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22/02/2019

O branco

ilustração - Gustave Doré


Wilson Baptista Junior
Vivo cercado de telas.
Há mais tempo do que gosto de lembrar. Desde que os primeiros terminais de vídeo de computador vieram tomar o lugar dos cartões perfurados e das folhas quadriculadas em que escrevíamos a lápis os comandos de programação.
Olho agora em volta de onde estou e vejo, da esquerda para a direita, a tela do meu laptop, as duas telas do meu computador de mesa, a tela do laptop da Ana, a tela do meu iPad. Sem contar, claro, as dos telefones, que já não reconhecem esse nome e viraram, de uns tempos para cá, pequenos computadores disfarçados.
Como se não bastassem as telas, o bloco de papel à minha direita, com a lapiseira amiga antiga sempre pronta para escrever.
E todos, as telas e o bloco, inteira, cruel e desesperadamente vazios...
Para onde foi? Me pergunto.
Para onde foi a faísca que saltava através dos dedos para as teclas obedientes que povoavam as telas de causos e de histórias?
Olho para mim como o motorista desacorçoado olha para o carro que parou de funcionar no meio da viagem, sem saber qual, dentro das tantas e misteriosas partes que o compõem, não quer mais trabalhar.
Olho para dentro, para as minhas lembranças, mas as que me vêm à mente não são boas para contar aqui, não que eu não quisesse que vocês as lessem, talvez vocês gostassem, mas porque muitas não teriam como não abrir as portas para o tipo de comentário de que fugimos no blog.
E como o motorista que quando se cansa de olhar para o carro olha em volta em busca de quem o ajude, olho à minha volta em busca das coisas que ajudavam minhas ideias: os quadros nas paredes, os discos, LPs, CDs, fitas, livros – ah, muitos livros, dezenas, centenas, milhares talvez, ocupando cada canto e cada superfície livre, tantos que o vizinho de baixo se preocupa com a resistência da laje, mas o prédio é antigo e firme e feito no tempo em que as pessoas liam, e me sinto um pouco como o velho marinheiro do Coleridge pensando: Livros, livros a toda a volta, e nem uma palavra para contar!
Terei eu, como ele, flechado meu albatroz? Mas se ele foi condenado a nunca mais parar de contar sua história, porque o terei sido eu a nunca mais ter histórias para contar?
Já que olhar em volta não adianta, olho de novo para dentro. Em vão. Em nenhum ponto da longa linha do tempo vejo ao menos a sombra da imagem do pássaro caindo.
E abro outra vez os olhos. E de repente, percebo que enquanto isso a tela à minha frente se encheu de letras, e as letras se juntaram e formaram palavras, e as palavras se juntaram e formaram frases.
Não disseram muito, é verdade. Mas será um recomeço?

Com um agradecimento a Samuel Taylor Coleridge,
em sua bela “The Rime of the Ancient Mariner”:
“Water, water, every where,
Nor any drop to drink.”




14 comentários:

  1. Lea Mello Silva22/02/2019, 09:56

    Mano
    de vez em quando as palavras fogem e neste mundo novo é difícil saber o que falar
    Mesmo sem escrever muito vc nos envia um recado urgente
    Precisamos viver melhor
    Nas entrelinhas vc fala e como !!
    Bom ter vc aqui
    Um abraço

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    1. Wilson Baptista Junior25/02/2019, 10:19

      Léa, que bom é ter você como nossa leitora. Muito obrigado pelo elogio. Um abraço do Mano

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  2. Moacir Pimentel22/02/2019, 14:10

    Wilson,
    Para começo de conversa a cada vez que a gente se depara com posts do quilate desse seu “Branco” criativo, inspirado no longo poema do Coleridge e ilustrado por Gustave Doré, é impossível não lamentar a raridade dos seus textos sempre cultos, inteligentes e bem escritos.
    Mas para entender porque os teclados se calam seria preciso saber, em primeiro lugar, porque raios eles cantam (rsrs) Sobre o tema o George Orwell, em um ensaio de nome Why I Write? falou do “propósito político”, usando o adjetivo no seu mais largo sentido: o desejo de botar ordem nas coisas e de empurrar o mundo em uma certa direção. Já o Papa Hem dizia que escrever era “sentar diante de uma folha em branco e...sangrar” e o Byron jurava que “se não escrevesse para esvaziar a mente, enlouqueceria"(rsrs)
    Não duvido que se possa escrever movido pela vontade de mudar o mundo ou mesmo pelo desespero da certeza de que nunca se poderá colocar completamente na página o que se carrega na mente e no coração. Mas devo confessar que assim como viajo, escrevo light: me inclua fora dessa de ficar deprimido diante do teclado. Gosto de escrever desde moleque! Não escrevo para mudar nada mas para pensar melhor, fazer perguntas que valham a pena, superar as primeiras impressões e/ou as respostas fidagais, me mover mais facilmente entre fatos e opiniões e tentar compartilhar o pouco que aprendi.
    Sabe aquele momento em que a leitura pega fogo e ganha vida na página e/ou na tela? É a mesma coisa com a escrita: de repente tudo faz sentido e você sabe do que se trata e porque está escrevendo: para escapar da mesmice circundante e sobreviver como indivíduo depois de tornar visível o seu pensamento. Como você acabou de fazer aqui e agora com brilhantismo. Acabo de lembrar daquele outro albatroz do Baudelaire:
    Le Poète est semblable au prince des nuées
    Qui hante la tempête et se rit de l'archer;
    Exilé sur le sol au milieu des huées,
    Ses ailes de géant l'empêchent de marcher.
    Que você continue voando nas suas pretinhas!
    Abração

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    1. Moacir,
      ser comentado com um verso do albatroz de Les Fleurs du Mal é coisa para parar e refletir. Quem dera poder pensar nessas asas de gigante, quando só se está sentindo o tombadilho do navio...
      Ainda não consegui saber bem porque às vezes escrevo, além talvez do que está na capa do blog: "para descobrir se alguém ia se interessar pelo que eu disser de vez em quando". É bom saber que às vezes a gente consegue fazer isso :)
      Não sinto, pobre de mim, aquela necessidade vital de por para fora o que explode na alma, para não enlouquecer, e poucos de nós podem ter as experiências guardadas no coração do Papa Hem, para poder simplesmente sangrar sobre as teclas. Quando leio isso dele me lembro de outro poema que fala também de um pássaro e de poetas, onde Musset termina dizendo destes últimos:

      "Quand ils parlent ainsi d'ésperances trompées,
      De tristesse et d'oubli, d'amour et de malheur,
      Ce n'est pas un concert à dilater le coeur;
      Leurs déclamations sont comme des epées:
      Elles tracent dans l'air un cercle éblouissant;
      Mais il y pend toujours quelques gouttes de sang".

      Pelo menos com espadas já brinquei um pouco. Quem sabe um dia? Sonhar custa pouco.

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  3. 1) Salve Wilson, me fez lembrar do grande poeta mineiro e maneiro, CDA = Carlos Drummond de Andrade.

    2) Ele tem um livro que se chama "Impurezas do Branco".

    3)Lembro tb do Zen, a folha branca é a perfeição, o caminho, o todo, e lá nos vamos escrevendo, publicando nossos pensamentos.

    4) Abraços em todos (as).

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    1. Wilson Baptista Junior25/02/2019, 10:21

      Mestre Antonio, obrigado, é bom pensar no caminho pela frente como uma folha em branco. Que a escrita nele possa tender para o meio.

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  4. Paulo Tripaldi23/02/2019, 22:42

    Os velhos cartões perfurados "O job de dados" assim meu caro amigo vc povoou sua vida com muito trabalho e eu agradeço por desfrutar da sua amizade. Pura emoção o seu texto.

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    1. Wilson Baptista Junior25/02/2019, 10:23

      Paulo, que a nossa amizade ainda continue por muito tempo. Um abraço do Mano.

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  5. Já se foi o tempo em que explodia alguma coisa, matava todo mundo e a estória acabava aí.
    Acho que gosto mais agora.
    Beijo, irmão querido, você é especial.

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    1. Primeira querida, especial é você, com sua força e sua coragem. E me deixa feliz você gostar de me ler.

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  6. Amei, Maninho!
    Até quando você está sem idéias, você as tem tão claras!

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  7. José Agulhô25/02/2019, 08:07

    Excelente, Mano!

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    1. Vindo de quem vem e que sabe bem do que fala, é um elogio para se guardar com carinho, grande Agulhô.

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