado o homem solitário, caladão, que meses atrás desceu o beco estreito, comprou meia dúzia de cigarros vagabundos no retalho naquele mercado decadente e que eu jurava ter visto festejando o Natal num lugar que tinha cara de lugar nenhum.
Não! Definitivamente, aquele homem, àquela noite, à beira da avenida que levava à minha ceia de Natal, não estava à procura de Papai Noel. A Lapônia era um lugar banal demais para quem, por força daquele destino, tinha a vida traduzida num tango argentino. Um canto torto, feito faca. Algo bem além do blues! 
Trechos de:
Pão e luz (Horácio Paiva)
Sete elegias de um ano findo (Horácio Paiva)
Inspirações incidentais:
A palo seco (Belchior)