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14/02/2019

Duas mulheres


imagem Wikimedia commons

Heraldo Palmeira
O voo partiu no horário, com muitos lugares vazios. As duas primeiras fileiras eram separadas das demais por uma espécie de cortina, como um arremedo de espaço VIP – o aperto das pernas denunciava o engodo. Onze dos doze lugares daquele setor estavam ocupados, apenas uma poltrona vazia, do meio.
Quando o avião iniciou o procedimento de descida, a comissária consultou os dois passageiros da segunda fileira do lado direito, se eles poderiam receber ali, no meio, uma passageira que ela precisava acomodar.
Os dois homens haviam dividido a poltrona vazia com pertences. O mais jovem, à janela, colocara uma pequena bolsa de tecido colorido, ostentando etiqueta chamativa de marca famosa do prêt-à-porter. O mais maduro, ao corredor, repousara um chapéu preto, de pelo de coelho, com fita preta, feito à mão por um chapeleiro tradicional.
Ninguém nas duas fileiras do falso espaço VIP entendeu direito, até porque restavam pouco mais de vinte minutos de voo. Mas a mulher chegou exuberante e se acomodou.
Vestia calça de couro e blusa de malha grossa, pretas. Cachecol de tricô num azul horroroso, que combinava no tom com uma botinha de camurça de gosto duvidoso. Relógio Gucci prata, modelo clássico. Brincos de argolas grandes e colar, ambos em amarelo-ouro – só algum especialista conseguiria afirmar se eram realmente do ouro que tentavam aparentar. Pelo menos, combinavam com a tintura do cabelo bem cuidado. Unhas postiças enormes, em vermelho-desespero. Rosto denunciando intervenções estéticas, algumas imprudentes. Et pour cause, um perfume fortíssimo, adocicado, de travar qualquer narina ao redor.
O livro A amiga genial foi uma espécie de escudo, ela não parou de ler naqueles momentos antes de o avião tocar o solo.
As duas poltronas do meio da segunda fileira carregavam agora as únicas mulheres daquela suposta área VIP – as outras dez estavam ocupadas por homens. Eram duas mulheres que saltavam aos olhos por motivos opostos.
A mulher sentada na poltrona do meio da segunda fileira do lado esquerdo já chamava a atenção desde o ambiente do check-in. Alta, esguia, perfeita dentro de um vestido Chanel, preto – que terminava dois dedos acima dos joelhos, zeloso na altura da barra, cúmplice do desejo ao delinear as curvas perigosas daquele corpo.
Cabelos longos, abaixo dos ombros, levemente ondulados, pretos, com luzes aplicadas com precisão de engenharia. Óculos de sol lindos, irremovíveis. Brincos de brilhantes no tamanho adequado, discretos – apesar dos brilhantes. Bolsa Fendi combinando com tudo. E um ar de elegância e discrição funcionando como uma couraça encantadora.
A mulher exuberante entrara acompanhada de um homem bem-apanhado, ficaram um tempo conversando com os comissários de bordo no ambiente contíguo à cabine dos pilotos. Mas levantou apressada, quase atropelando quem estava ao redor. O rapaz à janela aproveitou o empuxo e saiu às pressas, para ficar em pé no corredor, naquela fila estressada que se forma esperando a porta do avião ser aberta.
O homem do chapéu preto, de pelo de coelho, com fita preta, feito à mão por um chapeleiro tradicional saiu do táxi e entrou pensativo no hotel elegante. Pouco depois, abriu as cortinas das duas grandes janelas do quarto com vista para o Tejo. A famosa luz de Lisboa, sempre deslumbrante, cantada em verso e prosa pelos amantes da boa vida e reproduzida por pintores e fotógrafos de todos os tempos encheu o ambiente.
Ele se pegou pensando na mulher exuberante, que veio sentar ao seu lado na parte final do voo. Não entendeu porque a comissária demonstrava certo nervosismo quando trouxe aquela passageira para sentar ao seu lado.
Quis achar alguma conexão dela com aquele livro festejado, cuja a autora mantém um grande mistério a respeito da própria identidade, nunca apareceu em público e correm rumores de que seu nome é um pseudônimo de uma tradutora.
Também estranhou o fato de o homem bem-apanhado, com quem ela entrara no avião, ter sumido de cena. Deu de ombros olhando para o velho rio das Grandes Navegações. Nada indicava que aquela mulher fosse algo além de uma pessoa metida em encrencas cotidianas pouco interessantes.
O hotel Dom Pedro tinha tradição em eventos sociais e culturais da cidade. Ele era um hóspede frequente, gostava daquela atmosfera e da culinária famosa.
Reservou mesa para o jantar no Il Gattopardo. Desceu ao terceiro andar e entrou no restaurante. Preferia ficar na parte interior, apreciava as cadeiras de palhinha e o serviço impecável. Escolheu uma massa, especialidade da casa italiana, e estava distraído, dedicado ao vinho português.
Percebeu um movimento e levantou a vista. Sim, era ela, a mulher que sentara na poltrona do meio da segunda fileira do lado esquerdo. E que esperara elegantemente a turba desembarcar, para, só então, levantar inesquecível!
Reviu-se pegando a valise no compartimento de bagagem do avião. E depois entregando o sobretudo dela, preto, de lã de caxemira, que estava ao lado. Nunca iria esquecer o sorriso que mereceu. Ela vestiu a peça e se encaminhou para a saída. Ele, feito fotógrafo apaixonado pelo instantâneo, caminhou logo atrás, ouvindo o silêncio absoluto que restou.
Claro que ela não olharia para trás e nem ele cometeria a imprudência de ultrapassá-la. Preferiu seguir devagar, enchendo os olhos com aquele vulto que começava a se afastar com pressa dentro do finger. Guardou na memória o que restou do perfume suave dela.
Ela chegou sozinha e sentou mais adiante. Abriu a carta de vinhos, escolheu. O tempo foi passando e não chegou ninguém mais. O homem aguçou a visão periférica, fez um movimento de cabeça no tempo certo e ganhou um olhar encantador.
O velho garçom, discretíssimo, foi providencial. Ela aceitou o convite para dividirem a mesa. Conversaram amenidades, riram, contaram pedaços de suas histórias. Jantaram, abriram a segunda garrafa de vinho. Italiano. Foi uma noite encantadora. Ela tomou o elevador, ele ficou para um café e licor.
Os hotéis protegem passos suaves no corredor e portas que abrem corações debaixo de sete chaves. Os hotéis guardam segredos que disparam a respiração. Os hotéis entregam flores pela manhã.

11 comentários:

  1. Moacir Pimentel14/02/2019, 15:10

    Salve o Mestre e a bela Lisboa!
    Pois é, pá. Hotéis têm mesmo um não sei o quê de libertador e decadente talvez porque signifiquem uma pausa na monotonia do dia a dia, novos ambientes para explorar e novos sabores para degustar e por aí vai. O certo é que quando estamos perfeitos desconhecidos, no modo férias, divorciados dos estresses de praxe, das preocupações com as contas, sem nenhuma proposta que tem que ser entregue pra semana, simplesmente relaxamos e damos de ver a lua e, como dizia o poetinha, “se ao luar que atua desvairado vem se unir uma música qualquer, aí então é preciso ter cuidado porque deve andar perto uma mulher". Ou duas (rsrs)
    Boa viagem e não esqueça nem da Bic nem do sinal de “Não Perturbe”.
    Abração

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    1. Heraldo Palmeira16/02/2019, 17:56

      Caríssimo,
      Os hotéis são territórios do mundo livre e que juntam gente de vários mundos. Ambiente que cria histórias transitórias, fantasias e sopros de vida. Até sonhos!

      A Bic azul segue sempre a postos e a plaquinha não sai da maçaneta, ora pois! Abração.

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    1. Heraldo Palmeira16/02/2019, 18:20

      Diniz,
      Já nos apregoou Pessoa uma frase atribuída por Plutarco a Pompeu, general romano, e que teria sido proferida em 70 a.C., "Navegar e preciso, viver não é preciso".

      Portanto, viajar é uma força imprecisa que nos leva para onde queremos ir. Ou a lugares inesperados. Ao ponto de, muitas vezes, nem precisarmos sair do lugar. Tanto que nos vem o mesmo Pessoa e garante: "A literatura é a maneira mais agradável de ignorar a vida". Ele estava certo de novo. Abraço.

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  3. Olá Heraldo,
    Homem feliz se aproveitando dos ares lusitanos para escrever uma crônica amorosa. Certamente ao som de fado e Alvarinho. Mistura boa porque muito bom o resultado.
    Por que sempre escolhemos o belo e a elegância? Preconceito? Apelo do belo? Talvez o Moacir saiba explicar!
    A escolha audaciosa no caminho do brega pode trazer surpresas boas. Risadas. Alento e idéias desconhecidas.
    Não ligue. Divagações apenas!
    Manchete lusitana :" Fotógrafo apaixonado pelo instantâneo" se perde entre janelas com vista para o Tejo. Fake news. Ele bem se achou!
    Obrigada pelos bons momentos.
    Até muito mais.

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    1. Heraldo Palmeira16/02/2019, 18:34

      Ana,
      Sim, os ares lusitanos incomparáveis! O fado soando pelos ares como trilha sonora de um mundo antigo que não para de rejuvenescer. E o Alvarinho do tipo que não se encontra no mercado, vem sem rótulo de uma quinta familiar, iguaria oferecida a amigos felizardos da cidade. Que me acolhem como se de casa fosse.

      Escolhemos o belo e a elegância exatamente porque belo e elegante. Quase sempre, não convém apostar numa suposta audácia que está fora do tom. Não dá para harmonizar com vinho vinagrado.

      Eu continuo sendo um grande mentiroso, meus rascunhos podem testemunhar a meu favor. Mas o fotógrafo, quase certo, se achou. Com a cumplicidade do Tejo. Até muito mais.

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  4. Observador sensível, escritor delicado. ÓTIMA CRÔNICA!!!

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    1. Heraldo Palmeira16/02/2019, 18:36

      Mestre,
      A vida que passa sem parar merece ser observada. Obrigado.

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  5. Wilson Baptista Junior17/02/2019, 12:41

    Heraldo, belo conto (como de costume). Moacir e Ana já disseram tudo, você já respondeu. Resta-me apenas a dúvida se o grande mentiroso confessado tem ou não um chapéu de pelo de coelho. Porque, afinal, sempre nos deixará a dúvida de se a mentira está no conto ou na resposta. Artimanha de bom escritor para deixar o leitor preencher os espaços não ditos, como o iceberg do Hemingway...

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    1. Heraldo Palmeira18/02/2019, 22:38

      Mano,
      A verdade e a mentira podem ser apenas o ponto de interseção entre o desejo e o fato consumado. E vivem debaixo do mesmo chapéu. Melhor que seja de pelo de coelho. Abração.

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  6. Fernando Pimenta20/02/2019, 21:37

    Caro Heraldo: esses ares da Lisboa atiçam a alma dos poetas, como você. E mexem também intensamente mesmo com os não-poetas. A sua crônica, como sempre, é ótima: mostra as pessoas por fora para desnudá-las por dentro. Tudo sob as bênçãos do azul do céu de Lisboa, do fado regular ou vadio, dos vinhos imemoriais. Abração, amigo.

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