fotografia Schnobby (Wikipedia) |
Moacir Pimentel
Entre todas as maravilhas de Sigiriya a mais impressionante é mesmo a
coleção de afrescos. As pinturas já dominaram a maior parte da face ocidental
da rocha, uma área de cento e quarenta metros de comprimento e quarenta metros
de altura. No entanto, a maioria delas se perdeu para sempre sob os maus tratos
da natureza, fustigadas pelo sol e a chuva e o vento.
A gente fica ali maravilhado imaginando essa parede imensa quase
inteiramente coberta pelas pinturas de mais de quinhentas mulheres seminuas há
mil e seiscentos anos. Deve ter sido uma visão maravilhosa. Com certeza os
afrescos eróticos de Sigiriya - como uma enorme tapeçaria colorida que se
desenrolava ao redor da rocha - já foram o destaque maior da fortaleza, talvez
a característica mais bela da sua visão impressionante. A gente olha e olha de
novo e não tem como não perguntar:
Mas, pelamordedeus, como foram pintados
esses afrescos?
Dizem os doutos que dezenas de milhares de pedaços de bambu foram
transportados para o local e amarrados com cordas feitas de fibra de coco para
formar uma enorme rede que se estendia desde a base da rocha até o cume. Não
havia quaisquer escadas nem andaimes e muito menos a mínima segurança.
Eu lembro de olhar para o paredão e de tentar imaginar os pedreiros
trabalhando a face da rocha, cinzelando a sua superfície e criando uma borda
para impedir que a água fluísse pela curvatura natural da pedra sobre a área
onde os afrescos seriam pintados. E, em seguida, um exército de rebocadores
limpando a superfície e sobre ela aplicando camadas sucessivas de gesso. E
finalmente os artistas pintando sobre o gesso enquanto ainda estava molhado
usando pigmentos vegetais.
Todos eles pendurados! Impressionante! Os afrescos de Sigiriya, como
todos os verdadeiros afrescos, foram pintados rapidamente porque a tinta é
imediatamente sugada pelo gesso. Como consequência, é quase impossível apagar
um erro na pintura. E as de Sigiriya têm um grande número de falhas.
Pudera! Aqueles afrescos foram pintados por pintores empoleirados e/ou
pendurados em frágeis andaimes de bambu. Acredite, ali eu não seria capaz de
pintar nem uma casinha torta! Os dedos faltando e os braços estranhamente
curtos das damas na pedra ou quaisquer outras falhas são desimportantes.
Ademais as belas mulheres foram pensadas para serem admiradas de uma distância
razoável e defeitos menores nas pinturas não seriam visíveis.
Também é importante ter em mente que os afrescos que sobreviveram moram
em uma pequena reentrância na rocha e ocupavam apenas uma posição menor na
tapeçaria maciça que um dia já revestiu o paredão. Portanto eles podem ter
recebido menos atenção artística do que outros afrescos maiores, exibidos de
forma mais proeminente, exatamente por essa razão se perderam no tempo.
É triste pensar que ao longo dos anos a maioria das pinturas foi apagada
da face da rocha e que só dezenove entre quinhentas senhoras conseguiram chegar
até os nossos tempos. Mas o pouco que restou é mais do que suficiente para que
se possa imaginar a beleza que a rocha deve exibido tanto tempo faz.
A técnica e o estilo das pinturas de Sigiriya diferem completamente
daqueles de outros afrescos, entre eles os de Anuradhapura. É única e fabulosa
a volumetria das figuras obtida apenas através dos traços e da variação dos
tons das cores. Uma visão inesquecível.
fotografias Jerzy Strzelecki (Wikipedia) |
Mas uma vez a gente fica matutando quem foi aquela gente ociosa e
civilizada e rica o bastante para se permitir um projeto de arte de tal
envergadura? E, mais importante ainda, quem eram aquelas mulheres de seios de
fora? No quinto século do primeiro milênio e na pintura ocidental nem as deusas
se atreveram a tanto!
Não se conhece a identidade das senhoras nessas pinturas. A maioria dos
especialistas acredita que as damas do rei - tanto esposas quanto concubinas -
teriam sido retratadas enquanto outros pensam que as figuras são sacerdotisas
participando de cerimônias religiosas.
Todas têm grandes seios nus, cinturas finas e corpos sinuosos, pouca
roupa e mesmo assim de tecidos transparentes, olhos largos e estão ricamente
adornadas por joias e flores. Protegidas das intempéries pela indentação
natural da pedra as moças da montanha flutuam sem esforço entre suas nuvens e
permanecem silenciosas, sorrindo enigmaticamente há séculos. Os seus nomes
assim como os dos artistas que as pintaram estão perdidos mas seu legado dá
testemunho do gênio de seus criadores e da civilização que os contratou.
A teoria mais aceita sobre os afrescos defende que eles foram
idealizados para expressar artisticamente a grandeza e o status do rei Kashyapa
e dotar a sua corte com dimensões estéticas e eróticas. Acredita-se que as
pinturas foram luxuosos motivos decorativos calculadamente elaboradas para
exaltar Kashyapa, retratando suas mulheres – a rainha, princesas, amantes,
servas e sacerdotisas da sua corte.
Porém...
Uma outra hipótese é bastante defendida. Muitos argumentam que no topo
da rocha em vez de palácios havia prédios onde monges budistas viviam em
meditação e contemplação e doutrinação, que as calçadas pavimentadas eram para
as suas caminhadas meditativas e que as lagoas e os jardins foram projetados
para a contemplação, para buscar o “vazio divino” do Nirvana. E muita gente boa
duvida valentemente que as mulheres de Sigiriya sejam a rainha e as concubinas
se embelezando para seu senhor preferindo acreditar que, em vez, elas são
imagens da deusa Tara e que, na metade do primeiro milênio AC, Sigiriya era um
enorme centro Mahayana para a iniciação de budistas e um templo dedicado a Tara
Devi.
imagem pinterest |
Assim como Cibele, Diana, Ceres e tantas outras mais, Tara é uma
deusa-mãe que, como todas as demais, reflete o desejo humano de buscar a
proteção e o cuidado materno divinos. Não se sabe se a deusa Tara original era
hindu ou budista mas com certeza ela nasceu na Índia. Em muitas das línguas
indianas contemporâneas, a palavra 'tara' também significa estrela e no
hinduísmo Tara é uma energia primitiva em forma feminina, a fome que impulsiona
toda a vida. No budismo Mahayana Tara é um Bodhisattva feminino, o aspecto
feminino do universo que dá alívio aos maus karmas, o nome genérico de um
conjunto de metáforas para as virtudes budistas.
Tara tem várias caras e cores mas com qualquer uma delas ela é sempre
mãe. A Tara negra está associada ao poder e a prosperidade, a verde oferece
proteção e esclarecimento, a branca garante longa vida, cura e serenidade, a
vermelha magnetiza tudo o que é bom, enquanto a azul expressa uma energia
feroz, cruel e feminina, cuja invocação destrói todos os obstáculos.
Independentemente dela ser carimbada como deidade, ou Buda, ou
bodhisattva, Tara é muito popular no Tibete, na Índia, em Sri Lanka, na
Mongólia, no Nepal, no Butão e é reverenciada por comunidades budistas em todo
o mundo.
Sucede que a iconografia ligada ao culto de Tara é muito semelhante às
pinturas de Sigiriya, sendo ela representada exatamente como as musas locais:
esplendidamente adornada por joias e flores.
Para mim as figuras de Sigiriya são bem mais parecidas com as mulheres
das pinturas que moram nas cavernas de Ajanta na Índia, na montagem abaixo.
imagens Wikipedia |
O maior problema dos defensores da teoria da deusa é que a primeira
estátua de Tara, encontrada na Índia, é datada do século VI DC e a pergunta é o
que estaria fazendo a deusa quase dois séculos antes em Sigiriya? Os
especialistas também não explicam porque outros monges budistas da gema
escreveram diferentemente em dois livros do Culavamsa, afirmando que Sigiriya e
as suas pinturas foram feitas por ordem de Kashyapa para o prazer e a glória de
Kashyapa.
O fato é que sobre o tema as tradições budistas Mahayana e Theravada na
antiga e na atual Sri Lanka divergiram e divergem ferozmente e não se tem como
saber quem foram as damas da Rocha mesmo tendo elas sido objeto de especulação
por quase mil e seiscentos anos.
Mas tomando o caminho do meio (rsrs) atrevo-me a dizer que não creio que
as pinturas de Sigiriya tenham servido tão somente a um propósito
essencialmente decorativo na egotrip de um rei desequilibrado. Creio que cada
figura é única, com traços fisionômicos, forma, pose, colorido e vestes
diferentes que me parecem carimbá-las com bastante individualidade. Acredito
que tenham sido as mulheres de carne e osso do rei Kashyapa.
fotografia Jerzy Strzelecki (Wikipedia) |
E que ele usou a rocha como uma galeria de retratos e que, quando o
palco foi definido, os mestre pintores foram liberados para circular no harém
real e estudar os traços e formas das mulheres para poder pintá-las mas
estimulados a fazê-lo sem se preocupar muito com semelhanças faciais e
corporais.
Até porque as pinturas lá no alto da rocha, seriam contempladas de longe
e, ao fim e ao cabo, o que importava era transmitir a mensagem do rei que nada
tinha a ver com detalhes como feições, medidas ou colorido. O importante era o
ambiente, a riqueza, o porte real, a postura, o gestual e os objetos que elas
carregam, a impressão da beleza que tinham e do poder que o rei desejava
propagandear. Afinal a rocha era um outdoor.
Penso que aos pintores foi permitido usar livremente as suas tintas e
pintar os seus caprichos nas muitas centenas de “retratos” de mulheres que lhes
eram familiares. As figuras são representadas com um realismo e naturalismo que
me trazem à mente as artes de Caravaggio ao pintar temas sagrados que incluíam
as características físicas dos personagens que ele conhecia pelas ruas de Roma.
Já que Dona História não explica a contento, não compro a versão da
“fortaleza”. Porém me parece razoável que o rei usurpador Kashyapa, quisesse
ser visto como o ideal da realeza, como um novo deus das águas e da fertilidade
em uma nova cidade-estado e inédita religião que obliterasse a imagem do pai
que não conseguira assassinar no coração do povo. Penso que, face à sua
impopularidade junto aos cidadãos da antiga capital de Anuradhapura, Kashyapa
pode ter usado sua riqueza para turbinar seu Ibope, criando uma prodigiosa
obra-prima para si mesmo. A sua visão pessoal da cidade mitológica dos deuses -
Alakamanda! - que na mitologia budista, pelo menos, é uma “cidade nas nuvens”.
Assim inspirado o rei bem que poderia ter mandado caiar a rocha,
pintá-la do mais puro branco para que se parecesse com uma nuvem. Sucede que
uma pedra branca de duzentos metros de altura, por mais que tenha sido uma
visão impressionante, deve ter parecido mais com um elefante branco do que algo
celestial. Então é provável que Kashyapa e seus arquitetos tenham decidido
decorar a rocha com um belo tema. Que melhor exemplo de beleza poderiam eles
desejar povoando a pedra do que a das mulheres que adornavam a corte real?
Assim, as mulheres da corte de Kasyapa, do “rei-deus” que morava nas
nuvens alvas, rodeado por tudo o que excitava o corpo e a mente, foram
representadas como donzelas celestiais enfeitadas de flores, como ninfas, ou
semideusas, ou com o propósito de glorificar a imagem de Kashyapa como um
governante divino.
Por isso acho que Sigiriya era sim mais do que uma fortaleza, que sua
inédita arquitetura foi planejada como um cenário para deificar Kashyapa, nos
moldes da literatura indiana clássica, que fala em “palácios no céu”.
Não seria preciso muito para imprimir na mente de um povo crédulo a
crença da recém-adquirida divindade do rei parricida. Em outros lugares, mais
perto de nós, como Roma, por exemplo, há seis séculos já se deificava imperador
e segundo as tradições egípcia e persa.
Ademais, se é que eu aprendi alguma coisa sobre a Ásia em geral e sobre
a Ilha Abençoada em particular, nos
mais de três anos que por lá perambulei é que, naquelas paragens, por trás de
TUDO rola sempre alguma espiritualidade. Simplesmente e sempre em qualquer
conversa o divino é colocado na frente.
Na minha opinião a própria escolha do lugar onde Sigiriya foi construída
foi religiosa. Todas as religiões antigas versaram sobre polos ou eixos ou
rodas simbólicos em torno do quais o mundo girava. As cidades eram erguidas nos
tempos ancestrais segundo as coordenadas de uma espécie de geografia sagrada. E
não foi diferente no caso de Sigiriya.
Parece que todas as tradições religiosas do vasto mundo, a qualquer
tempo, trataram e tratam de uma mesma “terra santa” arquetípica, defendida por
guardiões que a mantém escondida da visão profana, inacessível e invisível para
todos, exceto para alguns iniciados que possuem as qualificações necessárias
para cruzar-lhe os umbrais entrando e saindo e assim assegurando uma certa
comunicação exterior com os pobres mortais. Tradições semelhantes do “paraíso
terrestre” – o nosso paraíso veio do sânscrito “paradesha” - como ilhas e montanhas verdes e/ou brancas estão
presentes no esoterismo islâmico, celta, indiano e até asteca como é o caso da
mítica Aztlán, descrita como uma “alva montanha” tantas vezes. Para não falar
de Machu Picchu nos versos de Neruda...
“Madre de
pedra, espuma dos condores.
Alta rocha da aurora humana...”
Pode-se constatar claramente que a ideia de um paraíso espiritual ou de
uma ilha paradisíaca ou de uma “montanha sagrada”, ou de um axi mundi entre o
céu e a terra é universal e não uma invenção de um rei megalômano com alguns
problemas mentais e dilemas morais.
Jamais saberemos todos os motivos pelos quais a cidade foi construída,
jamais saberemos o que se passava na mente de seu idealizador, construtores e
artistas. Se acreditavam que o lugar era sagrado e o ergueram como um símbolo
do cosmos com seus sete níveis representando os sete céus ou como um umbigo da
ilha – quiçá da Terra. Jamais descobriremos se como se sussurra à boca miúda
havia um lado escuro e sacrifícios humanos nas festas sazonais, no erotismo
pictórico, no povo isolado. A história de Sigiriya é feita de pontos de vista
opostos dos acadêmicos e historiadores argumentando detalhes bobos, dos
brâmanes e monges e sacerdotes discutindo tecnicidades espirituais (rsrs)
É estranho que a história escrita de Sri Lanka mal descreva o lugar,
sendo o seu nome mencionado apenas quatro vezes nos livros Culavamsa. Teria
essa conversa sido escrita diferentemente se não tivese sido da lavra de mãos
budistas? Talvez sim. Mas o budismo sempre esteve presente em Sigiriya antes,
durante e depois da sua construção. E ainda hoje em volta do rochedo nos vários
pontos brancos que à segunda vista a gente identifica como Budas...
fotografia McKay Savage (Wikipedia) |
O fato é que simplesmente não há como determinar o significado do lugar.
Não se pode provar que Sigiriya tenha sido projetada apenas como uma fortaleza
inexpugnável ou como a capital de uma realeza amante das artes ou como um
santuário budista ou como um templo dedicado à deusa.
Até porque não é possível compreender a mente de humanos
espiritualizados a partir da nossa própria perspectiva materialista. Mas
lamentei, e muito, quando lá voltei em 2009, depois de uma ausência de mais de
vinte e seis anos, ter encontrado Sigiriya mais parecida com um parque temático
ocidental do que com um local de peregrinação.
A gente sai de Sigiriya matutando sobre o que teria justificado a tarefa
gigantesca e quase impossível de arrastar materiais de construção a uma altura
de duzentos metros. Como objetivamente não se chega à solução da equação
termina-se poetando que uma cidadela no topo da rocha provavelmente foi
percebida como um portal entre esse mundo e o mundo dos deuses.
Talvez um dia quando tivermos desenvolvido olhos para ver e ouvidos para
ouvir, as senhoras de Sigiriya nos contem a sua história. Até lá, o que é
verdadeiramente sagrado permanecerá em segredo.
Por fim e para quem ainda tiver tempo recomendo o link abaixo que
contém, além de uma canção da banda Duran Duran que fez sucesso nos anos 80,
algumas imagens muito belas de Sigiriya.