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09/02/2020

O Salvador do Mundo

Leonardo Da Vinci - Salvador Mundi - por volta de 1500 (imagem wikipedia)
Moacir Pimentel
Sempre foi fato notório que Leonardo da Vinci pintara um Cristo abençoando o mundo, como rezava a iconografia católica, pois a pintura, batizada de Salvator Mundi, foi descrita detalhadamente em vários documentos dos séculos XVI e XVII. O mundo da arte também já conhecia cerca de vinte outras pinturas de menor qualidade do mesmo Cristo sempre abençoando a humanidade, feitas por vários dos alunos e/ou seguidores de Leonardo, copiando a pintura original.
Portanto foi motivo de muitas notícias nos jornais as redescoberta, restauração e exibição na National Gallery de Londres - do verão de 2011 ao inverno de 2012 - de uma pintura do Cristo em trajes da Renascença, abençoando-nos com a mão direita e segurando uma esfera de cristal com a mão esquerda. É que todos acreditavam que o Salvator Mundi de da Vinci tivesse se perdido para sempre.

Além disso, convenhamos, essa pintura não é de fácil abstração: a figura do Cristo foi pintada de frente e não de ladinho como a maioria de suas irmãs e parece um tanto embaçada porque o Mestre pintava cometendo camada após camada de tintas e esmaltes que, no caso, se perderam na poeira do tempo deixando o Cristo sem muitas nuances e com um olhar estranho, fora de foco que, dizem os opositores, parece até "chapado" (rsrs)
A prestigiada galeria britânica, porém, apresentou o painel ao mundo de forma séria: só depois que ele já havia sido analisado e restaurado e abençoado pelos maiores historiadores de arte e especialistas em Leonardo do mundo. Porque na primeira década no novo milênio, havia sobre a obra de arte duas principais dúvidas que resultavam em ásperos debates. A primeira tinha relação com a extensão dos danos sofridos pelo painel durante quinhentos anos e a segunda com quanto das tintas de Da Vinci permaneciam na pintura que, é claro, poderia ter sido, inclusive, “leonardizada” durante a restauração.
De acordo com a National Gallery “a pintura foi estudada em comparação direta com A Virgem das Rochas de Leonardo, um trabalho feito aproximadamente na mesma época, por David Allan Brown - Curador de Pintura Italiana da  Galeria Nacional de Arte de Washington, DC, Maria Teresa Fiorio - da Raccolta Vinciana de Milão, Luke Syson - Curador de Pinturas Italianas na Galeria Nacional de Londres, Martin Kemp – professor de História da Arte da Universidade de Oxford, Pietro C. Marani - professor de História da Arte na Politécnica de Milão - e Carmen Bambach -  do Metropolitan Museum of Art de Nova York.
Mais tarde a peça também foi examinada por Vincent Delieuvin, do Louvre de Paris e por David Ekserdjian da Universidade de Leicester, e a conclusão a qual chegaram “por amplo consenso” é que o Salvator Mundi fora pintado por Leonardo da Vinci e era “a única pintura original da qual são oriundas as muitas cópias e versões feitas por inúmeros alunos e pintores.”
Então, em 2011, a ressurreição do Salvator Mundi foi concluída e ele debutou em um endereço acima de quaisquer suspeitas como uma pintura do Mestre Leonardo. 
Trata-se de uma pintura a óleo do século XVI, numa pose de meio-corpo típica da pintura renascentista, medindo exatos 65,6 x 45,4 centímetros e feita sobre um painel de nogueira.
O que mais sabemos sobre o Salvator Mundi?
Dona História prova que Leonardo começou a pintar um Salvator Mundi em 1500, por encomenda do rei Luís XII da França e que completou-o aproximadamente sete anos depois.
O primeiro proprietário documentado da pintura, no entanto, foi o rei Charles I da Inglaterra em cuja coleção o trabalho foi registrado em 1649. Mais tarde, a obra foi propriedade de Charles II, em seguida foi adquirida pelo Duque de Buckingham e simplesmente desapareceu após ter sido vendida pelos seus herdeiros. Cento e trinta e sete anos depois, em 1900, um magnata da indústria têxtil inglesa de nome Sir Frederick Cook adquiriu a pintura para sua fantástica coleção pessoal que incluía obras de Fra Angelico, Filippo Lippi, van Eyck, Velázquez e Rembrandt.
Em 1940 a pintura foi exibida na Inglaterra com outras obras da coleção Cook e catalogada como sendo da escola milanesa – mais ou menos 1550 – e de autoria de um aluno de Leonardo, de nome Giovanni Boltraffio. Em 1958, o Salvator Mundi foi vendido na casa de leilões Sotherby de Londres, a um empresário americano de Nova Orleans, de nome Warren Kuntz, por quarenta e cinco libras, um preço justo pela cópia – pobre! - do trabalho original que então se acreditava que fosse.
Em 2005, a pintura foi adquirida por um consórcio de negociantes de arte americanos que incluía Robert Simon, um especialista em antigos mestres que iniciou uma cruzada para provar ter sido o seu Salvator Mundi pintado por Leonardo. 
O tema do Cristo Salvator Mundi já fora popularizado, mesmo antes de ser pintado por Da Vinci, por outros artistas como o holandês Albrecht Dürer e o italiano Antonello Messina, cujos trabalhos se pode ver abaixo na coluna horizontal superior da montagem. Note que, nas mãos que abençoam, tanto Dürer como Messina pintaram os polegares, de forma idêntica, voltados para a esquerda.
Uma das principais razões que fez os americanos cogitarem se aquele Salvator Mundi não poderia ser um trabalho de Leonardo foi a clara e manifesta superioridade do painel sobre as mais de vinte versões pintadas do mesmo tema. O Salvator Mundi em causa é de longe o mais completo e sofisticado dentre todos os demais trabalhos.
Durer - Salvator Mundi / Messina - Salvator Mundi / Hollas - Salvator Mundi / Leonardo - Salvator Mundi (imagens wikipedia)

Em vez, embaixo à sua esquerda, na meticulosa gravura feita em 1650 pelo artista Wenceslaus Hollar que comprovadamente teve acesso ao Salvator Mundi original na coleção de Charles I, o polegar foi pintado de forma diversa.
Note, comparando as fotos, que os polegares, tanto na gravura de Hollar à esquerda quanto na foto em preto e branco do Salvator Mundi à direita, foram pintados de forma idêntica : virados para a direita da figura. 

Veja como são similares, nos mínimos detalhes - as mãos, os polegares, o globo e as roupas - as figuras tanto na gravura do século XVII quanto na foto feita em 1912 do painel de Leonardo, desfigurado por camadas de tinta antes de ter sido limpo e restaurado.
Essa correspondência entre o painel e a composição de Wenceslaus do Salvator Mundi foi outro forte argumento a favor da atribuição do Salvator Mundi ao gênio renascentista.
E perceba como o Salvator recebeu barbas e bigodes cerrados, talvez para adequar o Cristo de Leonardo à imagem “oficial” de então. O problema é que o painel não foi reconhecido por tanto tempo justamente por causa dessas camadas de tinta que lhe acentuaram barba e bigodes e obscureceram grande parte da sua superfície.
No entanto, mesmo tendo sido a obra muito alterada, pintada por cima e passado por algumas limpezas pretéritas desastrosas havia pedaços sobreviventes intocados da obra original de altíssima qualidade - a mão abençoando, os cachos de cabelo encaracolados à direita, o padrão da estola e a esfera de vidro - que eram visíveis mesmo obscurecidos por camadas de sujeira e verniz.
A pintura era claramente um trabalho extraordinário e, embora não houvesse ainda nenhuma crença séria de que se tratava de um Leonardo, os então proprietários decidiram investigar e investir nela fazendo-a ser examinada, restaurada e estudada pela famosa Dianne Modestini, Chefe do Departamento de Pesquisa e Conservação de Pinturas do Instituto de Belas-Artes da Universidade de Nova York.
Uma vez retiradas as camadas extras de tinta e verniz e a sujeira de séculos, o que a profissional encontrou foi uma pintura incrivelmente delicada. 


Segundo a restauradora “o painel original de nogueira no qual Leonardo, conhecido por seu uso de material experimental, executou o “Salvator Mundi” continha um nó que ocasionou a sua quebra logo no início de sua história. No entanto partes importantes da pintura estão notavelmente bem preservadas e próximas ao seu estado original. Isso inclui as duas mãos do Cristo, os requintados cachos de seus cabelos, a esfera e grande parte dos drapeados e das mangas. No que diz respeito ao rosto houve perdas, mas os tons de pele do rosto retêm toda a sua estrutura incluindo os esmaltes. Essas partes da pintura não sofreram abrasão; se tivessem sofrido, eu não seria capaz de reconstruir as perdas.”
Eis o Salvator Mundi depois de ser limpo e antes de ser restaurado:  

 imagem www.patricktaylor.com
 

Aparentemente a restauração minimizou o impacto visual das idiotias pretéritas com uma quantidade mínima de interferência e remediou alguns problemas e danos, mas os resultados de centenas de anos de maus-tratos ainda são evidentes.
Depois de quase sete anos de estudos, de análises técnicas e da longa restauração da obra obscurecida, uma pintura de inegável importância e beleza foi revelada ao mundo.
Sem os cabelos e sobrancelhas que lhe tinham sido adicionados apareceram as inconfundíveis características dos rostos de Leonardo e as suas maravilhosas cores: os azuis e os vermelhos na pintura são muito similares aos da Última Ceia e os pigmentos também são muito semelhantes àqueles das duas Virgens das Rochas.
Ficou provado que esse Cristo de mãos leonardescas fora pintado por um canhoto como Leonardo e o painel de madeira, as tintas e a moldura foram inquestionavelmente datados como sendo da primeira década do século XVI. Além disso foram identificadas digitais de dedos de uma mão direita na pintura, e é notório o fato de que Leonardo usava sua mão direita para esfumaçar as camadas de tinta.
O Cristo lembra por demais as Monas Vanna e Lisa como também o Jesus da Última Ceia - atenção para olhos e os cabelos cacheados.
Leonardo Da Vinci - Salvator Mundi (imagem wikipedia) / Mona Vanna (imagem www.flickr.com/photos/61538883@N04/6214954012) / Ultima Ceia (imagem br.pinterest.com/sharonballoch/davinci/ / Mona Lisa (imagem wikipedia)

As pinturas de Leonardo da Vinci são raras e a adição de um Cristo a esse seleto clube, sob as bençãos de estrelas do mundo acadêmico, foi o evento artístico do século. Lembro perfeitamente que quando da exibição do Salvator Mundi   havia um consenso inequívoco de que tratava-se de um Da Vinci, uma unanimidade rara entre os doutos. 
Até mesmo a belíssima Dama com o Arminho - de propriedade do Museu Czartoryski, em Cracóvia, na Polônia - quando foi descoberta não teve sua atribuição a Leonardo defendida por tantas vozes.  Os especialistas só discutiam, em 2011, em que época de sua vida Leonardo o teria cometido.
A maioria deles data o trabalho no final do período milanês de Leonardo, durante os derradeiros anos da década de 1490, tornando o Salvator Mundi contemporâneo dos personagens da Última Ceia. Outros acreditam que o Salvator Mundi tenha sido pintado em Florença mais tarde e que tenha sido elaborado enquanto o gênio inventava a Mona Lisa.
Em Londres a pintura também foi confrontada com vários esboços de Leonardo da coleção Windsor.
Os experts ficaram ainda mais convencidos de que a pintura é de Leonardo depois de confrontá-la com dois desenhos preparatórios assinados pelo artista que moram na Biblioteca Real de Windsor. Eles representam a manga e punho das vestes do Cristo, pintadas de azul, com uma suavidade milagrosa, bem como o seu braço levantado como vistos na pintura.
Leonardo Da Vinci - Estudos para o Salvator Mundi (detalhes) - imagens lucyvivante.net

A esfera de vidro que Cristo segura em na mão, para mim já seria o suficiente para provar que esse Salvator Mundi se trata mesmo de um da Vinci, pois esse vidro foi pintado magistralmente e é perfeito demais para ser o trabalho de um de seus discípulos.
Leonardo Da Vinci - Salvador Mundi (detalhe - imagem arthistorynews.com)

O cristal sugere não somente o poder e unidade cósmica do Filho de Deus, mas também a paleta do artista, seu interesse pela luz e lentes. O orbe vítreo, uma imagem do mundo ou do cosmos, faz a gente pensar na pesquisa científica de Leonardo e na sua filosofia do microcosmo humano dentro do macrocosmo do universo. Assim, sua mão e olho, como arte e visão, se combinam.
Quem pintou essa esfera não retratou vidro, mas cristal de rocha com incrustações que parecem bolhas na pintura. Somente Leonardo na primeira década do século renascentista, possuía o conhecimento, a técnica e a maestria para pintar tal transparência, para reproduzir esse cristal translúcido.
Leonardo obcecadamente, durante toda a sua vida artística, tentou criar efeitos translúcidos na pintura, capturar os mistérios da luz – exatamente as dificuldades enfrentadas por quem pinta uma esfera de vidro. Foi necessário muito virtuosismo para simular cristal de rocha, e o globo dá testemunho de um estudo aprofundado da refração óptica através do vidro, de acordo com os interesses científicos de Leonardo.
Também são tipicamente leonardescas a atenção aos detalhes da pintura, a beleza das mãos e o desenho complexo da túnica de Cristo.
O uso de raios-x e infravermelhos, bem como outros métodos científicos, foram também definitivos para estabelecer de uma vez por todas que este trabalho é o original. Foram os “pentimenti” que provaram a autoria do mestre.
 Hein? Pentimenti?!
Assim é chamado posicionamento inicial das figuras, que prova que o pintor mudou de ideia, que teve um segundo pensamento, um arrependimento, que modificou a composição preliminar, que de alguma forma alterou o desenho original no curso do trabalho até que ele desapareceu sob a sob a pintura acabada. É que esse desenho original jamais é ecoado nas gravuras ou cópias ou falsificações posteriores pois só quem o conhece é o artista.
O detalhe que finalmente deu aos pesquisadores a prova da qual precisavam para conectar de modo inquestionável o Salvator Mundi a Leonardo, curiosamente, foi o polegar na mão levantada do Cristo.
Leonardo Da Vinci - Pentimenti do Salvador Mundi (detalhe - imagemhttp://www.3pp.website/2011/07/platonic-receptacles-leonardo-and.html  ) 
Ponto final? Nada disso (rsrs)
Belo dia, dois anos após a atribuição, em 2013, seus proprietários - que a essa altura do filme o mundo já sabia serem dois negociantes de arte de Nova York de nome Robert Simon e Alex Parish que o haviam comprado em más condições por um capricho intuitivo de uma pequena casa de leilões em Nova Orleans por mil cento e setenta e cinco dólares - venderam o quadro por US$ 80 milhões, mais de oito mil vezes o que pagaram! - ao negociante de arte suíço Yves Bouvier, que imediatamente o revendeu ao empresário russo Dmitry Rybolovlev por US $ 127,5 milhões. Mas não foi tudo.
Na noite de 15 de novembro de 2017, Rybolovlev mais uma vez revendeu o quadro em um leilão público no salão principal da Casa de Leilões Christie no Rockefeller Center de Nova York, pelo exorbitante preço final foi de US $ 450 milhões, incluindo a comissão de US $ 50 milhões de Christie. @#$%&@!!!!!!!
O comprador foi um dos muitos príncipes sem grande importância da Arábia Saudita de nome Badr bin Abdullah bin Mohammed bin Farhan al-Saud que, dizem, representava o colega, primo, chefe da Casa de Saud, governante supremo e príncipe herdeiro Mohammad Bin Salman – aquele que dizem mandou matar o jorbalista Jamal Khashoggi .
O boato de que Salman era o real comprador do Salvator Mundi foi desmentido dias após pela Embaixada da Arábia Saudita em Washington através de uma nota oficial que esclarecia que o príncipe Badr havia, de fato, atuado como intermediário para o Departamento de Cultura e Turismo de Abu Dhabi mas que o beneficiário definitivo seria a nova filial árabe do Museu do Louvre na capital dos Emirados Árabes.
Ao se tornar o lar do recém-ressuscitado Salvator Mundi, o Museu do Louvre de Abu Dhabi daria um passo gigantesco em sua caminhada declarada para ser um dos melhores museus de arte do mundo e o Salvator Mundi, com o patrocínio da realeza local, teria o lugar de honra na nova joia arquitetônica do deserto e para ele atrairia multidões.
Duas exposições do quadro foram, em seguida, anunciadas pelos museus da grife Louvre para marcar os quinhentos anos desde a morte de Leonardo: a primeira em Abu Dhabi, em outubro de 2018, e a segunda em Paris, em outubro de 2019. Sucede que o Louvre de Abu Dhabi, no ano passado, adiou a exposição sem dar maiores explicações e o Salvator Mundi não deu o ar da graça dele em Paris, no último dia 24 de outubro passado. Como nas turvas águas do Oriente Médio nada é absolutamente claro, o fato é que o Cristo de Leonardo não foi mais visto em público desde a noite do leilão em novembro de 2017 e o seu paradeiro se tornou fonte de intensa especulação .
A teoria mais comum é que a obra de arte está guardada na Suíça – mais precisamente em Genebra, onde, segundo o jornal New York Times, “mais de um milhão de obras de arte são mantidas livres de impostos por colecionadores e galerias”. Porém dia desses o negociante de arte Kenny Schachter afirmou que o Salvator Mundi está em um iate de luxo de nome “Serene”, que pertence a Bin Salman. Bem, depois de ser maltratado durante meio milênio, ter se partido, recebido não sei quantas camadas extras de tinta, sido raspado e perdido a barba e o bigode que mal poderiam fazer ao Cristo alguns ocasionais respingos de água do mar, não é mesmo?
Mas o fato é que o desaparecimento da mais cara pintura do vasto mundo turbinou o disse-que-me-disse de fontes que “preferem continuar no anonimato” de forma tal que, oito anos após sua aparição na National Gallery, aquilo que tinha sido um consenso “amplo e incomumente uniforme” de que o Salvator Mundi era da lavra de Leonardo se desfez por obra e graça de vozes que, na mídia, passaram a questionar a atribuição a Leonardo da Vinci.
Entre elas a mais retumbante não é a de um historiador de arte mas a de um jornalista, de nome Ben Lewis que, no ano do aniversário da morte do pintor, lançou oportunamente um livro de nome O Último Leonardo. Lewis é crítico de arte e produz documentários e, segundo o jornal inglês The Guardian “na reportagem rápida sobre acordos financeiros está no elemento dele”.
Não posso opinar sobre o livro, que não li, mas pelas resenhas e entrevistas dadas pelo autor aos jornais, penso que, como dizia Shakespeare: trata-se de “much ado about nothing”, ou muito barulho por nada. E, principalmente, muito achismo e frases de efeito, como a de alguém - já não me lembro quem! - afirmando que as mãos do Cristo são “monótonas “ e o autor concluindo que o Salvator Mundi é “um Leonardo para o nosso tempo, um Leonardo pós-verdade”. Pelamordedeus, o que significa ISSO?
A leitura que tenho feito nas últimas semanas é a de que as dúvidas sobre a famosa obra de arte surgiram depois que ela foi comprada pelo príncipe herdeiro da Arábia Saudita. Como disse o Dr. Bendor Grosvenor, que apresenta na BBC a série britânica “Obras Primas Perdidas”, a venda da pintura por uma quantia tão absurda trouxe à tona indignados “os nossos comunistas internos” que passaram a tentar minar sua atribuição.
O certo é que nenhum dos profissionais que atribuíram o Cristo a Leonardo mudou de ideia. Todos continuam defendendo a habilidosa representação da mão levantada do Cristo, a técnica de pintura “sfumato” usada em seu rosto, o uso de pigmentos e painéis consistentes com a obra do artista e a existência do polegar oculto.
Nem mesmo a curadora do Museu Metropolitano de Arte de Nova York, Carmen Bambach, que foi uma das especialistas a examinar a pintura na Galeria Nacional em 2008 e que recentemente mudou de ideia afirmando que o Salvator Mundi teria sido cometido por um dos mais brilhantes alunos de Leonardo – o milanês Giovanni Antonio Boltraffio – nega que a composição e o desenho, as mãos e o drapeado das roupas, as mangas e os cachos de cabelo e o globo são de autoria de Da Vinci (rsrs)
Frank Zöllner, o autor do catálogo raisonné de Leonardo duvida que o Mestre tenha usado um painel de nogueira inferior com um nó que causou muitos danos à pintura desde o início. Outros sabichões insistem que Leonardo teria pintado a mão por trás do vidro de forma diversa, devidamente ampliada, mas como se pode constatar na foto do Cristo antes de ser restaurado, a mão original foi danificada e refeita pela restauradora. Outros historiadores da arte insistem que o “Salvator Mundi” deveria, no mínimo, “ser parcialmente atribuído ao seu estúdio”. Tudo bem.
O trabalho em uma oficina italiana renascentista era coletivo. O Mestre era sua figura central, mas outros pintores – assistentes e aprendizes – colaboravam. É sabido que alguns clientes definiam a extensão da contribuição do maestro nas pinturas que encomendavam. Muitos estavam preparados para pagar mais por suas pinceladas. Outros, com um orçamento menor, só queriam o “visual” leonardiano e ficavam felizes com uma cópia bem executada, na qual Leonardo acrescentava apenas alguns detalhes. Com a palavra o Professor Martin Kemp, uma das maiores e mais respeitadas autoridades sobre a pintura do florentino:
“A imagem mostra o que eu chamo de 'ciência da arte' de Leonardo, a compreensão dele de vários aspectos da natureza e de como ela pode ser recriada de uma maneira que nenhum dos copistas realmente entende. De fato, os alunos no estúdio não tinham esse nível de compreensão intelectual da ciência, óptica, anatomia, dinâmica e assim por diante. Não posso definir nenhuma área que eu diria que seja trabalho do estúdio. Embora reconheça que esta pintura é um assunto de enorme interesse da opinião pública, nenhuma nova opinião ou especulação me leva a rever minha posição.”
Quase todos os estudiosos da pintura de Leonardo concordam que o Salvator Mundi é dele ou, pelo menos, “principalmente dele”. Então é o seguinte: parece que a questão não é se Leonardo pintou o Salvator Mundi mas qual foi o percentual da imagem que foi pintado por ele.
Isso jamais saberemos. Eu estive defronte desse Cristo que nos olha suavemente, com sabedoria, e penso com verdade absoluta, que ele tem a mesma qualidade etérea e evasiva, os cabelos anelados e as mãos perfeitas que já vi em tantas outras figuras do pintor inclusive algumas que se desvaneceram no centro do mural da Última Ceia de Leonardo. São imagens que atestam a mão de um verdadeiro mestre.
Na minha opinião as críticas à atribuição foram frágeis e limitaram-se a reclamar de que não há ou não foram divulgadas fotografias a cores do Salvator Mundi antes da limpezao da pintura. Alguns especialistas se declararam desapontados porque as partes mais interessantes da imagem não são a face ou a sua expressão, mas os detalhes de virtuosismo na esfera de vidro, em primeiro plano, e nas perfeitas mãos.
No entanto, esse rosto que tem sido considerado embaçado e sem graça por alguns críticos de arte é, no entanto, inteiramente plausível como um exemplo extremo da técnica de sfumato de Leonardo em retratos, especialmente daqueles com temas religiosos como esse.


Talvez o artista tenha desejado, intencionalmente, pintar um Cristo evanescente, espiritual. Outro detalhe interessante é que  os mais célebres especialistas a favor e contra a atribuição – Martin Kemp , o professor de História da Arte da Universidade de Oxford e Carmen Bambach, a curadora  do Museu Metropolitano de Arte de Nova York, acabam de anunciar que estão escrevendo livros sobre o tema (rsrs) Ou seja, quanto mais controvérsia mais dinheiro se ganha às custas do Cristo.
Como sempre, há muito mais que eu não compreendo, mas pelo menos esse Salvator Mundi tem o mesmo tipo de presença que outras telas de Leonardo possuem: a mesma misteriosa e bela estranheza.
Um poeta poderia inventar que, para Leonardo da Vinci o Salvator Mundi representou um espelho e que a mão do Cristo levantada em bênção é um reflexo da própria mão de Leonardo pintando o painel.
O espelho, no entanto, não reflete a imagem externa de Leonardo. Não, o Salvator Mundi não é um auto retrato do artista mas talvez seja uma projeção antropomórfica da sua mente ou alma, disso que ninguém define mas que nos torna verdadeiramente humanos.



14 comentários:

  1. Mônica Silva10/02/2020, 09:11

    Tem muito dinheiro envolvido nesta treta, Moacir. Você tem opinião formada porque sabe tudo de pintura e viu a obra mas é difícil opinar sobre ela. Os argumentos da defesa são fortes e o Cristo é muito bonito mas seu olhar é bem bizarro kkk Eu também não acho o Salvador parecido com o retrato do Cristo da Última Ceia que você mostrou na colagem com a Mona Lisa. Mas vou acompanhar o voto do relator! Obrigada!

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  2. Flávia de Barros10/02/2020, 10:19

    Moacir,
    Parabéns! Adorei a aula sobre este maravilhoso Salvator Mundi que transmite uma profunda espiritualidade. Não sei como lhe agradecer por ter se dado ao trabalho de contar nos mínimos detalhes tudo sobre a iconografia a história e a polêmica atribuição da pintura mostrando tantas razões técnicas e científicas para se acreditar que este Cristo foi pintado por Leonardo da Vinci. Mas cada obra de arte possui um significado único e diferente para cada um de nós por razões que às vezes a própria razão desconhece.
    Um abraço especial para você

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    1. Moacir Pimentel15/02/2020, 08:13

      Flávia,
      Ainda bem que você gostou porque, aqui entre nós e baixinho, não me parece que a arte de Leonardo da Vinci tenha sido muito “católica” (rsrs) Comparada com a multidão de corpos nus cometidos por Michelangelo no teto da Sistina, as pinturas religiosas de Leonardo, à primeira vista, parecem sim muito bem comportadas e obedientes à tradição iconográfica cristã. Mas não o são.
      Na composição dramática e na perspectiva teatral da Última Ceia, por exemplo, o que se vê é uma galera santíssima com comportamentos profundamente humanos, gestos eloquentes e caras e bocas tomadas por diversas emoções: tristeza, desconfiança, traição, medo e horror em um cenário que reinventou totalmente a arte de contar histórias. Talvez o cinema tenha começado nas tintas do florentino (rsrs)
      Também é revolucionária a representação que o pintor fez de Maria, Jesus e São João Batista em uma gruta, em meio a uma paisagem geológica surreal. Só que na primeira Virgem das Rochas – a que mora no Louvre - ele exagerou na estranheza ao pintar Maria com o braço em volta do menino João e não do filho e o anjo apontando um looooongo dedo para o aprendiz de profeta, um detalhe desimportante mas que fez com que os pios clientes simplesmente cancelassem a encomenda (rsrs)

      https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/e/e4/Leonardo_Da_Vinci_-_Vergine_delle_Rocce_%28Louvre%29.jpg

      Ele também criou um São João Batista jovem e sorridente, meio irônico, meio inocente, apontando outro dedo para o céu, em uma pose que provoca interpretações diversas: a luz incandescente e a nudez etérea da figura tocam deliberadamente o sagrado e o profano:

      https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/b/b8/Leonardo_da_Vinci_-_Saint_John_the_Baptist_C2RMF_retouched.jpg

      Já o seu São Jerônimo – que hoje mora no Vaticano – tem um rosto e um corpo literalmente desesperados, cujos tensos tendões, artérias e ossos expostos são muito semelhantes aos desenhos que ele fazia de cabeças e corpos humanos dissecados:

      https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/9/98/Leonardo_da_Vinci_-_Saint_Jerome.jpg

      Nenhum outro pintor deixou pinturas inacabadas como essa, como se afirmasse que seus esboços experimentais valiam mais do que as obras primas bem acabadas de qualquer outro artista. Pior que valem (rsrs)
      Esse Salvator Mundi não destoa no contexto pictórico sutilmente iconoclasta, ambíguo e misterioso do pintor. Trata-se de uma ilusão da presença do Cristo pintada por um cientista/artista especializado em sfumato, a mais eficaz das técnicas quando se deseja retratar figuras evanescentes e comunicar um ambiente onírico, uma qualidade etérea, ou, como você diz, “espiritual”.
      E essa é mais uma razão para se acreditar que o Salvador do Mundo é um trabalho de Leonardo.
      Outro imenso abraço para você

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  3. Alexandre Sampaio10/02/2020, 20:11

    Pimentel,
    Até pouco tempo atrás eu não sabia que Leonardo da Vinci era gay. Não que tenha importância mas é estranho que apesar dele não gostar de mulher, o Salvator Mundi e outros retratos masculinos que vi presencialmente no Louvre não cheguem nem aos pés das mulheres que pintou. Também não sabia que professores e alunos pintavam juntos um mesmo quadro. Como sempre vou lendo e aprendendo.

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  4. Márcio P. Rocha11/02/2020, 17:34

    Muito bom. É difícil acreditar que um dos melhores museus do mundo e tantos professores de renome se enganaram ou que foram subornados para prevaricar na autenticação. Não compro mais teorias conspiratórias e narrativas midiáticas, rs. De longe acho que a pintura tem qualidade mas a crítica da mão que deveria parecer mais distorcida por trás do vidro bem que faz sentido.

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    1. Moacir Pimentel15/02/2020, 08:33

      Márcio,
      Sim, já somos crescidinhos o bastante para duvidar das “narrativas” e evitar que nos pautem (rsrs) O interessante é que todo esse barulho questionando de novo a atribuição rolou depois que o Salvator Mundi deu "no show” e esnobou os dois museus da grife Louvre. E, no entanto, ninguém se lembra de perguntar por quais cargas d’água o prestigiado Museu ia querer emprestada uma “falsa atribuição” para expor na mega exposição de Leonardo que está sediando até o final desse mês (rsrs)
      Quanto à esfera de vidro também é engraçado que os críticos esqueçam de como ela foi magistralmente descrita pelo artista, ao apontar para a mão e as roupas supostamente muito mal descritas pelo cientista (rsrs) É lógico que Leonardo, fascinado que era pela maneira como tudo no mundo interagia com a luz e careca de diagramar o tema nos seus Cadernos, era perfeitamente capaz de pintar com precisão óptica total um globo de vidro SÓLIDO agindo como uma lente convexa, invertendo e ampliando e distorcendo qualquer coisa que, sem ter contato com ele, fosse vista através dele. Só que essa mão restaurada do Cristo, em vez, está segurando o mundo, certo?
      Além disso pergunto: e SE essa esfera não fosse sólida? SE fosse OCA e tivesse pouca espessura, tipo uma bolha de vidro? Tal hipótese não explicaria a distorção mínima na maneira como foram pintadas as coisas vistas através do cristal?
      Observe atrás dele, por exemplo, as cinco linhas retas criadas pelas dobras do manto. Quatro delas convergem para o centro da esfera sem descontinuidade ou ampliação, enquanto a quinta é desfocada. SE esse globo translúcido fosse oco a distorção não teria sido essa na real e as representações da mão e do manto do Cristo cometidas por Leonardo não teriam sido cientificamente precisas? Os advogados de defesa e de acusação têm como provar que o globo era oco ou sólido? Como a resposta é um sonoro não, então o argumento da refração me parece inepto (rsrs)
      Há que considerar ainda a possibilidade do artista ter optado, deliberadamente, por não distorcer as imagens. Quando lembro de todas as pinturas que já vi nos museus da vida de São João Batista batizando o Cristo fico imaginando o que teria rolado se os pintores tivessem eternizado as quatro pernas santíssimas refratadas realisticamente pela luz nas águas do rio Jordão! (rsrs) A pergunta é: além de Leonardo quem mais você acha que tinha a mínima noção do que fosse “refração” na virada dos séculos XV e XVI? A resposta é simples: quase nenhum vivente sequer desconfiava do que era opticamente correto! O que significa que a maioria absoluta dos observadores renascentistas do Salvator Mundi pensaria que o pintor tinha cometido uma mão simplesmente deformada e uma túnica GG muito mal pintada (rsrs) Obrigado por participar

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  5. Moacir,
    um fechamento condigno de uma grande franquia. Apesar do "Salvador Mundi" não estar entre minhas obras preferidas de Leonardo, a sua bela descrição do quadro e das peripécias de sua vida e restauração produziu um post (como de hábito) muito interessante e bom de ler.
    Um abraço do Mano

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    1. Moacir Pimentel15/02/2020, 08:37

      Wilson,
      É sempre bom ler o Sr. Editor nas caixas de comentário (rsrs) Pois é. O Salvator também não é um dos meus “favoritos”. Como já teclei antes alguns dos seus esboços são insuperáveis e as suas Lisa e Cecília, inesquecíveis. Mas talvez se tenha que contemplar esse Salvator Mundi cara a cara para poder apreciar sua qualidade sombria.
      Digam o que disserem, faço aqui um pequeno ato de fé: a composição, o desenho, as cores, as feições, a pele, a mão que abençoa, o polegar “arrependido”, o globo, a luz e a sombra, o sfumato acentuado, enfim, o conjunto da obra é um clássico Leonardo da Vinci, que certa vez escreveu: “A alma do pintor guia-lhe a mão e o faz reproduzir -se, pois parece à alma que esta é a melhor maneira de representar um ser humano."
      Obrigado e abração

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  6. Francisco Bendl12/02/2020, 08:51

    Não encontro mais adjetivos nos meus parcos conhecimentos sobre o nosso idioma, para enaltecer mais esta importante e informativa postagem do nosso expert em artes, Pimentel.

    Apesar de eu ser repetitivo, sigo agradecendo eu poder ler um trabalho de fôlego, excelente, de qualidade ímpar.

    Abração, Pimentel.
    Saúde.

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    1. Moacir Pimentel15/02/2020, 08:43

      Prezado Bendl,
      Obrigado pela atenção e pelos caudalosos e imerecidos elogios. Mas sou seu leitor desde janeiro de 2016, ou seja, há tempo suficiente para sacar que jamais lhe faltarão "adjetivos" nem para elogiar nem para criticar o que lhe interessa (rsrs) Espero que a próxima “franquia” – que não será sobre arte – seja capaz de provocar o seu teclado e de merecer as suas sempre bem vindas opiniões.
      Abração

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  7. Querido Moacir,
    Vejo a qualidade da obra, o sfumato que tanto me agrada, o desenho ( fico pensando nos esboços!), as cores, a assinatura do Mestre. Leio a polêmica e complicada história do quadro e fico pasma. Por ter passado por tantos maus tratos, tantas mãos e camadas de verniz, possíveis "leonardizações" e até, quem sabe, "respingos de mar", e ser recuperado assim tão lindamente! É certamente trabalho de outros mestres.
    Mas sabe o quê? Esse quadro não me comove. Não gosto dos olhos "chapados", me incomodam a boca e o queixo. Il y a quelque chose que ne marche pas.( rsrs não é mitidez, dito assim em outra língua compromete menos...) Quem sou eu para dizer isso?! Para falar a verdade, desde pequena ficava implicada com uma reprodução, dessas comuns e grandes, na casa da minha avó. Penso que todas elas, as avós de antigamente,tinham uma.A lourice, o cândido azul dos olhos, a mão abençoada...Nunca descobri o porque do estranhamento. Daí você pode ver o muito de pessoal na minha interpretação. Diz o Mano que tempos depois Jesus foi descrito como um judeu bem moreno de barba e cabelos anelados pretos. Figuraça, não?
    Análise pessoal à parte, a pintura é bela. E quando, logo abaixo no seu post, aparecem os outros salvadores, nossa...Leonardo é insuperável. Gostei da gravura de Hollar mas sou apaixonada por gravura.
    Obrigada pela também bela aula. Estou sempre me surpreendendo e aprendendo com seus escritos. Às vezes até invejando e babando, não é? Ainda bem que você é compreensivo! E malvado.
    Até sempre mais.

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    1. Moacir Pimentel15/02/2020, 08:50

      Caríssima Donana,
      Ler que os meus rascunhos a surpreendem me incentiva a caprichar na “malvadeza” (rsrs) As produções e reproduções perfeitinhas nas “suas loirices e cândidos olhos azuis” são contos de fada, arte engajada, compromissada com mais alguma coisa além dela mesma. A catequese – ou “doutrinação”? - da Igreja Católica, Apostólica e Romana teria sido tão bem sucedida no mundo ocidental se a iconografia do Filho de Deus o tivesse retratado, não como um príncipe, mas com a cara de um galileu judeu há dois mil anos atrás?
      https://bennorton.com/wp-content/uploads/2014/12/jesus-real-three-sides-1024x415.jpg
      Penso que o trabalho artístico está inevitavelmente associado às condições em que foi criado. Ou seja, as artes de Leonardo não podem ser decodificadas se destacadas dos tempo e local únicos de sua criação. Sucede que a Renascença colocou o homem - e não Deus! - no centro do mundo e embora o Salvator Mundi seja um trabalho religioso, encomendado por um rei e pintado para agradar os poderosos de então, trata-se de declaração pessoal, uma imagem auto referenciada e suficiente.
      Como já teclei antes avalio que Leonardo tentou compulsivamente pintar a própria mente, lúcida o suficiente para perceber que a suposta briga entre a carne e o espírito, entre a espiritualidade da mente/alma versus a realidade da mente / cérebro era uma grande bobice. Desconfio que o cara sabia que a mente é a atividade do cérebro e que isso significava que os cérebros que ele dissecava rotineiramente eram capazes de coisas tão grandiosas e surpreendentes que sua expressão recebera os nomes de “espírito” e de “alma funda”.
      Dia desses, por acaso, tentando achar imagens para ilustrar a próxima franquia me deparei com um fabuloso desenho do artista de um útero abrigando um feto. Há quinhentos anos atrás, esse cara expressou com poucas linhas a condição humana na sua origem, retratou o mistério humano como uma maravilha que não era religiosa, mas biológica, sustentando sua visão da humanidade como um fato da natureza. É por isso que todas as suas pinturas, não importa o tema, me transmitem uma sensação difícil de descrever: de conhecimento não revelado, de significado oculto, de vida secreta (rsrs)
      Leonardo só estava realmente no seu elemento - a reinvenção da vida! - nas páginas amareladas dos Cadernos nas quais ele criou, criou e criou e descreveu, inclusive, o seu método de pintura: “Olhar as marcas na parede até começar a ver rostos bizarros, batalhas raivosas e paisagens rochosas” (rsrs) Dizia Pessoa que a arte existe porque a vida é insuficiente. Essa é uma tradução fiel da expressão nem um pouco metida a besta e totalmente humana “ il y a quelque chose qui manque”.
      “Até sempre mais”

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  8. 1)Iniciando o ano letivo do Blog Conversas do M<ano, fiz besteira e a máquina apagou o que escrevi... coisas de aprendiz jurássico...

    2) Diante de uma aula magistral dessas, o Moacir brilhando em todas as linhas só me resta parabenizá-lo.

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    1. Moacir Pimentel15/02/2020, 08:58

      Antonioji,
      É muito bom lê-lo de volta às Conversas para que juntos possamos continuar tentando ser como nos ensinou o Gonzaguinha:
      https://www.youtube.com/watch?v=tHkDVrNjbVw
      Gratidão e namastê!

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