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01/02/2020

Amor em tempos de guerra



                              Heinrich Himmler inspecionando um campo de prisioneiros - foto da imprensa alemã



Histórias de amores impossíveis, ou quase, não faltam na literatura, mas a que segue é verdadeira, não fui eu quem inventou.
Durante a épica retirada de Dunquerque, em 1940, um dos episódios mais dramáticos da Segunda Guerra Mundial, um soldado inglês,  Horace Greasley, foi capturado pelos alemães e levado para um campo de prisioneiros de guerra na Silésia, que tinha sido anexada pelos alemães, e lá foi colocado para trabalhar numa pedreira de mármore.
No campo ele conheceu a filha de dezessete anos do diretor da pedreira, Rosa Rauchbach, que trabalhava como intérprete entre os nazistas e os prisioneiros. Apesar da situação, os dois supostamente inimigos se apaixonaram e logo começaram a procurar todas as oportunidades possíveis para se encontrarem, burlando a vigilância dos guardas.
Os Rauchbach eram de ascendência judia, fato que tinham conseguido ocultar dos invasores nazistas; se o namoro da filha fosse descoberto a moça e sua família corriam o risco mortal de ter a sua origem revelada no inquérito que fatalmente se seguiria.
Durante quase um ano os dois conseguiram ir levando o caso, até que Horace foi inesperadamente transferido para um outro campo, Freiwaldau, anexo ao tristemente famoso campo de Auschwitz, a mais de sessenta quilômetros de distância.
Freiwaldau ficava tão para dentro do território alemão que os alemães aparentemente consideravam que qualquer estaria praticamente cometendo suicídio se tentasse escapar e chegar até a fronteira mais próxima com a Suécia, a quase setecentos quilômetros de distância. Talvez por isso a segurança do campo não fosse tão apertada como a daquele em que o nosso apaixonado estava antes.
Os deveres de Rosa como intérprete nos diversos campos a levavam algumas vezes para perto da nova prisão de Horace. Ele então conseguia passar recados para ela através dos prisioneiros que saíam do campo para trabalhar, que também traziam as suas respostas, e quando ela estava por perto ele burlava a vigilância dos sentinelas e se esgueirava por baixo do arame farpado para ir  encontrar a amada. Depois voltava, esperando a noite para entrar novamente no campo protegido pela escuridão.
A fotografia que abre esse post, dos arquivos da imprensa alemã, mostra um prisioneiro sem camisa, confrontando o todo poderoso chefe das SS, Heinrich Himmler, durante uma visita de inspeção deste ao campo de prisioneiros. O prisioneiro foi posteriormente identificado como Horace. Ele, que na ocasião não sabia que o oficial era o famigerado Himmler, sabia apenas que era alguém de alta patente, contou mais tarde que tirou a camisa para mostrar a sua magreza e reclamar da pouca comida que os prisioneiros recebiam.
Rosa ajudava Horace o quanto podia e se arriscava ainda mais contrabandeando através dele pequenos embrulhos de comida e peças de rádio, com as quais os prisioneiros construíram um receptor que lhes permitia ouvir clandestinamente as transmissões da BBC.
Os dois pombinhos conseguiram continuar se encontrando dessa maneira, sem serem descobertos, até que Horace foi finalmente libertado pelas exércitos aliados em maio de 1945. De volta à Inglaterra ele continuou a se corresponder com Rosa, mas pouco depois recebeu a notícia de que ela, grávida, tinha morrido de parto, junto com o bebê. Ele disse que nunca soube com certeza se o filho era dele ou não, mas a dedicação e os riscos que a namorada correu pelo soldado nos inclinam a pensar que era.
Nosso Romeu acabou se casando vinte e cinco anos mais tarde e veio a morrer em 4 de fevereiro de 2012, na Costa Blanca, na Espanha, para onde se mudou com a mulher depois de se aposentar em 1985, deixando um filho e uma filha.
Seu obituário foi publicado no jornal inglês “The Telegraph”, onde vim a conhecer esta história de amor em tempos de guerra, e você pode lê-lo aqui: http://www.telegraph.co.uk/news/obituaries/military-obituaries/army-obituaries/7223148/Horace-Greasley.html


8 comentários:

  1. 1) Bela história real, parabéns Wilson.

    2) Me fez lembrar a historia de um conhecido aqui onde moro. Não tenho autorização para dar detalhes:

    3)Nascidos em Berlin no pós guerra, ele e ela era jovens. Ele veio para o Brasil e prometeu assim que tivesse casa no RJ iria buscá-la e então casariam.

    4) Mas, nesse meio tempo fizeram o muro de Berlin, ela morava na parte oriental e ficou na RDA - República Democrática Alemã, dominada pelos soviéticos.

    5) Menos de um ano depois, ele foi buscar a namorada. Em Berlin Ocidental, dominada pelos norte-americanos, conseguiu contato com as autoridades da RDA, foi até Berlin Oriental, foi preso, mas finalmente o casal foi libertado e moram até hoje no Rio. Tem duas filhas..

    6) Dá um filmaço !

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    1. Wilson Baptista Junior04/02/2020, 16:08

      Mestre Antonio, muitas histórias destas devem ter acontecido em todas as guerras, mas só fomos ficar sabendo delas à medida em que a quantidade de pessoas e países envolvidos foi aumentando ao longo do tempo, e as viagens entre os continentes foram ficando mais fáceis. Que bom saber dessa dos seus amigos, e que bom que ela teve um final mais feliz do que a que contei.
      Um abraço do Mano

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  2. Heraldo Palmeira02/02/2020, 17:19

    Mano,
    E você, seu grandessíssimo contador de histórias, ainda fica falando dos rascunhos da minha Bic Cristal azul. Francamente!!!

    Grande história, ainda mais para alguém, como eu, que adoro o que se relaciona com a Segunda Guerra e essas experiências humanas de superação. Abraço.

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    1. Wilson Baptista Junior04/02/2020, 16:09

      Heraldo, a diferença entre esta história e as belas pretinhas que brotam do azul de sua BIC é que essa já estava pronta, feitinha pela vida, só tive que armar a moldura do quadro, enquanto as suas partem da tinta e do pincel que vão colocando na tela as coisas que seus olhos guardam no seu coração.
      Fico feliz de saber que você gostou.
      Um abraço do Mano

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  3. Moacir Pimentel02/02/2020, 17:24

    Wilson,
    O seu post sobre Horace Greasley é muito oportuno nesses tempos estranhos nos quais tem assim ó de maluco afirmando por aí que o Holocausto jamais existiu. Decerto que conversar sobre os campos de extermínio nazistas não é fácil, emocional ou intelectualmente. A leitura dessa página da História nos deixa entorpecidos e nos destrói a fé em Deus, na decência e moral humanas e na inevitabilidade da nossa evolução e progresso. Mas ler é preciso porque o estudo dessas mortes está a serviço da vida e porque o mundo não pode esquecer como essa monstruosidade começou devagar: o preconceito milenar levou à discriminação, a discriminação à perseguição, a perseguição ao encarceramento, o encarceramento à aniquilação. É muito melhor aprender pela leitura que na fragilidade da democracia, nas lideranças que transformam oponentes em inimigos, na insegurança jurídica, no uso tolerado da violência para reprimir a dissidência e as liberdades moram as sementes dos genocídios.
    Com certeza o assassinato em massa de seis milhões de judeus - que não começou com os judeus nem matou apenas judeus – não faz qualquer sentido. Só que para entender nossa era, é preciso enfrentar essa ausência de racionalidade e também a presença assustadora do mal sistemático, patrocinado pelo Estado e industrializado nos campos da morte e as pessoas que serviram nesses matadouros : os assassinos em massa. Alguns deles eram sádicos, doentes mentais, criminosos entusiastas mas muitos eram homens e mulheres comuns e relutantes tentando fazer o melhor possível para cumprir suas obrigações durante uma guerra mundial, usando suas habilidades profissionais para se tornarem genocidas mais eficientes.
    Nessa luta entre vítimas impotentes e uma máquina de matar esmagadora e poderosa, a indiferença da neutralidade é tudo menos neutra: é uma sentença de morte. Todos foram cúmplices e assassinos. Porém...antes de desistir da espécie humana diante da “banalização do mal” é necessário ler também as histórias de tantíssimos homens e mulheres que foram solidários e abriram suas casas e seus corações para as vítimas, proporcionando-lhes um lugar para dormir, uma crosta de pão, uma palavra gentil, um esconderijo. E finalmente precisamos entender as circunstâncias das próprias vítimas, que tiveram que fazer escolhas entre o impossível e o horrível, que enfrentaram a absoluta impotência e no entanto, como esse corajoso rapaz, estavam longe de serem passivas: suas resistência e coragem se manifestaram de várias maneiras. Por exemplo, consigo imaginar o alento dos prisioneiros na escuridão das noites frias, escutando pelo rádio cujas peças Horace havia contrabandeado arriscando a vida, a voz da BBC narrando o avanço das tropas aliadas.
    Que o jovem tinha brio não resta dúvida, mas talvez ele tenha sobrevivido por causa do amor que o unia à moça. Dizem que os prisioneiros dos campos de extermínio nazistas tinham uma expectativa de vida média de algumas semanas, no máximo alguns meses. Horace conseguiu se manter vivo durante cinco anos! Somente o instinto de sobrevivência mais teimoso combinado com uma avassaladora “pulsão de vida”, como dizia Herr Freud, poderiam tê-lo conservado inteiro em condições de pesadelo.
    Creio que a esperança de estar com a mulher amada amanhã, na semana vindoura, no mês que vem, quem sabe na vida, o tenha segurado e empurrado através da fome extrema, da diarréia crônica, do frio enregelante, da sujeira, da doença, da tortura física e psicológica, da humilhação, da exaustão do trabalho escravo em ritmo frenético e sem descanso. Noto que ele só constituiu família vinte e cinco anos depois de ser libertado. Pudera! Mas pelo pouco que li ele não foi infectado pelo mal, não se dobrou, não teve a mente aleijada nem a alma amesquinhada. Uma história de vida realmente inspiradora.
    Abração

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    1. Wilson Baptista Junior04/02/2020, 16:09

      Moacir, dizer o que do seu comentário, que disse tanto? Só reafirmar que, enquanto o comportamento de tantos nos faz perder a fé na decência e moral humanas, o de tantos outros nos faz acreditar de novo na coragem, na abnegação e naquela chama que embora às vezes vacile e por isso nos assuste, se mantém viva aqui e ali nessa humanidade que aos trancos e barrancos vem sobrevivendo desde que o primeiro dos nossos avós desceu das árvores, olhou para o céu e viu as estrelas. Ainda que alguns dos que mais deram de si para mantê-la acesa confessem, que, no fundo, queriam era ter sido jardineiros...

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  4. Francisco Bendl02/02/2020, 22:16

    Mano,

    Bela postagem, pois aborda uma das tantas histórias comoventes que as guerras produzem.

    Se, nos conflitos, a espécie humana atinge seus maiores paroxismos, sejam eles de crueldade ou de amor, quando este sentimento prepondera sobre o mal, a esperança no próprio ser humano ressurge, e a vitória de um lado e, a derrota, pelo outro, servirão como motivação para que a humanidade se una de novo, volte a ser coesa, solidária e atenciosa.

    Sei desses episódios e suas importâncias, dramas, tragédias, injustiças, dentro da minha família:
    Meus avós paternos saíram da antiga Tchecoslováquia para o Brasil depois da Primeira Guerra, que dizimara a Europa;
    Meus tios avós maternos - o tio foi morto na Segunda Guerra -, mas a minha tia-avó se imprensava entre o cordão da calçada e da rua, para se proteger dos bombardeios e destruição dos prédios.

    Cascas de batata quando encontradas no lixo eram iguarias!
    Ratos eram filé mignon!
    Com o término da guerra, a minha tia, que fui sobrevivente do conflito, conseguiu vir para o Brasil com o seu filho, para encontrar-se com a sua irmã que conseguira evadir-se da Alemanha antes da guerra ser declarada, em 1.939.

    Me contavam que a festa desse reencontro foi qualquer coisa de memorável, pois era dado como absoluta a sua morte na guerra.

    Enfim, textos como este, Mano, devem ser postados volta e meia.
    Não podemos esquecer que estamos sempre sujeitos às tentações do poder, do comando, de subjugar os mais pobres e mais fracos.

    Se existem exemplos do quanto o ser humano pode se transformar em uma besta, os campos de concentração construídos pelos nazistas servem como modelos incomparáveis dessa crueldade indescritível que foram esses locais de extermínio.

    Nada, antes do maior conflito da humanidade, as inúmeras guerras conhecidas usaram as prisões onde colocavam seus inimigos como alimentos às indústrias da morte!
    Até mesmo as mais selvagens hordas de conquistadores não foram tão bestiais como os nazistas, que afloraram de maneira escancarada o quanto podemos nos transformar em monstros quando somos instigados ou impulsionados para esta finalidade, de matar o próximo com requintes hediondos e sádicos.

    A história que registraste, Mano, se não ameniza os horrores da guerra, demonstra que as destruições, os sofrimentos, as perdas materiais e pessoais, as dores pungentes e insolúveis, podem ser superadas quando um homem e uma mulher se unem através do amor.

    Não existe fortaleza maior; não há refúgio mais protegido; desconhecemos força maior para continuarmos vivos ou suplantar os dolorosos episódios que vivemos e fomos testemunhas.

    A lamentar, que Horace não reencontrou o seu amor.
    Se o sentimento que o uniu à mulher amada sobreviveu, ela não se tornou a realidade que tanto o levou a seguir em frente.

    Mas, que história de amor não tem o seu final trágico??!!

    Abração, Mano.
    Saúde, muita saúde junto aos teus amados.

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    1. Wilson Baptista Junior04/02/2020, 16:10

      Chicão, então o Bendl do teu lado paterno e o Bernhauss do meu lado materno vêm da mesma terra que no tempo dos meus ainda era o reino da Boêmia, com a diferença de que os meus vieram de lá antes do cataclisma iniciado por aquele fatídico disparo em Serajevo...
      Pelas histórias da tua família então sabes bem do que passaram tantos milhões de pessoas de todos os lados das duas grandes guerras. Mas, como bem dizes, o amor, e, acrescentaria eu, a coragem (porque não se precisa dela para o amor de verdade?) sobreviveram e ajudaram a sobreviver a essas tempestades.
      Um abraço do Mano

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