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fotografia Moacir Pimentel |
Moacir Pimentel
É claro que não li todos os grandes livros mencionados por Helene Hannf
no filme Nunca te Vi, Sempre te Amei, mas li outros poemas e prosas que ela não
teria lido (rsrs) Decerto que os livros que li da lavra dela – 84, Charing
Cross Road, A Duquesa de Bloomsbury e O Legado de Q - me provocaram lembranças
de variadas esquinas britânicas que a moça não visitou. Logo, ao lhe descrever
as paisagens das Inglaterra física e literária dessa senhora, é inevitável que
eu termine teclando sobre as minhas (rsrs)
Mas, acredite, valeu a pena viajar pelas pretinhas da Helene que “só podia escrever sobre o que lhe acontecia” e passar a limpo todas as recordações e emoções que o seu filme nos
traz. Como os bons amigos, como os grandes livros, 84 Charing Cross Road não é para ser esquecido.
Portanto, ao contrário do que a foto que abre o post sugere, esse não
será apenas mais um passeio turístico. Hoje eu vou teclar sobre a cidade, sim,
mas ainda em um contexto literário, sob luz das cartas trocadas por duas
criaturas que nunca se encontraram mas que, de algum modo, rascunharam as vidas
um do outro : os nossos velhos conhecidos Helene Hanff e Frank Doel.
Perambulando pelas coisas que Helene escreveu depois do seu primeiro
livrinho, a gente entende que, de certa maneira, apesar dela ter desembarcado em
Londres dois anos depois da despedida do seu melhor amigo e personagem, a moça não
chegou tarde demais, pois o livreiro Frank - como um fantasma elegante - continuou
a aparecer em tudo o que ela criou depois, em coisas que, não se pode deixar de
pensar, ela teria teclado para ele, às vezes furiosamente e em maiúsculas, naquela
velha máquina de escrever, em missivas que jamais foram postadas mas que ele
teria “traduzido” perfeitamente.
O filme dedicado a esses dois
quase namorados é uma conversa que, como
dizia um famoso londrino de nome Jack - aqueeeele Estripador - temos que
entabular sem pressa e “por partes” (rsrs)
Porque ao assisti-lo se percebe que os livros e a vida, o filme e os poemas,
Londres e as cartas foram tão furtivamente amarrados juntos que cada corda
teclada reverbera outra.
Foi durante sua turnê literária pela Inglaterra que Helene descobriu que
as praias de Brighton consistem em seixos em vez de areia, que Ben Jonson fora
enterrado em pé porque nunca pagara pelo túmulo e que na realidade e tanto
tempo faz, o Big Ben não era a Torre nem o Relógio mas simplesmente o maior dos seus cinco sinos (rsrs)
Só que hoje se você perguntar a qualquer um nesse mundão de meu Deus, qual
é a imagem que mais associa a Londres, a resposta será “Big Ben!”. Embora eu creio que ele disputa com a cabine telefônica
e o ônibus vermelhos o título do mais icônico cartão postal dessas paragens.
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fotografia Moacir Pimentel |
A Torre do Relógio é chamada por todo o mundo afora de “Big Ben” mesmo que,
oficialmente, seu nome de batismo seja Torre Elizabeth e que a sua imagem e não
a das Casas do Parlamento ao lado dela - a principal residência dos monarcas
britânicos do período medieval até o reinado de Henrique VIII - tenha se
tornado o símbolo do governo britânico.
Assim decidi abrir esse post “livresco” com o Big Ben que, sem deixar de
ser um ícone turístico também possui um significado literário que nos remete a
uma das poucas autoras de ficção que, tenho certeza, a Helene apreciava:
Virginia Woolf.
Na obra dessa autora a torre do relógio de Westminster atua como um
símbolo da tradição e do conservadorismo ingleses e da importância que os ilhéus
dão à pontualidade, tudo bem, mas nela o Big Ben é principalmente o que é - um
relógio! - marcando desapaixonadamente a infinita progressão do tempo sem
esperar por ninguém.
As batidas do Big Ben são os principais divisores da narrativa de um
livro famoso da Virgínia, de nome Senhora
Dalloway, no qual elas interrompem impiedosamente os pensamentos e ações
dos personagens. É como se tudo rolasse antes e depois dos ataque do Big Ben:
“Primeiro um aviso, musical; então a hora, irrevogável. Os círculos de
chumbo dissolvidos no ar”.
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fotografia Moacir Pimentel |
O tempo é tão importante nesse romance que o seu título original foi As Horas e o som do relógio marcando as
inteiras e as meias é um lembrete contínuo do passar da vida, de que o tempo é
linear na progressão das horas que se desenrolam no sentido do futuro, mas é circular na presença constante do passado nas vidas de todos os seus
personagens. Quando deles começamos a ler os retornos ao passado, as memórias, tanto belas quanto assombrosas, percebemos que não
conseguem superar seus traumas e perdas, não conseguem esquecer o que viveram
no passado e que, em certo sentido, isso lhes rouba o futuro.
A protagonista do enredo, de nome Clarissa, teme tão profundamente a
passagem do tempo e a inevitabilidade da morte que repete, como um mantra, uma
linha da peça Cimbelino, de Shakespeare:
“Não temas mais o calor do sol / nem as raivas do inverno furioso”.
É importante o papel do Big Ben na trama desse romance labiríntico e
modernista – porque não dizer cubista? - nesse diálogo entre o homem e a vida
urbana no qual até as ruas de Londres funcionam como metáforas. Nas páginas da Senhora Dalloway, o Big Ben é muito mais
do que o símbolo da Inglaterra: é um registro físico e auditivo da passagem do
tempo e a consciência palpável da morte. Ele está presente no livro como um dos
personagens e com uma personalidade definida:
“O som do Big Ben atinge a meia hora com um vigor extraordinário, como
se fosse um jovem, forte, indiferente, sem consideração”.
Tanto o livro/filme Nunca te Vi, Sempre te Amei quanto o livro Senhora Dalloway
têm algo em comum: fazem uma evocação afetuosa da cidade de Londres. E para
quem gosta de livros e da capital inglesa - “esse
cara sou eu!” - são itens obrigatórios na prateleira.
Helene Hanff cultivou a vida inteira uma imensa vontade de conhecer o
país natal dos seus livros prediletos. A pergunta que o filme responde
superficialmente é: por quê? Por que Helene era uma fã entusiasmada desse tipo
de leitura? Sucede que ela lera aos dezessete anos, durante o seu primeiro e
último ano na universidade, os escritos de um brilhante romancista britânico e professor
de Cambrige, chamado Sir Arthur Quiller-Couch, a quem ela apelidou
carinhosamente de “Q”.
“Ali de pé, olhando para as longas prateleiras abarrotadas de livros
dele, eu relaxei e de repente estava em paz”.
Foi a coleção de cinco volumes das palestras e aulas de Sir Arthur,
entitulada On the Art of Writing – Sobre A Arte de Escrever – que Helene encontrou
empoeirada em uma prateleira obscura de uma modesta biblioteca da sua Filadélfia
natal, aquilo que inspirou-a a iniciar, ao mesmo tempo, a sua carreira de
roteirista para teatro e televisão e a sua cruzada em busca da literatura inglesa.
Quando Helene bateu os olhos na coleção de “Q” pensou:
“É exatamente o que eu preciso”
Mas não foi bem assim. Explico: logo no prefácio do primeiro volume da tal
coleção, ficou claro para a moça que “Q” estava palestrando em uma língua que
não era a dela mas respirou fundo e foi em frente até a página 3, quando percebeu que “Q” “achava”
que ela tinha lido o poema Paraíso Perdido de John Milton. Como não fazia ideia
do que isso fosse e, consequentemente, do que “Q” estava falando, a moça parou
a leitura, voltou à biblioteca e “levou o Milton para casa” (rsrs)
Só que de saída, logo no Livro I do Paraíso miltoniano, ela sacou que
Milton “achava” que ela lera uma
versão cristã de Isaías e que sabia tudo sobre as artimanhas de Lúcifer no céu.
Como ela fora criada no judaísmo e não tinha noção de nada disso, Helene de
novo colocou John Milton de lado, retornou à biblioteca e confiscou a Bíblia certa
a qual leu de cabo a rabo. Terminada aquela bíblica, ela reiniciou a leitura
poética do Paraíso Perdido e só depois de ter lido o seu último verso retomou a
conversa com o prezado “Q”, na tal da página 3.
Para descobrir, na página 4 ou 5, que precisava de tradução para um
monte de frases em latim e citações em grego e que “Q”, mais uma vez erroneamente,
imaginava que ela conhecia todas as peças de Shakespeare, era íntima de Johnson
e versada no Segundo Livro de Esdras, que não morava nem nos Antigos nem nos
Novos Testamentos ora mais seus conhecidos, mas entre os textos Apócrifos, um
conjunto de evangelhos que ninguém tinha se lembrado de dizer à coitada sequer que
existiam (rsrs)
Segundo a moça, foram necessários onze anos para concluir a leitura da
obra completa de Quiller-Couch, mas tudo bem porque “Q” sabia que ela “nunca
fora uma aluna muito inteligente”. Só que a essa
altura do filme ela já estava viciada (rsrs) Após essa convivência literária
com o professor de Cambridge e seus amigos do peito - Izaak Walton, William
Shakespeare e John Milton - Helene tornou-se uma ávida e crítica leitora de
toda a literatura inglesa na qual conseguia por as mãos e os olhos. Desse
mentor pessoal, porém, ela assimilou um gosto bastante peculiar e a influência
de “Q” foi tamanha que ela a transformou em um outro livro autobiográfico de
nome Q’s Legacy - O Legado de Q .
Talvez essa educação autodidata tenha sido a forma que Helene encontrou
para compensar a sua falta de formação acadêmica, pois teve que abandonar a
universidade por causa da difícil situação financeira de sua família durante a
Depressão. Ou – quem sabe? – ao ler os mestres ingleses tão desesperadamente a
moça estivesse apenas se preparando para ser o que sempre almejou ser : uma
escritora. É a tal história: “quem bem
lê, bem escreve”.
É como se esse seu amor desmedido pela literatura a tivesse infectado
com um tipo de puritanismo literário. Livros de baixa qualidade, na opinião
dela, ou poesia “selecionada” em vez
da obra completa, seguiam direto para a lixeira nas suas “faxinas de primavera” que os amigos não compreendiam (rsrs)
“Por que não? Pessoalmente, não consigo
pensar em nada menos sacrossanto do que um livro ruim ou mesmo um livro
medíocre. “
Mas pelos bons livros o seu afeto era tão forte que se estendia além da
simples leitura. Ela não podia tolerar qualquer dano físico aos volumes e,
menos ainda, o mau uso do idioma inglês. Era tal o seu fascínio pela literatura
inglesa e tão caudalosa a sua leitura que, dentro em breve, tornou-se
impossível para a moça encontrar livros para ler em Nova York. Porque desejava
livros raros e deles edições específicas: os Ensaios de autores como Chesterfield, William Hazlitt e Leigh Hunt,
As Lendas da Cantuária de Chaucer, A Jornada para a América de Tocqueville, Os Sermões
Completos de John Donne, Shakespeare
segundo a visão de Samuel Johnson, As Cartas de Amor de Bernard Shaw e Ellen Terry, A Antologia do Amante do Livro
de R. M. Leonard – seu livro de cabeceira! – e a
coleção de ensaios de nome O
Leitor Comum de Virginia Woolf.
Mas Helene Hanff era realmente uma amante dos livros do tipo “ eu estava lá”, e nunca lia ficção, detestava
livros que não fossem historicamente precisos e jurava de pés juntos que não
conseguia se interessar “por coisas que
não aconteceram a pessoas que nunca viveram”.
Já eu me interesso bastante e é justamente nessa divergência que mora a
grande dificuldade de escrever uma resenha sobre essa senhora e a “Inglaterra literária” dela. As minhas viagens
livrescas não seguiram exatamente os passos dela, talvez porque, além das dela
também li as cartas do poeta John Keats:
“Eu de nada tenho certeza, a não ser da realidade
das afeições do coração e da verdade da Imaginação. A beleza apreendida pela
Imaginação deve ser verdade”.
Infelizmente Helene se recusava a ler Shelley e Keats, porque os
considerava poetas excessivamente sentimentais, enquanto que eu milito no time
dos que acreditam que se Keats não tivesse se despedido com meros vinte cinco
anos de idade, teria sido um poeta maior que Shakespeare. O fato é que, com
essa mesma idade, o Bardo não possuía ainda a solenidade e a grandeza de Keats
ao contemplar o mistério do universo.
Esse jovem poeta não foi, portanto, só mais uma promessa literária não
concretizada. Keats foi um
grande poeta e, tivesse vivido mais, teria sido apenas melhor do que já era. Existem muitos tributos a John Keats na velha Inglaterra. De todos o
que mais me agrada é a estátua de bronze do rapaz, no hospital onde chegou a
estudar para ser boticário, antes de chutar o pau da barraca e começar a poetar
a sério:
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fotografia Moacir Pimentel |
Li Keats pela primeira vez aos dezoito anos
quando, a conselho de um então professor de Literatura, comecei a devorar sua
obra pelos pequenos poemas e não pelas famosas Odes, mais longas e maduras. Com
um deles, de nome A Song About Myself ou Uma Canção
Sobre Mim Mesmo, que versava sobre
um moleque que queria ganhar a estrada com uma mochila nas costas e conhecer o
mundo, desnecessário seria dizer que a minha identificação foi total (rsrs)
Diferentemente de Helene, penso que os versos de Keats, em vez de serem melosos
e sentimentais, simplesmente foram escritos por um garoto pobre, romântico,
doente, tuberculoso, enfurnado em seu quarto, em uma velha casa de North
Hampstead, um vilarejo do século XVIII, que foi o seu lar, de 1818 até 1820, os
seus mais produtivos anos.
Foi ali que ele se apaixonou perdidamente pela garota da casa ao lado,
Fanny Brawne, com quem não pode se casar, porém, pois os pais da moça, nada
satisfeitos com a precária situação financeira do rapaz, preferiram adiar o
casamento até que as coisas melhorassem. Foi ali que ele escreveu para a mulher
amada um dos mais pungentes poemas de amor já escritos por mão humana, muito
bem traduzido pelo Sr. Editor:
Para Fanny
Imploro tua – misericórdia – piedade –
teu amor! Sim,
[ amor!
Amor misericordioso que não atormenta
Amor de um só anseio, nunca desviado,
sem maldade,
Sem máscara – e ao ser visto,
imaculado!
Oh! Deixa-me ter-te inteira, sê minha –
toda – toda!
Aquela forma, aquela beleza, aquela
doce avidez
Do amor, seu beijo – essas mãos – esses
olhos divinos,
Aquele seio cálido, branco, luminoso,
de infinitos
[ prazeres,-
Tu mesma, - tua alma - por piedade
dá-me tudo, tudo,
Não poupa nem a menor parte de um átomo
ou eu
[ morro,
Ou, se ainda continuar vivendo, triste
escravo teu,
Esquecerei, em minha miséria infinda,
Para que é feita a vida – o paladar da
minha mente
Perdendo sua paixão, e cegando minha ambição!
Foi lá que ele escreveu a Ode ao Rouxinol - e provavelmente as outras
cinco! - sob uma ameixeira no jardim. De lá viajou para Itália na tentativa inútil
de driblar a Velha Senhora em climas mais quentes. A tuberculose o ceifou em
Roma, em 1821, onde ele dorme seu sono eterno no cemitério dos não católicos –
Cimitero Acattolico - ao lado do poeta Percy Bysshe Shelley,
do poeta e escultor William Wetmore Story e de sua esposa Emelyn, cujo
túmulo é um dos mais fotografados do mundo por causa do Anjo da Dor que o
decora e que foi esculpido pelo devotado marido.
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O Anjo da Dor - escultura de William Wetmore Story (imagem Wikipedia) |
Em confronto com a beleza da escultura, o túmulo de John Keats quase
passa desapercebido, decorado que é apenas por uma singela lápide que diz:
“Aqui jaz Aquele Cujo Nome foi inscrito na Água”.
Se, no geral, a qualidade e a musicalidade da tradução poética deixa a
desejar – “Traduttore, traditore?” -
no caso dos poemas de Keats nem isso: a escassez de traduções é inacreditável. Mas
a de Augusto de Campos nos permite vislumbrar o espírito, a juventude e o humor
do poeta nos versos do Gato da Senhora
Reynolds, no qual tão bem descreve a natureza dos felinos :
Gato! que já passaste o teu grande
climatério,
Quantos ratos e camundongos já comeste?
Que petiscos roubaste? Ergue-me o
olhar, reveste
De verde lânguido os teus olhos de
mistério.
Alça as orelhas de veludo, mas não
queiras
Fincar em mim as tuas úngulas latentes,
Faz teu meigo miado e conta as
sorrateiras
Caças de ratos, peixes, pintos nos teus
dentes.
Não baixes os teus olhos, nem lambas agora
As patas, apesar da asma e dos apuros
Da cauda cetinosa que te falta; e
embora
As servas te enxotassem com castigos
duros,
Teu pelo ainda é suave e lembra como
outrora
Te esquivavas dos cacos de vidro pelos muros.
Bem, todos nós conhecemos alguns gatos dessa raça (rsrs) Acho que gatos
e livros combinam, talvez porque os gatos também se aquietam nas poltronas
indiferentes ao resto do mundo, como fazemos nós quando temos um bom livro nas
mãos.
O fato é que o livro real, do tipo que pode ser folheado, colocado na
mochila, assinado por um autor, oferecido a um amigo, dedicado a ela, colocado
em uma estante, escondido na mesa do escritório, ou empilhado sobre o criado
mudo para servir de esconderijo para o gato do pedaço, transforma as coisas em
versões mais bonitas de si mesmas, com uma graça silenciosa. Como Helene Hannf
e Frank Doel, não imagino a vida sem livros.
Mas o passeio literário continuará na próxima conversa.