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Heraldo
Palmeira
O voo partiu no horário, com muitos lugares vazios. As duas primeiras
fileiras eram separadas das demais por uma espécie de cortina, como um arremedo
de espaço VIP – o aperto das pernas denunciava o engodo. Onze dos doze lugares daquele
setor estavam ocupados, apenas uma poltrona vazia, do meio.
Quando o avião iniciou o procedimento de descida, a comissária
consultou os dois passageiros da segunda fileira do lado direito, se eles poderiam
receber ali, no meio, uma passageira que ela precisava acomodar.
Os dois homens haviam dividido a poltrona vazia com pertences. O
mais jovem, à janela, colocara uma pequena bolsa de tecido colorido, ostentando
etiqueta chamativa de marca famosa do prêt-à-porter.
O mais maduro, ao corredor, repousara um chapéu preto, de pelo de coelho, com
fita preta, feito à mão por um chapeleiro tradicional.
Ninguém nas duas fileiras do falso espaço VIP entendeu direito,
até porque restavam pouco mais de vinte minutos de voo. Mas a mulher chegou exuberante
e se acomodou.
Vestia calça de couro e blusa de malha grossa, pretas. Cachecol de
tricô num azul horroroso, que combinava no tom com uma botinha de camurça de
gosto duvidoso. Relógio Gucci prata, modelo clássico. Brincos de argolas grandes
e colar, ambos em amarelo-ouro – só algum especialista conseguiria afirmar se
eram realmente do ouro que tentavam aparentar. Pelo menos, combinavam com a
tintura do cabelo bem cuidado. Unhas postiças enormes, em vermelho-desespero. Rosto
denunciando intervenções estéticas, algumas imprudentes. Et pour cause, um perfume fortíssimo, adocicado, de travar qualquer
narina ao redor.
O livro A amiga genial foi
uma espécie de escudo, ela não parou de ler naqueles momentos antes de o avião
tocar o solo.
As duas poltronas do meio da segunda fileira carregavam agora as únicas
mulheres daquela suposta área VIP – as outras dez estavam ocupadas por homens. Eram
duas mulheres que saltavam aos olhos por motivos opostos.
A mulher sentada na poltrona do meio da segunda fileira do lado esquerdo
já chamava a atenção desde o ambiente do check-in.
Alta, esguia, perfeita dentro de um vestido Chanel, preto – que terminava dois
dedos acima dos joelhos, zeloso na altura da barra, cúmplice do desejo ao
delinear as curvas perigosas daquele corpo.
Cabelos longos, abaixo dos ombros, levemente ondulados, pretos,
com luzes aplicadas com precisão de engenharia. Óculos de sol lindos, irremovíveis.
Brincos de brilhantes no tamanho adequado, discretos – apesar dos brilhantes.
Bolsa Fendi combinando com tudo. E um ar de elegância e discrição funcionando
como uma couraça encantadora.
A mulher exuberante entrara acompanhada de um homem bem-apanhado,
ficaram um tempo conversando com os comissários de bordo no ambiente contíguo à
cabine dos pilotos. Mas levantou apressada, quase atropelando quem estava ao
redor. O rapaz à janela aproveitou o empuxo e saiu às pressas, para ficar em pé
no corredor, naquela fila estressada que se forma esperando a porta do avião
ser aberta.
O homem do chapéu preto, de pelo de coelho, com fita preta, feito
à mão por um chapeleiro tradicional saiu do táxi e entrou pensativo no hotel
elegante. Pouco depois, abriu as cortinas das duas grandes janelas do quarto
com vista para o Tejo. A famosa luz de Lisboa, sempre deslumbrante, cantada em
verso e prosa pelos amantes da boa vida e reproduzida por pintores e fotógrafos
de todos os tempos encheu o ambiente.
Ele se pegou pensando na mulher exuberante, que veio sentar ao seu
lado na parte final do voo. Não entendeu porque a comissária demonstrava certo
nervosismo quando trouxe aquela passageira para sentar ao seu lado.
Quis achar alguma conexão dela com aquele livro festejado, cuja a
autora mantém um grande mistério a respeito da própria identidade, nunca
apareceu em público e correm rumores de que seu nome é um pseudônimo de uma
tradutora.
Também estranhou o fato de o homem bem-apanhado, com quem ela
entrara no avião, ter sumido de cena. Deu de ombros olhando para o velho rio
das Grandes Navegações. Nada indicava que aquela mulher fosse algo além de uma
pessoa metida em encrencas cotidianas pouco interessantes.
O hotel Dom Pedro tinha tradição em eventos sociais e culturais da
cidade. Ele era um hóspede frequente, gostava daquela atmosfera e da culinária
famosa.
Reservou mesa para o jantar no Il Gattopardo. Desceu ao terceiro
andar e entrou no restaurante. Preferia ficar na parte interior, apreciava as
cadeiras de palhinha e o serviço impecável. Escolheu uma massa, especialidade
da casa italiana, e estava distraído, dedicado ao vinho português.
Percebeu um movimento e levantou a vista. Sim, era ela, a mulher
que sentara na poltrona do meio da segunda fileira do lado esquerdo. E que
esperara elegantemente a turba desembarcar, para, só então, levantar inesquecível!
Reviu-se pegando a valise no compartimento de bagagem do avião. E depois
entregando o sobretudo dela, preto, de lã de caxemira, que estava ao lado. Nunca
iria esquecer o sorriso que mereceu. Ela vestiu a peça e se encaminhou para a
saída. Ele, feito fotógrafo apaixonado pelo instantâneo, caminhou logo atrás,
ouvindo o silêncio absoluto que restou.
Claro que ela não olharia para trás e nem ele cometeria a
imprudência de ultrapassá-la. Preferiu seguir devagar, enchendo os olhos com
aquele vulto que começava a se afastar com pressa dentro do finger. Guardou na memória o que restou
do perfume suave dela.
Ela chegou sozinha e sentou mais adiante. Abriu a carta de vinhos,
escolheu. O tempo foi passando e não chegou ninguém mais. O homem aguçou a visão
periférica, fez um movimento de cabeça no tempo certo e ganhou um olhar
encantador.
O velho garçom, discretíssimo, foi providencial. Ela aceitou o convite
para dividirem a mesa. Conversaram amenidades, riram, contaram pedaços de suas
histórias. Jantaram, abriram a segunda garrafa de vinho. Italiano. Foi uma
noite encantadora. Ela tomou o elevador, ele ficou para um café e licor.
Os hotéis protegem passos suaves no corredor e portas que abrem corações
debaixo de sete chaves. Os hotéis guardam segredos que disparam a respiração. Os hotéis entregam
flores pela manhã.
Salve o Mestre e a bela Lisboa!
ResponderExcluirPois é, pá. Hotéis têm mesmo um não sei o quê de libertador e decadente talvez porque signifiquem uma pausa na monotonia do dia a dia, novos ambientes para explorar e novos sabores para degustar e por aí vai. O certo é que quando estamos perfeitos desconhecidos, no modo férias, divorciados dos estresses de praxe, das preocupações com as contas, sem nenhuma proposta que tem que ser entregue pra semana, simplesmente relaxamos e damos de ver a lua e, como dizia o poetinha, “se ao luar que atua desvairado vem se unir uma música qualquer, aí então é preciso ter cuidado porque deve andar perto uma mulher". Ou duas (rsrs)
Boa viagem e não esqueça nem da Bic nem do sinal de “Não Perturbe”.
Abração
Caríssimo,
ExcluirOs hotéis são territórios do mundo livre e que juntam gente de vários mundos. Ambiente que cria histórias transitórias, fantasias e sopros de vida. Até sonhos!
A Bic azul segue sempre a postos e a plaquinha não sai da maçaneta, ora pois! Abração.
Belo texto! Viajei!!!
ResponderExcluirDiniz,
ExcluirJá nos apregoou Pessoa uma frase atribuída por Plutarco a Pompeu, general romano, e que teria sido proferida em 70 a.C., "Navegar e preciso, viver não é preciso".
Portanto, viajar é uma força imprecisa que nos leva para onde queremos ir. Ou a lugares inesperados. Ao ponto de, muitas vezes, nem precisarmos sair do lugar. Tanto que nos vem o mesmo Pessoa e garante: "A literatura é a maneira mais agradável de ignorar a vida". Ele estava certo de novo. Abraço.
Olá Heraldo,
ResponderExcluirHomem feliz se aproveitando dos ares lusitanos para escrever uma crônica amorosa. Certamente ao som de fado e Alvarinho. Mistura boa porque muito bom o resultado.
Por que sempre escolhemos o belo e a elegância? Preconceito? Apelo do belo? Talvez o Moacir saiba explicar!
A escolha audaciosa no caminho do brega pode trazer surpresas boas. Risadas. Alento e idéias desconhecidas.
Não ligue. Divagações apenas!
Manchete lusitana :" Fotógrafo apaixonado pelo instantâneo" se perde entre janelas com vista para o Tejo. Fake news. Ele bem se achou!
Obrigada pelos bons momentos.
Até muito mais.
Ana,
ExcluirSim, os ares lusitanos incomparáveis! O fado soando pelos ares como trilha sonora de um mundo antigo que não para de rejuvenescer. E o Alvarinho do tipo que não se encontra no mercado, vem sem rótulo de uma quinta familiar, iguaria oferecida a amigos felizardos da cidade. Que me acolhem como se de casa fosse.
Escolhemos o belo e a elegância exatamente porque belo e elegante. Quase sempre, não convém apostar numa suposta audácia que está fora do tom. Não dá para harmonizar com vinho vinagrado.
Eu continuo sendo um grande mentiroso, meus rascunhos podem testemunhar a meu favor. Mas o fotógrafo, quase certo, se achou. Com a cumplicidade do Tejo. Até muito mais.
Observador sensível, escritor delicado. ÓTIMA CRÔNICA!!!
ResponderExcluirMestre,
ExcluirA vida que passa sem parar merece ser observada. Obrigado.
Heraldo, belo conto (como de costume). Moacir e Ana já disseram tudo, você já respondeu. Resta-me apenas a dúvida se o grande mentiroso confessado tem ou não um chapéu de pelo de coelho. Porque, afinal, sempre nos deixará a dúvida de se a mentira está no conto ou na resposta. Artimanha de bom escritor para deixar o leitor preencher os espaços não ditos, como o iceberg do Hemingway...
ResponderExcluirMano,
ExcluirA verdade e a mentira podem ser apenas o ponto de interseção entre o desejo e o fato consumado. E vivem debaixo do mesmo chapéu. Melhor que seja de pelo de coelho. Abração.
Caro Heraldo: esses ares da Lisboa atiçam a alma dos poetas, como você. E mexem também intensamente mesmo com os não-poetas. A sua crônica, como sempre, é ótima: mostra as pessoas por fora para desnudá-las por dentro. Tudo sob as bênçãos do azul do céu de Lisboa, do fado regular ou vadio, dos vinhos imemoriais. Abração, amigo.
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