Elis Regina (imagem - divulgação) |
Heraldo
Palmeira
A feijoada do sábado no boteco da esquina estava prometida há
tanto tempo, e sempre aparecia alguma milacria
na agenda para atrapalhar. Ele era da música, ambiente em que nos conhecemos
havia mais de vinte anos. E vinha há outros muitos numa luta enorme de
sobreviver, não tinha mesmo como preferir uma feijoada adiável diante de um
trabalho qualquer que fosse.
Ficamos alguns meses tentando, numa espécie de “olá, como vai, eu
vou indo e você”, como se todos estivéssemos correndo para pegar um lugar no
futuro ou em busca de um sono tranquilo. Como se houvesse um sinal fechado
acendendo e apagando correrias contra os nossos afetos.
Finalmente o nosso sábado prometido. E ele chegou devagar, eu o vi
descer do ônibus e atravessar a rua como que medindo cada passo. O abraço
apertado, nossas palavras de ordem ordenando o carinho que consagra uma amizade
em amor, e o respeito erguido e celebrado pela admiração.
Reclamou da dor cotidiana, ininterrupta num dos joelhos. “O
maldito menisco!” – falou como se falar soasse bálsamo e alívio. Como se me
apresentasse um desconhecido. Como se eu não tivesse os meus próprios meniscos
escondidos, à espreita da fadiga mais dia, menos dia. Uma maldita cartilagem
que serve para ajudar o funcionamento da articulação do joelho, realizar a improvável
tarefa de amaciar o contato dos dois ossos da perna que recebem nosso peso e
sustentam o caminhar. Mas que se desgasta, sai do lugar em determinado momento
(e não acha o caminho de volta) e se torna especialista em contribuir com dores
agudas e gerar insegurança a cada passo – por incômodo e medo da dor.
Até ensaiamos falar de exercícios físicos de reforço da
musculatura dos joelhos (para evitar a cirurgia simples, ambulatorial, mas que
não evita o retorno do problema com o tempo) e do uso constante de colágeno,
vaga promessa de recompor cartilagens. Mas só de imaginar os tais exercícios
físicos, deu cansaço imediato. Ainda mais com esse negócio de medicamento de
uso constante, impondo agendas a quem já não quer agenda nenhuma.
Preferimos obviamente dar atenção direta à cerveja que chegaria em
segundos, sempre nas tradicionais garrafas “mofadas” que faziam a fama do lugar.
Não queríamos repetir a mania dos realmente velhos, que danam a trocar momentos
de satisfação por lamúrias, falar de doenças e terapias. E o prazer daquele
(re)encontro era raro para ser desperdiçado com “ais” e “uis”.
Eu conhecera aquele bom sujeito num estúdio de gravação. Fizemos
dois discos juntos, eu produzindo, ele na engenharia de som, um se intrometendo
generosamente na tarefa do outro, diversão inesquecível. Falamos das atividades
que estavam nos ocupando agora, das expectativas, do povo de casa, do que poderia
vir depois. Presente a velha preocupação com o amanhã que nos tira o sossego
desde muito antes de anteontem.
O primeiro gole da cerveja desceu como o paraíso refrescante em
cascata, inebriando o interior. Um freio de arrumação para sossegar qualquer
inquietude da alma. Ao menos pelos próximos trinta segundos, uma pitada de eternidade
na região do prazer.
Falamos de muitas coisas e, natural pela idade em que estamos, da
velhice que está ali do outro lado da rua querendo namorar com a gente na
marra. Claro que o tempo marcaria presença na nossa conversa. Mas mantivemos lamúrias,
doenças e terapias fora de campo.
Falamos da crise da música, do vazio criativo, da saudade dos
grandes momentos. Lembramos de Elis, inigualável! De uma entrevista na tevê onde
citava o custo muito alto dos discos como motivo de afastamento do público. Mal
sabia ela que chegaria um tempo em que o negócio ficaria ainda pior, a capacidade
criativa sumiria de circulação e aquilo tudo que merecia sua defesa a unhas e
dentes ficaria sem valor.
Desabrida como sempre, falava de tudo com coragem, inclusive do
estado já decadente do sistema, das canalhices nas relações profissionais e com
as gravadoras, da postura individualista de artistas e músicos, que terminaram sendo
as principais vítimas da falência do mercado. Cenário que alguns deles ajudaram
a desmontar por covardia ou conivência. Ou as duas juntas.
“Desacostumamos disso, da coragem. Hoje temos de aturar esse mundo
de tantas aparências frágeis, de bocas caladas em compadrio, de todos
escondidos”, ele disse com o copo suspenso na mão esquerda, olhando firme para
mim como se tivesse parado, brusco, noutro sinal fechado, as contradições do
tempo a caminho do próximo gole.
No finalzinho da entrevista, perguntada a respeito dos então novos
intérpretes que estavam surgindo, foi taxativa a respeito da qualidade artística
da sua geração: “Desculpa a falta de modéstia, mas a nossa geração foi ‘o
seguinte’! Feijoada, mesmo, fomos nós que fizemos. Nós é, né? Fazer o quê?!” –
ela falou com aquela ginga premeditada que a deixava linda e diabólica!
A nossa feijoada chegou, magrinha, preparada com esmero e trazida
pelo velho garçom que também transita pela cozinha, que sempre me cumprimenta
quando passo na porta do sujinho indo ou voltando do trabalho. E veio guarnecida
de mais uma cerveja, tão “mofada” quanto a primeira.
“Estamos ficando velhos!”, reclamou meu amigo. Eu disse que sim,
mas que não era motivo para mudarmos o passo. “Temos de seguir vivendo, não há
como parar”, completei. Era preciso considerar que sempre existem bons motivos
para insistir, tentar compreender o mecanismo da existência, encarar o
envelhecimento sem tanto desânimo. Afinal, virá de qualquer maneira e nossa
postura diante dele poderá piorar ou atenuar o convívio. É melhor buscar o sono
tranquilo.
Lembrei de trechos
de um poema que tinha muito a ver com o semblante acabrunhado que se forma
diante da velhice.
Sob
o olhar alheio
Velho
é ridículo
Quanto
mais à vontade, mais ridículo
Quanto
mais fala, pior parece
Se
antigo, é indesejado
Se
‘pra frente’, evitado
Se
corre para pegar o ônibus, desajeitado
Capenga,
dolorido, coitado
Se
fala de dores, insuportável, abandonado
Se
se veste sóbrio, tadinho, quadrado
Se
se veste jovem, não se vê, descolado
Se
fica na sua, infeliz, mofado
Se
pinta o cabelo parece bruxa
Se
o deixa branco parece velho
Se
correto e educado, ultrapassado
Se
‘boca suja’, inconveniente, desbocado
Se
dirige, irresponsável
Se
não dirige, um encostado
Se
tem dinheiro é procurado
Se
é pobre, um fracassado
Se
esquece nomes, demente, senilizado
Se
lembra tudo, um fofoqueiro danado
Se
magrinho, doente desenganado
Se
gorducho, comilão desequilibrado
Artrose,
arritmia, depressão
Colesterol
alto, AVC, infartado
Se
feliz risonho, bobo alegre
Se
carrancudo, rabugento mal humorado
Deuses,
Buda, todos os santos
Benzedeira,
pai de santo, saravá
O que será de nós, pobres
coitados?
Que velhos
que somos, se mal deu tempo de ver o tempo passar, se nem entendemos o que foi
ser jovem? O que são as dores de corpo diante das lembranças dos prazeres de
corpo provocados e vividos?
Enquanto os sinais de prazeres e desprazeres se misturam, como a
tinta que tenta pintar o cabelo, como a briga da dieta com a vontade de comer,
capengas, doloridos, coitados de todos os tratados e regras que insistem em
infernizar quem já decidiu não mais lutar guerras perdidas. Quem já entendeu que
enquanto houver vida, só nos resta viver.
Eu sei, nada será como antes, mas ninguém sabia antes como seria o
depois. Portanto, se outro cabeludo aparecer na sua rua, eu ainda moro nessa
mesma rua. Você ainda quer morar comigo? Sofro calado, a voz é um instrumento
que eu não posso controlar. É só poesia, eu só preciso ter tudo aquilo por mais
um dia. E a terra continua azul da cor do seu vestido, e o girassol tem a cor
do seu cabelo. Eu só desejo mais uns instantes para saborear a vida como uma
maravilha nua. Se eu morrer não chore, não, é só a lua. E alguém vai lembrar de
olhar. Até sempre.
E haverá outras eternidades para que nada seja eterno em um só
lugar. Ora se haverá! Ou Deus não seria perfeito nesse jogo de brincar de ser
criança e envelhecer, de viver e morrer, à imagem e semelhança.
Mais uma cerveja “mofada” foi posta. Unanimidade naquelas mesas,
ignorando diferenças e indiferenças, juventudes e velhices, silêncios e sons.
Apenas vivendo o tempo de esvaziarem a garrafa. Sem medos, sem dramas, sem
perguntas incômodas, nem aí para o fato de cada um ter uma opinião formada a
respeito dela. Muito menos aí para o futuro incerto da garrafa vazia. Não, nem
toda unanimidade é burra, até porque há quem detesta cerveja, mesmo as “mofadas”.
Unanimidade!...
O que importa se estarei triste ou feliz, se ninguém vai querer
saber? A dor e a alegria serão minhas, as pessoas continuarão a passar ao lado
sem me ver. Talvez seja mais certo não querer enxergar tudo, apenas aquilo que
cabe no olhar. Sem perguntas, sem respostas, ora mais medo ora menos medo,
sendo apenas o que pode ser.
Ah, os tempos em que a gente achava que enxergava tudo... Nunca
existiu aquela visão, acreditamos na sua ilusão. Sim, a gente acredita no que
quer e bem entende e depois fica sem entender quando não entende.
A ladeira da rua continuará ali, pouco importando a dor no joelho.
Subir ou não vai trazer ou afastar o prazer da cerveja “mofada” e da feijoada magrinha,
preparada com esmero e trazida pelo velho garçom que também transita pela
cozinha.
Eu não boto fé nessa loucura, nesse medo onipresente. Eu não gosto
de quem me arruína em pedaços. Mas não sou louco o suficiente para ignorar o
temor de não dar conta de subir a ladeira ou de descer desembestado.
É sensato tomar a linha e o linho para bordar o próprio retrato,
como um sudário sem santidade alguma, apenas o relevo da estrada e o vapor da
correnteza de uma prece tecidas ponto a ponto pela agulha do real. É sensato ter
a sabedoria de usar as cores da fantasia para ziguezaguear tormentos e alegrias
nas curvas generosas da compreensão. A vida não é nada além da compreensão que
se tem dela.
Mas também não quero perder o sono por isso. Pra que morrer do
tiro que não levei? Posso achar prazeres no terreno plano, dar sentido ao
devagar e sempre, fazer minhas juras secretas, aquelas que o coração não diz.
Há cervejas “mofadas” e feijoadas magrinhas por toda parte. E
velhos garçons que também transitam pelas cozinhas e cumprimentam seus clientes
que estão indo ou vindo do trabalho, vozes involuntárias do tempo. É assim desde
que o mundo é mundo e continuará sendo enquanto vida houver, porque sempre
haverá um jovem do minuto anterior envelhecido pelo minuto seguinte.
Do que adiantará ficar fazendo a conta desse tic tac teimoso que só anda para a frente? Quem tentou parar ficou
para trás e todos se foram. Por isso, é melhor não atrasar, apenas bater
estrada torcendo para dar tempo de ir, e voltar onde valer a pena, onde haverá
alguém para rever. Pode até sobrar tempo para outros assuntos que nem eram
malditos, apenas nunca foram ditos. Ou não existem trilhões de estrelas no céu?
Quem de nós, com modestas duas contas nos olhos, atravessa inteiro esse imenso
véu de brilhos e escuridões? Quem é capaz de explicar esse destino?
O amigo e eu já estávamos ficando mofados de tanta cerveja, rindo
muito, rindo de tudo, de nós, até do que não era risível. Daí a pouco já
estaríamos pensando em jantar. Nos levantamos apoiando nas cadeiras, rindo mais
um pouco de nós – talvez, o melhor riso que existe, daquele que se aponta o
dedo na direção do nariz do outro e destrava mais uma gargalhada vinda do
espelho invisível. Não há terapia melhor para acomodar a pátina instalada sobre
a juventude.
O velho garçom que também transita pela cozinha me ajudou a
colocar meu amigo no táxi do ponto da esquina, motorista antigo no bairro –
rindo de nós sem sair do carro, sem entender que estávamos rindo dele também.
Depois, o velho garçom que também transita pela cozinha atravessou
a rua comigo para me esquivar dos carros que pareciam embriagados a olho nu.
Claro que eu estava muito bem, apenas usufruindo aquele luxo, que não é para qualquer
um, de ser levado em casa daquele jeito. Tão firme a ponto de enxergar como o
mundo estava rodando perigosamente.
Encostei a porta devagarinho e me atirei na cama. A última coisa de
que me lembro foi ouvir a voz de Deus vindo do rádio, cantando “Nada a fazer
senão esquecer o medo...”. Como a me dizer que é indispensável deixar virar
poesia qualquer resto de poesia que ainda exista em mim.
Amanheci certo de que tinha vivido aquele ontem para sempre.
Lembrei de tudo que não esqueci, sem lamentar o que não lembrei. O rádio me
dava razão, na voz do cantor: “Sim, se não for pra sempre, vai ficar pra sempre
que a gente lembrar”.
Trechos
de:
E os velhos? (Ana
Nunes)
Inspirações
incidentais:
Sinal fechado
(Paulinho da Viola)
Só nos resta viver
(Angela Rô Rô)
Nada será como antes
(Milton Nascimento-Ronaldo Bastos)
Detalhes
(Roberto Carlos-Erasmo Carlos)
Um girassol da cor de seu cabelo
(Lô Borges-Márcio Borges)
Sofro calado
(Milton Nascimento-Regis Faria)
Canções e momentos
(Milton Nascimento-Fernando Brant)
Beijo partido
(Toninho Horta)
A linha e o linho
(Gilberto Gil)
Jura secreta
(Sueli Costa-Abel Silva)
As várias pontas de uma estrela
(Milton Nascimento-Caetano Veloso)
Caçador de mim
(Luiz Carlos Sá-Sérgio Magrão)
Sim
(Renato Luciano-Oswaldo Montenegro)
Li com amargura
ResponderExcluirporque estava triste.
Ficou-me um doce amargo de aspartame no céu da boca
e no coração uns sobressaltos de angústia.
E depois entre uns sem jeitos
ficou-me um enterneço no coração.
Ainda triste.
Até sempre.
Ana,
ExcluirA tristeza e a amargura são parceiras, ainda mais quando nao encontram resistência no nosso desejo decidido de seguir contornando tristezas e amarguras. A angústia que elas geram pode ser até saudável, desde que passe logo, atingida pelo antídoto do nosso querer continuar bem, dentro dos limites que temos, os "sem jeitos". Acho que você viveu isso, já que o coração guardou esse seu "enterneço". Sigo alegre. Até sempre mais.
Um abraço fraterno e carinhoso! Mais uma emocionante crônica, muito especial para mim, querido amigo!
ResponderExcluirObrigado. Outro. Continuemos personagens da vida.
ExcluirPalmeira é um exímio cronista.
ResponderExcluirAlém de manejar com propriedade as palavras, seus textos são mesclados com letras de poesias e canções, que se ajustam perfeitamente bem na essência do que deseja transmitir.
Mais uma vez o meu aplauso a esta crônica bem elaborada, que nos faz ler com atenção merecida, e compartilharmos as suas recordações com as nossas, onde concluiremos que vários episódios de cada um de nós são muito parecidos, apenas em outro tempo e local.
Abraço.
Saúde e paz.
Bendl,
ExcluirMuito obrigado. A música tem importância enorme na minha vida, por isso anda sempre tão próxima das minhas manifestações cotidianas.
É o que sempre digo, meus escritos são apenas rascunhos a respeito do que nos cerca. E as histórias se repetem, mudam apenas seus personagens e tempos, como você muito bem registrou. Abraço.
Como sempre um poeta !
ResponderExcluirGostei de ver a inclusão do poema da Ana que retrata bem o envelhecer !
Com otimismo vamos vencendo cada etapa e as coisas boas que temos ainda
Obrigada e um abraço
Obrigado, Lea. A Ana sempre nos reserva ótimas surpresas. Um "simples" comentário e buuum!
ExcluirÉ exatamente esse otimismo que nos serve de energia para nos mover adiante, seguir da melhor maneira possível. Abraço.