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17/02/2020

Desamor


 
Sem teto em Paris (fotografia Eric Fournier, licença https://creativecommons.org/licenses/by-sa/2.5/deed.en)
Heraldo Palmeira
O vento lá fora geme
Colhendo estrelas mortas
O homem foi descendo sem pressa a rua solitária como ele. Era tarde da noite. O som dos próprios passos quebrava o silêncio das calçadas e esquinas. Seu vulto oscilava pelos pontos de luz e escuridão entre os postes da iluminação pública. As placas e vitrines das lojas estavam às escuras, uma ou outra ainda acesa aguardando o tempo programado para o desligamento automático.
Olhou para os lados por obrigação, não havia o que temer. O pior já tinha acontecido.
Havia só um mendigo sentado lá adiante, envolto em trapos quase pretos, entrincheirado no ponto mais escuro da calçada em que se instalara, e que se aproximava imóvel pelo movimento dos passos do homem que descia sem pressa a rua solitária. Mais um pouco, estariam próximos na penumbra.
Era um coração vazio em movimento e o vazio em um coração sem movimento. Era um encontro de dois desencontros, nada mais que duas misérias cruzadas sem motivo pelo acaso, por nada.
O homem finalmente chegou ao raio de ação da presença imprestável do mendigo. Imóvel, o um resmungou de lá algo impossível de traduzir. Impassível, o outro apenas passou em silêncio, escutando sem ouvir, sem olhar para trás. E seguiu para encontrar-se com a própria solidão.
Uma motocicleta barulhenta e veloz criou um clima de frio na espinha, alterou o humor do mendigo. Ele gritou coisas ininteligíveis num dueto surrealista com o alarde do motor, que passou e logo sumiu sem deixar vestígios.
O homem sem pressa chegou em casa, abriu uma bebida e espalhou o corpo na poltrona. Preferiu a penumbra, apenas o rastro de uma pouca luz que entrava pela janela lavando o pedaço de um móvel e derramado no chão como uma poça d’água.
Na rua uma poça d'água
Espelho da minha mágoa
Transporta o céu para o chão
Tal qual o chão da minha vida
A minh'alma comovida
O meu pobre coração
A brisa bamboleava bêbada levando a fumaça do cigarro para lá e para cá, talvez um sopro de incenso mortal sobre aquela tristeza.
O homem finalmente se dera conta de que o amor guardado tantos anos havia se arrastado para o fim. Morrera como nascera, como um riacho que corre, se agiganta, vira rio caudaloso e se afoga naquela tanta água que já não cabe no leito.
Estava feito, não restava mais nada a fazer. Ele não sabia como se olhar no espelho depois que não se viu, como num espelho, no rosto em que sempre enxergou sua cara-metade estampada.
Se fosse resolver
Iria te dizer
Foi minha agonia
Se eu tentasse entender
Por mais que eu me esforçasse
Eu não conseguiria
E aqui no coração
Eu sei que vou morrer
Um pouco a cada dia
E a amargura e o tempo
Vão deixar meu corpo
Minha alma vazia
Como se não fosse tão longe
Como se a vida fosse um perigo
Como se houvesse faca no ar
Não havia culpas e nem deu tempo para desculpas. Nem palavra houve para ouvir. Até os olhares haviam se perdido. Morrera porque não conseguira mais viver depois de conjugado o verbo murchar.
Evaporou para fugir da cerimônia do fim – a dor da despedida seria mortal –, como se fosse possível morrer sem funeral, um fevereiro sem Carnaval. Sentiu a fantasia rasgar na avenida enquanto o desfile de tudo atravessava a melodia que tocou tanto, e tanto doeu lembrar.
Uma motocicleta passou veloz estrondeando tudo lá na rua. Desta vez, a sensação de frio na espinha foi menor. Imaginou que o mendigo gritara irritado repetindo o dueto barulhento de antes. Ficou na dúvida se era o mesmo idiota se divertindo ao perturbar o sossego dos outros, ou apenas mais um desses idiotas urbanos de pouca serventia.
Abriu mais uma bebida, inebriou a dor. Havia um mar de segredos que foram guardados para ninguém saber o que só eles sabiam. Passaram a vida driblando o mundo, porque não podiam jogar aberto. E perderam o jogo!
Não, não mais se encontrariam, não havia mais nada para reencontrar. Restou a lembrança de um olhar distante, vazio, cabisbaixo, o silêncio do não sorrir, do nada a dizer. Era triste, era riacho seco, mato esturricado, era o fim.
Era a velha dúvida que até gerou canção, se é o trem que passa ou passou quem ficou na estação. Era o medo de ir embora, mesmo sabendo que já não havia lugar para ficar.
Era a ressaca do amor empobrecido, mendigo sem forças para implorar. Era o amor maltrapilho, no avesso. Desamor. Quase invisível, evaporando na fumaça bêbada ao sabor da brisa, esvaindo bamboleante para aqui e para li. Um incenso queimado, uma tristeza consumada no resto de cheiro, na penumbra impregnada, a fresta da janela como rastro de uma pouca luz. O chão alagado sem água.
Olhou para o céu sem graça, poucas estrelas, todas miúdas! Ficou com a impressão de que tudo ao redor estava triste, que o vento gemia, que as estrelas estavam mortas. Não encontrou poesia.
Olhou mais uma vez o telefone, aquela última esperança de quem tem certeza que vai ganhar uma loteria acumulada. Mais um pouco, a madrugada quase no fim, o Sol rompendo a barra da noite, o escuro sumindo, a aposta perdida, o bilhete no lixo. Papel velho. Nada a fazer. A manhã prestes a surgir, pronta para apagar os restos que tentaram sobrar da última noite.
É pau, é pedra
É o fim do caminho
É um caco de vidro
É a vida
É a noite, é a morte
É o mistério profundo
É o vento ventando
É o fim da ladeira
É o fundo do poço
No rosto o desgosto
É o fim do caminho
Ajeitou o corpo na poltrona – conseguiu apenas tirar os sapatos com os próprios pés e acredita ter ouvido o som deles caindo no assoalho –, o sono estava vencendo o desamor e o cansaço estendidos. A cascata de luz secara do chão.
Ficou com uma quase certeza de que pensou no homem mendigo, ferido, obscuro em sua dor revestida por trapos quase pretos, que gemia seu sofrimento pelo amor que se foi sem ter dormido, sem fechar a porta, sem dar bom-dia! E sem ninguém perceber, o que era mais dolorido.
-> Para todos os amores que vão se perdendo e morrem sem ter vivido e sem ninguém perceber a iminência da morte.

Trechos de:
Via Láctea (Horácio Paiva)
A deusa da minha rua (Newton Teixeira-Jorge Faraj)
Agonia (Mongol)
Léo e Bia (Oswaldo Montenegro)
Águas de março (Tom Jobim)


13 comentários:

  1. 1) Heraldo nos fala dos amores e desamores, sempre um enigma a vivenciar.E o bom é que ele vai intercalando com letras de músicas novas e antigas.

    2) Interessante que hoje, em outro blog falei do ABCDE = Amor Búdico/Crístico/Divino/Espiritual...

    3) É o chamado amor sem apego, que não pede nada em troca, dificílimo, mas possível de se realizar aos poucos...

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    1. Heraldo Palmeira20/02/2020, 22:13

      Antonio,
      Os amores e desamores são mesmo um dos grandes enigmas humanos. E as letras das músicas são relatos deles, que acabam se identificando com a gente. Abraço.

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  2. Francisco Bendl18/02/2020, 18:18

    Prezado Palmeira,

    As crônicas que abordam a crueza de uma realidade que mostra a solidão, o abandono, a miséria, a pobreza, o desânimo, invariavelmente nos entristecem, nos obrigam a meditar até aonde contribuímos para que as nossas famílias, parentes e amigos não sejam deixados de lado ou desprezados com o tempo.

    No entanto, a verdade é que somos nós que sempre queremos atenção, que nos queixamos porque o pessoal não nos visita ou, lá pelas tantas, a necessidade e a satisfação de se estar só.
    Não morando na rua, dormindo embaixo de marquises ou portas de edifícios, virando latas de lixo para encontrar restos de comida como alimento, não, pois esta situação é indigna, é humilhante demais para um ser humano mesmo pobre ou miserável.

    Refiro-me a uma pessoa já idosa, vivendo o resto dos dias na sua casa de madeira simples, paredes descascando a tinta porque muito tempo sem pintura, assoalho com uma ou várias tábuas soltas que se enxerga o chão do terreno, uma antiga geladeira que não mais conserva os alimentos, uma velha TV ainda com tubo de imagem e sem mais mostrar contraste algum pelo tempo de uso, o sofá mesmo roto e carcomido pelo uso diário e bordas rasgadas, os chinelos desgastados nas pontas dos dedos, mas o amigo de todas as horas, o fogão a lenha, pois não há como comprar o botijão de gás, dinheiro para passar o mês tão justo conforme as despesas de água, luz, remédios e comida, que centavos não podem ser perdidos ou rolados para baixo de armários – um resto de vida catando restos de dinheiro.

    O sono é embalado pelas pálidas lembranças quando fora casado, quando seus filhos o visitava, quando os netos gostavam de ver o seu avô ainda falando bem, apesar da voz fraca porque mais um sussurro que emissão de um som audível.

    Seria este o “prêmio” oferecido à velhice?
    Ou morar só, abandonado ou, então, ir para um asilo?
    Em ambas as situações, um corpo que ainda respira, porém sem qualquer oferta de carinho, de companhia ... um objeto descartável.

    Às vezes me vejo assim, nesta penúria, sendo este o meu “futuro”, ser contemplado com o desamor.
    Triste?
    Muito.
    No entanto, se postei ressentimentos de um velho, por outro lado eu disse a mim mesmo que jamais deverei ter piedade de mim mesmo!
    Nada de ter sido vítima das circunstâncias.
    Que até o meu último suspiro eu tenha gana de viver, de ler, de cantar, chorar, rir, lembrar, brincar, escrever, dar um sentido à existência, que se esvai por entre os dedos, e que vai me murchando pouco a pouco.

    Tento, evidentemente, por ter descoberto por onde que a vida escapa, colar um remendo, e impedir que eu esvazie rapidamente.
    Esqueço que, ao tomar banho, o conserto se descola, e saio do banheiro mais velho e fraco do que ao entrar (também constatei que não posso deixar de tomar banho, sob pena de o mau cheiro, a catinga, reunir os insetos que farão de mim um lauto banquete noturno)!

    Enfim, eis a vida no seu ocaso – e tem quem ainda acredita no inferno!!!

    Palmeira, meus parabéns por mais esta bela e contundente crônica sobre a vida, sobre a realidade nua e crua, e que pode acontecer conosco, sim.
    Apresentaste uma obra que nos leva a pensar, meditar ...

    Quem sabe, se não temos de reescrever nossos planos para mais adiante?
    Ou, lá pelas tantas, diante do mistério que seria quanto tempo de vida ainda nos resta, CARPE DIEM!!!

    Abração.
    Saúde.



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    1. Heraldo Palmeira20/02/2020, 22:16

      Bendl,
      Os amores e desamores estão em toda parte, em todas as épocas e assim seguirão se repetindo. Eles são eufóricos, eles são dolorosos, quase sempre incompletos. Entendo as dores que você apontou com tanta pureza e são mesmo verdades corriqueiras. Mas sempre acredito que um amor que termina, mesmo que não tenha morrido, é uma oportunidade única para quem ama renascer, recomeçar, acreditar de novo. Enfim, conjugar bons verbos. Abração.

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  3. Léa Mello Silva19/02/2020, 08:06

    Heraldo

    como poeta vc brilha sempre e na tristeza é comovente
    O chão alagado sem água ! Que linda imagem !
    Sinto a beleza em seu texto !!
    Obrigada

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    1. Heraldo Palmeira21/02/2020, 02:03

      Léa,
      Obrigado por palavras tão delicadas. Eu sempre respeitei muito a tristeza porque, ela sim, dói mas escreve poesia.

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  4. Horácio Paiva19/02/2020, 14:43

    Meu amigo Heraldo,
    Não é fácil ser, como você tem sido, um cronista da alma! Que beleza: “Até os olhares haviam-se perdido”... E a força desse jogo de imagens cruzadas: “Era um coração vazio em movimento e o vazio em um coração sem movimento. Era um encontro de dois desencontros, nada mais que duas misérias cruzadas sem motivo pelo acaso, por nada”. Você tem a capacidade de fazer poesia na prosa. Todo grande cronista precisa dessa capacidade. A poesia, como a profecia, vão além, não se acomodam na eficaz mas limitada lógica, antes buscam a chave do absurdo, o entendimento, pois, além dessa limitação. Daí a grandeza de Rubem Braga, Paulo Mendes Campos e Antônio Maria. Poesia, poesia sempre... Parabéns!

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    1. Heraldo Palmeira21/02/2020, 02:08

      Dom Horácio,
      A alma nos conta histórias na penumbra, quase como sopros. Os meus rascunhos são reles suspiros, a poesia não é minha, é dos personagens que aparecem diante da tinta das letras. E muitos deles até falam! Obrigado por ter deixado sua poesia por uns instantes para vir até aqui. Abração.

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  5. Olá Heraldo,
    Você costura suas palavras com delicados fios de luz.
    E se isso não é poesia deve ser mágica!
    Obrigada.
    Até outros mais.

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    1. Heraldo Palmeira21/02/2020, 02:57

      Ana,
      Você, que sempre espalha poesia com seus textos, sabe que ela está onde a gente menos espera. Isso, sim, é magia! Até mais!

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  6. Wilson Baptista Junior20/02/2020, 22:41

    Em meus tempos de rapaz, formamos um movimento de jovens no nosso colégio, eo chamamos de "Grupo Gente Nova". Colégio de elite, famílias de bom poder aquisitivo, o da minha, embora razoável, era dos mais baixos da turma.Tinha atividades culturais e assistenciais. E uma delas, que muitos dos leitores talvez já tenham realizado, era a "Ronda". Saíamos à noite pelo centro da cidade, levando café quente, pão, queijo, conversas e cobertores para os moradores de rua - naquele tempo já existiam muitos. Tínhamos ao menos a ilusão de que estávamos fazendo alguma coisa de bom por eles. Minha Belo Horizonte, quase sessenta anos atrás, era uma cidade muito mais fria do que hoje, havia menos concreto, menos asfalto, mais grama, mais árvores e menos paredes nos caminhos do vento que vinha das encostas da Serra do Curral.
    E porque me lembrei disso? Porque naquela época escrevi um poema (bem disse alguém, que escrevia melhor do que eu, que "todo o mundo é poeta aos vinte anos") do qual tentei me lembrar agora para falar das belas palavras do Heraldo, mas infelizmente minha memória já não é tão afiada... Só me lembro que falava de uma vitrine de tardinha acesa como os olhos da cidade, e de um mendigo deitado à noite no canto dela como uma lágrima escorrida desses olhos já entrecerrados, e que as últimas palavras do poema diziam do fim de noite que "a cidade, cansada, fechou os olhos"...
    A cidade e os seus moradores do meu tempo fecharam os olhos para aquele mendigo solitário como o narrador da história do Heraldo que passou pelo dela sem olhar para trás.
    Obrigado, amigo Heraldo, por sua história que religou meu passado ao meu presente e me deixou pensando num futuro cada vez mais próximo...

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    1. Heraldo Palmeira21/02/2020, 17:11

      Mano,
      Sua história está presente em algum lugar por aí, como estão todas as histórias que são de todos nós. Os mendigos existem desde sempre, acho que já nasceram com o mundo, talvez por terem tanta história que parecem não ter história nenhuma, a ponto de parecerem pontos escuros da paisagem.

      Fiquei com vontade - se você autorizar, naturalmente - de partir de onde você deixou (no seu comentário precioso) e tentar me meter na história do mendigo para quem sua cidade cansada e os moradores daquele tempo fecharam os olhos. Abração.

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    2. Wilson Baptista Junior21/02/2020, 19:39

      Heraldo, entre na história, sim, a porta está aberta, e deixe que a luz da sua BIC azul vá buscar nas brumas do passado a lembrança que minha memória não trouxe inteira. Ficarei muito contente de ver o que ela nos trará.

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