imagem pngfree.com |
Heraldo
Palmeira
Era mais uma véspera de Natal. Vacilei, entretido em ler algumas
coisas e rabiscar outras. Quando voltei ao mundo, o dia já beirava três da
tarde. Eu não tinha almoçado e estava com fome a granel.
Entrei no carro e saí pelas redondezas, no bairro cheio de
restaurantes. Parece que estava combinado, todos com a plaquinha “Fechado”. Mesmo
assumindo minha culpa, minha máxima culpa por ter esquecido do tempo, o meu melhor
espírito natalino pensando nos funcionários que tinham suas famílias e o
direito de comemorar o Natal foi se desgastando e virando irritação quase
incontrolável a cada nova plaquinha na porta. A fome é mesmo algo irracional,
ainda mais quando passa da hora.
Rodando apressado sobre mais um tanto de avenidas virando ruas,
ruelas e becos, veio o estalo da memória: sim, havia o velho mercado, decadente,
com aqueles pés-sujos de comida insuperável, simples, direta, sem qualquer firula,
iguarias inegáveis. Quem sabe?
Fui chegando acelerado, pelos fundos, e já parei o jipe de ré
contra a calçada, na posição de não perder tempo caso tivesse de sair à toda de
novo. A fome é irracional, mas mantém algum tirocínio quando age em interesse
próprio.
Quase todas as espeluncas estavam fechadas, restava uma, a
redentora! No meio do corredor, uma mesa e duas cadeiras apenas, de plástico. Dois
bêbados sentados, um traçando pedaços esgarçados de frango outro lutando contra
os cochilos cada vez mais vitoriosos na luta de ficar balbuciando uma conversa
sem importância.
Cerveja quente nos copos, perfeita sintonia com o calor infernal. Vidas
trançadas por pobrezas, fatalidades, desesperanças. Pelo abandono visceral.
O comilão me saudou com respeito, o “doutor” inevitável. Tentou
ser gentil e buscar mesa e cadeira para mim, numa pequena pilha já arrumada
para fechar a casa. Desistiu diante da dificuldade de levantar. Mas deu ordens no
terreiro, com voz embargada de álcool dirigida ao taberneiro. Agradeci a gentileza
e baixei a cabeça, não tinha qualquer interesse em encompridar conversa. Até porque
não havia chance de conversar.
O comilão seguiu zombando do cochilo do outro, em gritos controlados
pelo taberneiro com a ameaça de suspender os serviços.
Em pouco tempo, o carneiro ao molho e milhares de acompanhamentos
desceram sobre minha mesa. Eu não tive dúvida de que aquilo era um manjar dos
deuses, indeciso entre a fome ser o melhor tempero ou algum milagre de Natal.
Um cachorro vadio, de estimação do taberneiro e associado pelas
cores ao seu time de coração, foi encostando sorrateiro como convém aos cães
vadios. O faro apurado indicava que restos apetitosos poderiam cair ao chão por
simpatia dos comensais. E o taberneiro ralhou com o comilão quando ele jogou
ossos de frango. “Isso fura o bicho por dentro!”, gritou raivoso.
O comilão chegara àquela fase em que a boca entorta e os olhos
piscam em desacordo, cada um num tempo, e resmungou alguma coisa
incompreensível. Pelo menos estava concordando, não deu mais ossos de frango,
limitou-se a sujar o chão com arroz e feijão derramados na direção do animal.
Olhei para o fim do corredor do mercado. Além do portão havia um
largo arborizado e calmo, que terminava num beco estreito que ia ficando ainda
mais apertado e íngreme. Alguns homens sentados na calçada, quase no ponto em
que a vista não dobrava e o que havia depois se perdia de vista.
Um pouco antes do ponto, uma mulher que cumprimentara o taberneiro
com intimidade chegava em casa depois do trabalho – havia trazido alguns ingredientes
da ceia que acabara de preparar na casa da patroa e confidenciara que a noite de
Natal por lá prometia.
O taberneiro quis saber por que não ficou. “Não é festa pra mim,
homem. Meu presente ia ser uma pilha de louça suja”. Sábia de sabedoria extraída
do cotidiano.
Quando ela foi saindo devagar, ele ficou acompanhando o movimento
dos quadris como quem conhecia a intimidade daqueles passos. Teve a dignidade
de não dizer palavra.
Um homem veio descendo, tão esquálido quanto o beco. Trazia um
resto de cigarro pendurado no canto da boca, deixando um pequeno rastro de
fumaça pelo caminho. Era profissional do tabaco, sequer usava as mãos para o
ritual de fumar. O cão vadio correu para lhe cercar, demonstrando alegria. Recebeu
um leve aceno e veio ao redor.
Resolvi imaginar que aquele homem nunca havia entrado num cinema e
visto a mise-en-scène do manuseio
calculado dos cigarros ensinada nos filmes, a peso de ouro para a indústria do
tabaco. Ou, por certo, ele adotaria a coreografia enfumaçada dos galãs de
Hollywood, não teria razões para resistir.
Parou respeitoso encostado no balcão, falando baixo, e comprou
cigarros vagabundos no retalho. Meia dúzia. Pediu uma coxinha e um copo
daqueles sucos feitos de qualquer jeito. Imaginei que era seu almoço. Comeu em
pé, sem muita demora.
O taberneiro falou com orgulho sobre estar trabalhando naquele
dia. “Pra mim é um dia comum!”, alardeou. O homem fez um ar de riso sem
convicção e respondeu que não tinha nada programado, iria dar um giro e ver se
encontrava alguma coisa.
Pagou tudo com algumas moedas catadas a custo no bolso da calça,
surrada como ele mesmo, e foi embora devagar por dentro do mercado, até sair na
avenida principal e sumir na incerteza do dia que ia virar noite de Natal.
O taberneiro contou, sem eu perguntar, que aquele homem era
biscateiro no entreposto de hortifrutigranjeiros que abastecia a cidade. Vivia uma
vida difícil, solitário e caladão, mas era boa gente. “Acho que ele anda
adoentado”, encerrou.
Fiquei calado para cortar o assunto, não queria detalhes, estava
mais interessado naqueles sabores. Incapaz e controlar a língua, aproveitou meu
silêncio como senha para me perguntar o que eu fazia e se ainda estava trabalhando
naquele dia especial.
“Sou contador”, menti. Fui certeiro, não havia a menor chance de prosperar
uma conversa em bases fiscais num ambiente de negócio informal como aquele. Ainda
tentou continuar informando que os dois bêbados eram operários da construção civil.
Eu aquiesci com um leve aceno de cabeça, sem levantar os olhos. Enfim, o silêncio
que eu queria apareceu soberano.
O comilão, que tripudiara do amigo, agora também dormia a sono
solto, a cabeça pendida sobre a parede ao lado do balcão. O cão vadio deitou aos
pés dele, talvez orientado pelo registro daquele osso de frango na memória da
sobrevivência. Continuou ignorando o arroz e feijão espalhados pelo chão.
Paguei míseros pouco mais de dois dólares por aquilo tudo. O taberneiro
praticamente me intimou a voltar no dia seguinte. Foi insistente. Fiquei na dúvida
se queria manter o cliente ou tentar descobrir algo mais a meu respeito – dera inúmeros
sinais de que adorava a vida alheia. Prometi, para encerrar a prosa.
À noite, a caminho da ceia programada pela família, passei por uma
grande avenida. Havia um quiosque num terreno baldio, lugar com cara de lugar
nenhum, onde pessoas foram apenas chegando por ajuntamento em busca de uma
noite de Natal não programada. Mesmo na pressa do trânsito tive quase certeza
de ter visto o homem solitário, caladão, que comprou meia dúzia de cigarros vagabundos
no retalho. Ele caminhara um bocado em busca de um lampejo na escuridão.
Com lápis
invisível
Descrevo na
escuridão
O que não vejo
A viagem tinha sido tranquila e eu estava num quarto enorme de hotel
em Buenos Aires, com uma lua humilhante aparecendo na janela, espalhada sobre a
cidade no infinito limitado ao alcance da vista.
Saí algum tempo depois para encontrar um casal de amigos argentinos,
íamos a uma casa de tango de verdade, nada daquelas pantomimas montadas para turistas
onde até cavalos aparecem no palco.
A casa de tango era pequena. A orquestra soberba. A plateia podia
pedir músicas, que iam sendo inseridas no repertório. Arrisquei Libertango.
Súbito, o velho maestro perguntou quem havia feito aquele pedido. Levantei
a mão timidamente, quase me desculpando. Quis saber de onde eu era, fiquei com
a impressão de ser o único estrangeiro naquela noite.
Ele foi encantador ao me cumprimentar pela escolha, disse que era
uma música complexa e belíssima, uma peça genial que poucos músicos ao redor do
mundo se arriscam a tocar – inclusive nas casas de tango de Buenos Aires. Por fim,
falou com enlevo de Piazzolla e ainda me agradeceu por fazê-lo lembrar do
amigo.
Eu estava numa das primeiras mesas, perto demais. Contrariando meu
temperamento reservado, não resisti, dei três passos e fui até diante do palco,
me curvei perante o maestro. Ele me estendeu a mão. Nossas quatro mãos
entrelaçadas transmitiram o que sentimos pela música. Imagino que os aplausos
soaram respeitosamente para concordar.
O tango começou sem meias-palavras, ferino, ferindo na carne. Não
sei de onde aquele homem solitário, caladão, que comprou meia dúzia de cigarros
vagabundos no retalho surgiu na minha mente.
Talvez porque sua vida fosse aquele tango nu e cru, que não foi orquestrado
para entreter quem está na vida a passeio, que só era encontrado por quem pisava
ruelas e becos. Que só era tocado por quem formara calos no piso irregular da
estrada.
Comecei a enxergar o homem esquálido, que desceu o beco estreito, debaixo
daquele chapéu antigo, dentro do terno risca-de-giz sob a luz dramática, deslizando
nos sapatos luzidios, retratado nos traços magros e marcados do dançarino que flutuava
sobre o palco.
Imaginei-o tentando encaixar suas marcas de desilusão nos
movimentos da dançarina linda com aquela flor vermelha no cabelo negro, nas suas
curvas perigosíssimas, na fenda cruel do vestido sempre ludibriando o bote do fogo
de todos os desejos mais secretos. Vi a paixão e o medo duelando sem piedade em
cada passo, aquele jogo de tentativas de fugir e impedir, a coreografia de um
amor que não se deixa amar. Os dois esgotados, abraçados numa réstia fugidia do
escuro do palco, com a morte decretada pelo fim sem reconciliação, e a dor para
o resto da vida.
Sob o peso
da noite
E do vinho
amargo
Bati à porta
da treva
E gritei o
teu nome
Mas nada
ouvi senão ecos
A fulminar a
memória
Alguém chora
Mas não há
lágrimas
Exceto
vagalumes
Náufragos
aéreos
Que à deriva
espalham luzes
Do éden perdido
A música parou a dança, aplausos desmoronando de pé. A luz acendeu
o fim sem direito a bis, a plateia – imóvel – de náufragos aéreos tal vagalumes
à deriva, espalhando luzes do éden que se perdeu no acorde final, no passo que parou
a dança que não foi feita para parar.
O velho maestro me dirigiu levemente a batuta entre as duas mãos, nota
além da partitura, último aceno encantador. Como que me abrindo os olhos, me
dando respostas. Como se tivesse enxergado o homem solitário, caladão, que meses
atrás desceu o beco estreito, comprou meia dúzia de cigarros vagabundos no
retalho naquele mercado decadente e que eu jurava ter visto festejando o Natal num
lugar que tinha cara de lugar nenhum.
Não! Definitivamente, aquele homem, àquela noite, à beira da avenida
que levava à minha ceia de Natal, não estava à procura de Papai Noel. A Lapônia
era um lugar banal demais para quem, por força daquele destino, tinha a vida
traduzida num tango argentino. Um canto torto, feito faca. Algo bem além do
blues!
Trechos de:
Pão e luz (Horácio Paiva)
Sete elegias de um ano findo (Horácio Paiva)
Inspirações incidentais:
A palo seco (Belchior)
Mestre Heraldo,
ResponderExcluirTalvez liberdade seja poder, em uma véspera de Natal, se perder no mundo da lua, lendo e teclando, e só voltar à terra firme às três da tarde, com fome, e então sair pelas redondezas em busca de pé sujo redentor e terminar a tarde em um mercado decadente comendo um borrego divino (rsrs)
Você tem o dom de dar alto relevo aos seus personagens – inclusive o cão vadio! - tornando-os reais nos seus becos estreitos, nas suas vidas esgarçadas, nos seus corpos surrados, bebendo e fumando profissionalmente cerveja quente e cigarros no retalho, jogando conversa fora, nas atividades mais cotidianas em "lugares com cara de lugar nenhum".
E de repente o costumeiro final surpreendente: um aperto de mãos ao som do Libertango do grande Piazzolla e, surgido out of the blue, um fantasma traduzido pelo tango argentino, pela coreografia de “amores que não se deixam amar”. Colando as duas crônicas mais do que ler adivinhamos um byte de memória visível apenas para os companheiros que “formaram calos no piso irregular da estrada”. Um homem torto, feito à faca, mas cujos passos são ditados pelo anseio de viver em liberdade e pela repulsa contundente de viver sob opressão.
Mi libertad destranca la cárcel de mis huesos.
Mi libertad se ofende si soy feliz con miedo
Mi libertad me deja y soy un pobre espectro,
Mi libertad me llama y en trajes de alas vuelvo.
Mi libertad se infarta de hipócritas y necios,
Mi libertad trasnocha con santos y bohemios.
Mi libertad es tango de par en par abierto
Y es blues y es cueca y choro, danzón y romancero.
Mi libertad es tango, juglar de pueblo en pueblo,
Y es murga y sinfonía y es coro en blanco y negro
Mi libertad es tango que baila en diez mil puertos
Y es rock, malambo y salmo y es ópera y flamenco.
Mi libertango es libre, poeta y callejero,
Tan viejo como el mundo, tan simple como un credo.
Abração
Caríssimo,
ExcluirEu já vivi o suficiente para tratar essas "datas especiais" como dias comuns vestidos a rigor, mas que também transcorrem bem em "tenue de ville".
Os personagens tento descrever como são - ou me parecem. Afinal, surgem cristalinos. Ou quase. Aquele homem esquálido era, acho que acima de tudo, apenas um "outsider" que aparentemente conseguiu transformar esse traço no próprio modelo de vida. E assim parecia viver com autoridade. Talvez, por isso, "apareceu" na casa de tangos que, muito provavelmente, sequer imagina existir - a casa e o tango. Está livre naquele Libertango, está livre apesar de tudo. Abração.
O encadeamento entre as duas situações usando o homem magro e desconhecido com um cigarro na boca é maravilhoso, cinematográfico, quase surreal. Que beleza. Obrigado!
ResponderExcluirAndré,
ExcluirObrigado por suas palavras. Talvez a vida seja mesmo um filme que a gente vai imaginando ou, no extremo, administrando as cenas inesperadas. E não duvide, às vezes ela é mesmo surreal, cinematográfica.
Olá Heraldo,
ResponderExcluirBelo!
Concordo com o André dos Anjos na sua sua poética comparação. E sempre a presença do cigarro enfumaçado elegante. Fui amamentada entre eles e criada indo busca-los para os pais na emergência do desejo. E sinto falta deles ( ambos, porque um é a imagem dos outros) e buscaria mais quantos fossem necessários.
E o Moacir completa com a letra do belíssimo tango que canta a liberdade. Que ando com medo de descobrir diminuída a nossa, porque "azul é de menino e rosa é de menina". Ainda bem que a nossa liberdade lá do nosso íntimo, essa ninguém tasca!
Muito obrigada pela sua bela crônica.
Até muito mais"
Ana,
ExcluirObrigado!
Aquele cigarro era emblemático, como sempre foram os cigarros do cinema, tratados quase como personagens, atores coadjuvantes em muitas cenas. E faziam parte da vida das pessoas, como você tão bem relatou nas suas memórias.
A liberdade jamais é diminuída, porque, mesmo afrontada, é incapaz de superar o espírito livre da alma humana. Cores? São apenas cores, querida. Até porque, por força da liberdade, vão ganhando tonalidades e saindo do controle. Qual azul? Piscina, marinho, celeste...? Qual rosa? Bebê, "shocking", "nude"...?
Você bem disse, a nossa liberdade (do íntimo) ninguém tasca. Até muito mais.
Heraldo, permita-me classificar sua obra como Realismo literário, sem pressa de errar, pois o grande mestre desse gênero o Honoré de Balzac é o grande gênio dessa linha e vejo, nesse texto, lindamente descritivo, a alma urbana sendo retratada para quem nao esteve naquele mercado, e nem tao pouco na casa de tango. Nao esteve presente, precisamente, mas esteve após ler este texto maravilhoso. Deixo está frase memorável de Balzac como o realismo de nossos dias, proferida nos anos findos de 1800, mas que retrata com fidelidade nossos dias atuais. Grande abraço, amigo!
ResponderExcluirRafael Bezerra
„A liberdade leva à desordem, a desordem à repressão, e a repressão novamente à liberdade.“
Rafael,
ExcluirEu gosto muito de cinema, desde muito criança. E sou muito observador desde aqueles tempos, sempre atento a detalhes da vida e dos filmes. Talvez, por isso, aprendi a valorizar cenários, personagens, movimentos ao redor.
Acho que, ao abraçar o prazer do ofício da escrita, essa característica pessoal passou a me ajudar a compor os textos com muitos detalhes. E fico sem palavras ao receber seu comentário, levando meus rascunhos para a direção do Realismo do mestre. Obrigado, abraço.
No meu Rio Grande do Sul, beco sem saída pode ser também um brete, onde só se ode seguir em frente, jamais retornar.
ResponderExcluirAssim se levava o gado para dar banho, e retirar da rês os carrapatos que a infestavam.
O bicho não tinha como deixar de mergulhar, e adicionar o carrapaticida, inexoravelmente.
Hoje não é mais assim, claro.
Dito isso, e não querendo comparar, mas as crônicas de Palmeira sempre me deixam embretado, pois como deixar de elogiar este texto tão bem escrito?
Logo, sigo em frente aplaudindo mais este trabalho, tocante, interessante e que me prendeu a atenção do início ao fim.
Abraços, Palmeira.
Saúde e paz.
Bendl,
ExcluirMuito obrigado pelo seu comentário, você que sempre me dirige palavras tão generosas. Bom saber que o texto lhe interessou, manteve sua atenção. Saúde e paz para você também. Abraço.