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Moacir Pimentel
O fato é que a bulimia literária entre a Helene e o seu “Frankie” preencheu
as privações diárias na Inglaterra sob racionamento e trouxe para a roda os
demais funcionários do livreiro, para os quais Helene se tornara gradualmente a
amiga “misteriosa” da América. O
certo é que nos primeiros anos da correspondência ela jamais deixou de enviar alimentos
para seus amigos lá no número 84 da Rua Charing Cross.
A direção do filme dá um show de bola ao transformar essa presença
distante de Helene em um símbolo da modernidade, confrontando, por exemplo, o
seu estilo de vida independente ao da secretária que fazia chá para a equipe da
livraria e, principalmente, a abertura da mente da escritora versus a
simplicidade da de Nora, a esposa que Frank amava mas com quem dificilmente
teria condições de fazer “literatura” a quatro mãos.
Também funcionou intercalar as passagens livrescas mais eruditas com
trocas em terrenos mais triviais e ilustrativos das diferenças culturais: por
exemplo, quando Helene exalta os méritos da equipe de beisebol dos Dodgers que
disputam a Liga Mundial, Frank responde demonstrando o seu afeto pelo seu time
de futebol, o Tottenham.
Em 1953, Cecily diz a Helene para esquecer os pacotes de mantimentos
pois o racionamento tivera fim:
“Agora
tudo está disponível nas lojas até mesmo as benditas meias de nylon.”
E, em seguida, aconselha a americana a economizar para uma viagem a
Londres. Helene acompanha a aquisição do primeiro carro de Frank e Nora e lhes escreve
que teve que comprar “um novo apartamento
de verdade com móveis de verdade e carpetes de parede a parede”, embora
isso signifique adiar, mais uma vez, sua viagem para Londres.
Mas as cartas retornam sempre à velha e boa conversa literária. Depois
de comprar por seis dólares e de receber a primeira edição do livro Ideia de uma Universidade, de John Henry
Newman, Helene escreveu:
“O Newman chegou há quase uma semana atrás e só agora estou começando a me
recuperar. Eu me sinto vagamente culpada por possui-lo. Todo esse couro
brilhante e lindas letras douradas pertencem a uma biblioteca de painéis de
pinho de uma casa de campo inglesa. Ele quer ser lido perto do fogo na
confortável poltrona de couro de um cavalheiro - não em um sofá de segunda mão
em um quarto-e-sala”.
Apesar das dificuldades, de viver empobrecida mais da metade de sua
vida, do livreiro constantemente a consolá-la quando estava desempregada, Helene
jamais desistiu da carreira de roteirista e nunca se mostrou deprimida, muito
ao contrário. Ainda ficava toda animada toda vez que começava um novo roteiro
que para ela significava que estava novamente um passo mais perto de seu sonho
de infância: viver de escrever o que lhe dava na telha. Isso é expresso, com
fervorosa emoção, em uma de suas cartas para Frank, datada de 1959:
“Escrevo-lhe para dizer que tenho
trabalho. Eu ganhei! Ganhei um adiantamento mais do que o suficiente para eu me
manter por um ano, enquanto escrevo as dramatizações da História Americana!”
O adiantamento de cinco mil dólares da CBS significava que ela
sobreviveria por mais algum tempo, feliz da vidinha dela. Ela diz ao amigo que
seu primeiro roteiro versará sobre Nova York sob os sete anos de ocupação
britânica:
“Eu me maravilho de como eu sou
amigável e indulgente, mesmo que o comportamento de vocês por aqui, de 1776 a
1783, tenha sido simplesmente imundo”.
No começo de 1960, Helene foi forçada a vigiar suas finanças mais de
perto. Quando a moça avisou que não tinha mais dinheiro para comprar livros, Frank
insistiu em enviar-lhe seis volumes fiado garantindo-lhe que “seu crédito sempre será bom com a Marks
& Co.”
“FECHADO!”
É bonito acompanhar essa amizade se
fortalecendo, alimentada pela capacidade que os personagens têm de rir de si
mesmos e de nos divertir quando, por exemplo, a moça fica indignada ao receber
livros de segunda mão embrulhados com as páginas amareladas de outros livros
velhos:
“Vivemos em tempos depravados,
destrutivos e degenerados, quando uma livraria começa a destruir belos livros
antigos para usar como papel de embrulho”.
Só para depois concordar com a explicação de Frank Doel sobre a
conveniência da prática de se usar folhas soltas de livros caindo aos pedaços e
muito além da possibilidade de restauração como papel de embrulho em vez de
derrubar árvores para obtê-lo. É admirável a generosidade de espírito de ambos,
como eles expressam livremente seus pensamentos, críticas, queixas e perdão.
Esse filme enfatiza os detalhes com calma, com intimidade, de forma tal
que, de repente, ninguém estranha quando os dois passam a falar diretamente
para a câmera, como se estivessem realmente conversando um com o outro a milhares
de quilômetros de distância. Bem, é que o roteiro precisou usar todos os meios
e artifícios possíveis para transcrever, em termos cinematográficos, uma
narrativa literária na primeira pessoa do singular.
Às vezes, Helene e Frank surgem escrevendo e/ou lendo as cartas, às
vezes eles simplesmente se movem pelas suas vidas enquanto ouvimos suas
palavras e às vezes eles se dirigem à câmera, até mesmo em falas simultâneas,
como é o caso da cena abaixo.
As técnicas e truques funcionam e o filme é muito bem sucedido ao nos
convencer que a amizade é credível e os personagens importantes um para o outro.
Além disso a direção coloca em primeiro plano o entorno imediato e as
condições sociais de seus personagens do final dos anos 40 até o final dos anos
60, conseguindo transmitir muito bem a próspera atmosfera da Nova York na qual
Helene lutava para manter o nariz acima da linha d’água. Mostra-nos a rotina da
moça em um predinho dilapidado revestido pela famosa pedra “brownstone” bem ali
no coração do Carnegie Hill de Manhattan e à beira do Central Park, a livraria
frequentada por ela na Madison.
Faz-nos participar dos seus reforçados e tardios cafés da manhã de ovos
e bacon e torradas e suco de laranja, dos bicos que fazia como babá cuidando
dos filhos dos amigos casados – ela lia poesia para os pobres bebês (rsrs) - das
lasanhas e do pudim Yorkshire compartilhados com os vizinhos no seu
quarto-e-meia-sala bastante bagunçado, dos seus passeios pelo parque, da
iluminação das árvores e a música de Natal na cidade.
O texto se desenrola cronologicamente através das cartas datadas que
registram os fatos que ocorrem nas vidas dos personagens e servem um pouco como
uma crônica histórica de 1949 a 1969, pois versam sobre o pós-guerra de
Londres, a reeleição de Winston Churchill em 1951, a coroação da Rainha
Elizabeth II em 1953 e a campanha presidencial dos EUA de 1960.
E o tempo todo a gente simplesmente gosta dessa senhora encomendando
livros, recebendo livros, lendo sossegada, com calma e paciência, segurando
firmemente as velhas edições, gostando do livro recém chegado do velho mundo
como de um novo amigo que poderá ser para sempre. É adorável o jeito como ela
acaricia os livros desconhecidos postados de além mar, como se fossem amantes
já lhes demonstrando uma amizade quase amor, só de ler-lhes enlevada o título,
as orelhas, os prefácios, os índices, numa coreografia amorosa que a gente sabe
que vai dar em um casamento com uma vida de duração.
Enquanto os anos vão passando para Helene Hanff e Frank Doel, o filme
vai mostrando habilmente todas as mudanças nos cenários, nas conversas, na moda
e na arquitetura. Em 1949, quando a troca de teclas começou, Helene e Frank
viviam em moradias e ruas claramente distintas daquelas que lhes servem de
cenário no final da história. As filhas de Frank e Dora vão crescendo, e as
mudanças nos costumes, rotinas, roupas, estilos de cabelo, eventos, no som da
música saindo de um rádio, agem como relógios para lembrar ao espectador do
tempo dessa amizade.
Tais pistas visuais da passagem do tempo incansável compõem apenas uma
das muitas linguagens com as quais o filme se comunica. O significado da sua
mensagem, passado através de detalhes muito sutis, é que essas duas pessoas estão
investindo tempo um no outro em um mundo que muda radicalmente, que gira
precariamente em torno deles. Mas desde o famélico pós- guerra até o advento da
escandalosa minissaia Helene e Frank continuaram ali, separados pelo oceano mas
disponíveis um para o outro.
São muitas as maneiras através das quais este filme conta sua história e
nenhuma delas tem nada a ver com as cenas convencionais de “amor”. Só que, ao
fim e ao cabo, o espectador conhece Helene e Frank e seus sentimentos, de uma
forma que muito poucos filmes permitem que os seus personagens sejam
percebidos.
Nós podemos observá-los em flashes de suas vidas reais: Frank todo
desajeitado dançando uma coreografia tribal à beira do Tâmisa ou jantando com a
esposa, ou passeando com as filhas, ou atendendo um cliente na livraria versus
Helene correndo esbaforida escada acima abraçada a seus pacotes de livros e a
alegria dela ao encomendar para os amigos os quitutes dinamarqueses, sua
revolta quando é presa por desacato durante um protesto estudantil nos anos
sessenta e os dois falando dos livros, guardando-os
nas suas mentes e corações para que juntos possam compreender melhor o mundo e
se surpreender com o sempre imprevisível ser humano.
Anthony Hopkins deu a Frank Doel momentos realmente
inspirados nesse screenplay, sutis expressões faciais capazes de nos dar dicas sobre as emoções mais
profundas por baixo do verniz civilizatório e da densa reserva do livreiro. Ele
é responsável por muitas das grandes cenas do filme, como a que nos mostra
Frank no seu escritório quando de repente escuta, vinda da loja, uma voz
feminina com sotaque americano. Ele vai até o umbral da porta e se depara com
uma belíssima mulher, esguia e elegante sendo atendida por Bill. Por um breve
momento ele teve esperança que fosse... Helene??!! Não era...
Ou a contida porém imensa satisfação estampada em seu rosto
quando lê que Helene finalmente conseguira um emprego decente
como roteirista do programa de televisão “As
Aventuras de Ellery Queen”, que receberia duzentos dólares por episódio
escrito e que tinha a firme intenção de usar o dinheiro extra para estar
presente em Londres quando da coroação da
Rainha Elizabeth II, em 1953.
Ou aquela expressão de
profunda decepção que o pessoal do marketing – que entende das coisas ! -
eternizou no cartaz do filme: o olhar dele quando lê a carta na qual Helene lhe
comunica que terá de cancelar a viagem por causa de um inesperado e extenso e caríssimo tratamento dentário.
Quando ele permanece imóvel, no meio da loja, meio abestado, olhando
para o nada com saudade do que não foi e murmura: “Ela não virá”. Ou quando ele lê poesia e
pensa na moça...
Tais expressões faciais nos provam que um bom ator pode, com
grande sensibilidade, expressar tudo sem dizer nada. Frank terminou por comprar
o livro que lê na foto acima como um presente para Helene. E ela respondeu tão
logo o recebeu:
“Eu queria que você não tivesse escrito
a dedicatória em um cartão mas sim em uma das páginas. Foi o livreiro em você
que falou mais alto com medo de diminuir o valor de um livro raro. Mas você só
o aumentaria para a presente proprietária e, possivelmente, para o futuro dono.
Adoro as inscrições sobre as folhas e as anotações nas margens, gosto do
sentimento generoso de virar as páginas que outra pessoa já folheou”.
Também é bonita a tomada que nos mostra Helene no cinema, perdida na sua
fantasia de Londres enquanto assiste um dos clássicos da telona, o filme de
nome “Brief Encounter” – cujo título
no Brasil foi Desencanto - sobre um
caso extra-conjugal. Essa escolha de filme diz muito sobre como Helene se
sentia com relação ao Frank.
Last but not least é bom testemunhar essa senhora, que jamais lia ficção
mas amava poesia, encomendando-a ao alfarrabista nos seguintes termos :
“Mande-me um livro de poemas de amor com a primavera chegando. Nada de
Keats ou Shelley. Envie-me poetas que saibam fazer amor sem babar. Wyatt ou
Jonson ou alguém, use seu próprio julgamento. De preferência, uma edição
pequena o suficiente para escorregar dentro de um bolso e ir passear comigo no
Central Park”.
Seguinte: se eu tivesse recebido uma carta
inteligente e bem humorada dessas, escrita por uma mulher desconhecida que, na
minha delirante imaginação, se parecia com a estonteante Lauren Bacall...
pode apostar que, como o prezado Frank, eu também teria enviado para a moça o poema Cloths of Heaven - Tecidos do Céu – do
grande William Butler Yeats:
“Tivesse
eu as sedas bordadas dos céus,
Entremeadas
de luz de ouro e de prata,
Os
azuis e os pálidos e os negros tecidos
Da
noite e da luz e da meia luz,
Deitava-os
todos aos teus pés.
Porém,
sendo pobre, só tenho os meus sonhos;
Então
os estendi sob teus pés.
Pisa de leve, são meus sonhos que pisas.”
Noutra sequência, simples e eloquente, vemos Frank sentado em um parque
londrino, quando diante dele passa uma inglesinha de minissaia: a velha Londres
sisuda do terno, chapéu coco e do guarda-chuva se transforma diante de nossos
olhos na Swinging London dos Beatles e dos Rolling Stones, com direito a trilha
sonora.
Só que, no final de 1968, Helene Hanff se encontrava no ponto mais baixo
e no momento mais crítico de sua carreira. Durante anos, ela escrevera peças
que nunca foram produzidas, fizera leituras críticas mal remuneradas para a
Paramount Pictures, rascunhara artigos para enciclopédias, scripts de televisão
e livros infantis até que uma bela noite ela se sentou para fazer um inventário
de si mesma e do futuro dela.
“Eu era uma dramaturga falida. Eu não era nada”.
Talvez a grande ironia da vida dessa mulher, que sempre sonhou ser uma
autora teatral, que viveu martelando dezenas de peças em uma velha máquina de
escrever, seja que a única coisa de sua lavra que foi encenada na ribalta tenha
sido uma adaptação do seu famoso livro.
Foi nesse buraco negro profissional que, no dia 8 de janeiro de 1969,
Helene foi informada da morte de Frank. Ele fora levado às pressas para o
hospital por causa de um apêndice supurado e falecera uma semana depois
vitimado por uma peritonite. O homem de quem há mais de vinte anos vinha
comprando os livros que agora não tinha mais como pagar, o livreiro que
generosamente lhe dera um link com a Inglaterra que tanto amava, se fora.
Esse é outro dos momentos tocantes do filme, porque na cena anterior,
falando para câmera como se falasse com o amigo, Helene perguntara:
“Você ainda está aí, Frankie?”
Quando percebemos que aquela havia sido a última das cartas-conversas e
que, quando rolara, Frank Doel já havia seguido para o andar de cima, a cena é
emocionalmente eficaz. Helene, é claro, desaba:
“A notícia foi devastadora. Pareceu-me que a última âncora da minha vida
– a minha livraria - fora tirada de mim. Comecei a chorar e não pude parar.”
Pudera!
Frank havia se tornado o melhor amigo que ela já tivera, aquele que “a entendia melhor do que qualquer outra
pessoa”. É claro que nunca ter ido para Londres tornou-se um dos maiores
arrependimentos de Helene. E então uma carta de Nora Doel, a amável viúva do
livreiro, chegou a Nova Iorque cerca de vinte dias depois:
“Eu só queria que você e Frank tivessem se encontrado e conhecido pessoalmente
(...) Às vezes, não me importo de lhe dizer, eu sentia muitos ciúmes de você,
pois Frank gostava tanto de suas cartas, e elas, ou algumas delas, eram tão
parecidas com o senso de humor dele. Além disso, eu invejava a sua habilidade
para a escrita. Frank e eu éramos tão opostos. Ele sempre tão bom e gentil e
eu, com meu passado irlandês, sempre lutando por meus direitos. Eu sinto tanta
falta dele. A vida era tão interessante, ele sempre explicando e tentando me
ensinar alguma coisa sobre os livros.”
Quando finalmente Nora e Helene se encontraram – noutro livro escrito em
1973! – a primeira contou à segunda: “Eu
perguntava para ele, que tipo de marido você é, para trazer as cartas de outra
mulher para casa?
E a segunda respondeu à primeira: “Se
ele não as tivesse levado para casa, você teria tido motivos para se preocupar.”
E Nora assentiu:
“Isso é exatamente o que Frank costumava dizer”.
Merece respeito o depoimento dessa esposa irlandesa para quem o marido
lia as cartas de outra mulher falando de livros que ela desconhecia. Um fato
que adiciona uma pitada de estoicismo ao casamento (rsrs)
A despedida de Frank, a princípio, desnorteou Helene. Ela foi forçada a
encarar que sua mais preciosa amizade, uma história de quase amor, inteligente,
delicada e epistolar, chegara ao fim. Terminavam com Frank as cartas tão
carinhosamente enviadas e recebidas e as alegrias dos livros de segunda mão, pois
a livraria Marks & Co não conseguiu sobreviver ao seu gerente e cerrou as
portas.
A longa correspondência com “a sua livraria”, e especialmente com Frank,
no entanto, dera-lhe um vínculo precioso com a cidade que ela agora parecia
destinada a nunca mais conhecer. Para um amigo que estava em Londres ela
escreveu:
“O homem abençoado que me vendeu todos os meus livros morreu há alguns
meses. Mas a livraria Marks & Co ainda está lá. Se você passar lá no número
84 da Rua Charing Cross, beije-a por mim! Eu lhe devo tanto”.
Mas, no fundo do poço, realmente desolada, de alguma forma essa senhora
reagiu e soube
que tinha que escrever a história de seu relacionamento com a loja e, em
particular, com Frank Doel, tinha que tentar teclar o seu “pequeno livro de nada”. Foi então que ela pensou em transformar as
cartas trocadas com o livreiro britânico em um conto, uma short story, uma espécie de tributo ao amigo alfarrabista.
A carta seguinte vinda da Inglaterra chegou assinada por Sheila Doel,
uma das filhas de Frank e juntamente com ela veio um pacote contendo as cartas
que Helene escrevera para o seu pai e uma autorização para que publicasse a
correspondência sob a forma de livro. Anos mais tarde, quando o livrinho bombou
e foi transformado em peça e por fim no filme, a mesma Sheila, em uma
entrevista, declarou que Helene garantira à sua família grande parte dos
direitos autorais do seu sucesso.
“Enquanto crescíamos nós a imaginávamos como uma fada madrinha
americana. Como uma mulher tremendamente rica e glamourosa, como Lauren Bacall.
Foi um choque, quando eu finalmente a conheci e percebi o quanto estivéramos
enganados”.
Quando finalmente terminou de escrever o conto, Helene tinha
datilografado mais de sessenta páginas, o que seria demais. Então um amigo
sugeriu-lhe que incluísse mais algumas cartas e transformasse um longo conto em
um pequeno livro. Bingo!
O livro epistolar brotou do profundo sentimento de perda de Helene e,
publicado nos EUA em 1970, foi um sucesso instantâneo. Inesperadamente, a
escritora foi catapultada da obscuridade para os holofotes e passou a ser festejada
na mídia como uma nova celebridade literária.
Escreveu Helene:
“Como eu ia saber que o milagre estava
esperando para acontecer quando eu virasse a esquina no final da meia idade?
84, Charing Cross Road não foi um bestseller nem me tornou rica ou famosa. Só
me trouxe centenas de cartas e telefonemas e provocou resenhas maravilhosas.
Ele restaurou as minhas auto confiança e estima que eu havia perdido em algum
lugar ao longo do caminho, só Deus sabe há quantos anos atrás. “
Na Grã-Bretanha, o livro foi publicado alguns meses depois e em junho de
1971 Helene Hanff finalmente desembarcou no aeroporto de Heathrow para
aproveitar cinco semanas na cidade de seus sonhos. É que o seu pequeno livro
fez ainda mais sucesso no Reino Unido do que nos EUA e com milhões de fãs
ingleses Helene transformara-se em um fenômeno.
Em 1975 o livro foi adaptado para uma série de televisão pela BBC. Em
1981 subiu na ribalta e bombou em um teatro do West End londrino. Mas a
escritora só atingiu o auge da fama quando lhe telefonaram de Hollywood e o
produtor Mel Brooks adquiriu o roteiro para ser estrelado por sua então esposa,
Anne Bancroft.
Sucede que o bom Frank Doel era apenas uma parte dos sentimentos de
Helene pela Inglaterra, por Londres, pela literatura inglesa e não o romance
completo. O filme termina com a nota certa, logo na sua primeira cena – o resto
é flashback - quando Helene finalmente viaja para a Inglaterra e a vemos
primeiro em um avião que se aproxima de Londres, sendo acordada pelo sol
através da janela. Para, em seguida, nos oferecer a visão da cidade pela janela
do seu táxi e por fim uma peregrinação à livraria vazia e empoeirada onde ela
finalmente diz para os seus fantasmas:
“Eu estou aqui”.
Na real Helene desembarcou na Inglaterra a 17 de junho de 1971, dois
anos e meio depois da despedida de Frank. As semanas que passou em Londres a
inspiraram a escrever um diário de bordo de nome The Duchess of Bloomsbury Street – publicado no Brasil sob o título
Duquesa de Bloomsbury – que de certa
forma é uma continuação do primeiro best-seller. Sendo uma amante confessa dos
livros do tipo “eu estava lá”, Helene
está na sua melhor forma literária quando descreve suas próprias experiências e
os seis livros que publicou – dizem! - formam uma autobiografia quase contínua.
Quando a peça 84, Charing Cross Road estreou no West a platéia aplaudiu
de pé quando Helene subiu ao palco para abraçar a atriz principal, no final da
apresentação. No dia seguinte, o Times publicou:
“A visão de Helene Hanff piscando no cenário da livraria que ela tornou
famosa sob o aplauso da cidade que nunca antes pudera se dar ao luxo de
visitar, transformou a estreia da noite passada no final de um conto de fadas:
carinho obscuro coroado por aclamação pública “.
Foi nas páginas da Duquesa de
Bloomsbury que reencontrei Helene estreando um programa mensal na BBC de
nome Carta de Nova Iorque e
realizando o seu sonho de visitar a “Londres literária”, de John Donne a
Charles Dickens.
E nós estaremos lá, naquelas paragens enevoadas, desvendando a cidade
que foi o personagem oculto do primeiro e a protagonista do segundo livro dessa
escritora surpreendente que eu gostaria de ter conhecido.
Enquanto espera a próxima conversa e os “negócios inacabados” da Helene,
dê uma espiada, por favor: