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28/06/2019

Laboratório do Pensamento Positivo



Antonio Rocha
Mais ou menos em 1979, uma tia e madrinha, falecida, que eu gostava muito e continuo gostando sempre agradecidamente, me presenteou com o livro “O Poder do Subconsciente”, do escritor irlandês Joseph Murphy (1898-1996), PhD em Teologia e Filosofia pela Andhra University, Estado de Andhra Pradesh, Índia. Radicado nos EUA, escreveu mais de vinte livros, tinha programas em emissoras de rádio e vendia milhões de livros em diversas línguas. Só na língua portuguesa, o citado livro vendeu mais de um milhão de exemplares.
Nessa época eu era universitário, comecei a ler meio desconfiado, pensando tratar-se de uma bobagem. Na verdade, preconceito bobo de muitos acadêmicos. Quanto mais eu lia, mais gostava e fazia a checagem com os ensinamentos do Budismo.
O autor faz uma interessante leitura da Bíblia a partir do Pensamento Positivo. Uma interpretação construtiva.
Li, estudei e pesquisei todos os livros dele e decidi colocar em prática. Nessa mesma época comecei a me inteirar dos ensinamentos da corrente japonesa Seicho-No-Ie que aproxima Budismo/Xintoísmo/Cristianismo. O fundador, professor Masaharu Taniguchi (1893-1985) entre os seus muitos livros tem uma leitura do “Evangelho de João” que é muito parecida com as propostas do também professor Murphy.
Eu e Heloisa chegamos a fazer um retiro de carnaval, lá em Ibiúna, SP, onde tem a Academia de Treinamento Espiritual da América do Sul da Seicho-no-Ie. Acordávamos um pouco antes das cinco horas da manhã, acho que às 04:45 para às cinco em ponto estarmos todos no grande salão. Detalhe, alojamentos separados, homens de um lado, mulheres de outro.
Quase mil pessoas, isso mesmo, de vários estados do Brasil e de alguns países da América do Sul.
Então me identifiquei muito com o Pensamento Positivo e vivo assim até hoje. Quando escrevi aqui, algumas vezes, no blog Conversas do Mano, que sou felicíssimo aprendi com estas leituras e práticas.
Eu e Heloisa também fizemos uma Jornada do Poder da Mente, aqui no Rio, com o Padre Lauro Trevisan, do RS, autor com mais de vinte livros, e seguindo a mesma área do Pensamento Construtivo.
Ora, Sidartha Gautama, o Buda, recomendou em seus preceitos o Caminho Óctuplo: Pensamento Correto, Palavra Correta, Ação Correta, Meio de Vida Correto, Esforço Correto, Meditação Correta, Concentração Correta e Compreensão Correta. Então vi que Pensamento Correto e Pensamento Positivo são sinônimos; continuei e continuo até hoje assim praticando e vivenciando.
Em 1980 nasceu nossa filha e resolvemos educá-la via Pensamento Positivo. Por exemplo, uma vez ela estava com dificuldades em matemática, Lembrei da Seicho-No-Ie e conversei com ela, que dizia não gostar da professora de matemática e daí para não gostar da matéria foi um pulo.
- Vamos descobrir – eu disse – algum ponto positivo nessa professora.
- Ela não tem, é chata.
- Vamos ver – respondi – deve ser uma boa mãe, deve pagar as contas em dia, de repente pode estar passando por um momento difícil e torna as aulas chatas. Ou então, quem sabe, ela é bonita, tem roupas atraentes, um carro confortável, mora em uma bela casa, ou belo prédio etc.
Minha filha não me falou qual o ponto positivo, nem eu perguntei, mas foi bem aprovada em matemática e nunca mais teve problemas com nenhuma outra disciplina. Ensinei também a procurar gostar de matemática e todas as matérias. Ser agradecida aos professores por eles  estarem transmitindo conhecimentos etc.
Funcionou, deu certo!
Passamos então os três: eu, Heloisa e a filha a praticarmos o Pensamento Positivo/Correto em tudo, absolutamente tudo e somos hoje muito felizes.
O Pensamento Positivo/Construtivo/Correto nem sempre acontece rápido, quando mentalizamos. Às vezes demora. Por exemplo, já houve casos em que eu pedi à Vida/Natureza/Mente determinadas coisas que demoraram dez anos para chegar, mas não esmoreci, continuei visualizando os pedidos e deu certo, funcionou. E quando aconteceu fiquei gratíssimo!
Ou seja, fazemos/fizemos da existência um Laboratório do Pensamento Positivo, e os resultados tem sido muito aproveitáveis. É uma coisa prática, objetiva, pragmática.
Claro que existem técnicas, que nós aprendemos e praticamos a partir dos livros referidos; também existem outros autores e obras importantes no setor que os livreiros chamam de Auto Ajuda.
E saber que tudo começou com o Buda, quando no século VI antes de Cristo declarou: “tudo é mente”.


24/06/2019

A filosofia nossa de cada dia

Rafael Sanzio - A Academia de Atenas (detalhe) - 1509


Francisco Bendl
Um dado que sempre deve ser levado em consideração sobre as publicações de muitos filósofos, que ultrapassaram os tempos e ainda são motivos de estudos até os dias de hoje, é que atestam ser obras exclusivamente advindas das mentes desses notáveis pensadores!
Alguém lhes ensinou as teorias e conclusões que publicaram?
Aprenderam a filosofar?
Havia algum manual de instruções, de modo que seguissem o roteiro para seus estudos?
Não, nada havia que servisse de auxílio para os livros editados, fruto da mente de pessoas que apenas... pensaram, refletiram, elaboraram, trouxeram luz à humanidade.
Similar ao talento dos mestres da pintura, que Pimentel nos apresenta eventualmente com o seu costumeiro brilhantismo, que não aprenderam pintar os seus quadros espetaculares, maravilhosos, pois suas mentes e habilidades construíram essas obras que serão eternamente elogiadas, incluindo as escolas que criaram mediante seus estilos através de seus talentos, habilidades, criatividades, o filósofo é o sujeito que tenta compreender o que faz no mundo e quem ele é efetivamente neste contexto.
Vive-se por quê?
A vida tem sentido?
Ela nos representa ou nós que a representamos?
Queiramos ou não, a filosofia faz parte da nossa vida diária.
Desde que acordamos até deitar, usamos a filosofia sem saber, sem querer, mas esta disciplina está presente em nossas existências permanentemente.
E, a cada vez que paramos para pensar, refletir sobre nossas vidas, o que não sabemos, que desconhecemos, que nunca ouvimos falar, exercitamos a mente, o raciocínio, as conclusões, as interpretações, logo, filosofamos!
Certa feita, li um trabalho de filosofia cujo título me chamou à atenção:
“A Filosofia como tradição da não tradição”.
Pensei com meu botões por muito tempo, de modo a entender o significado da frase.
Tradição da não tradição... meio contraditório, paradoxal – concluí que era assim mesmo a filosofia, complicada e para poucos.
No entanto, dia seguinte, compreendi facilmente o recado que o título daquela obra queria dizer:
Cada pessoa tem um estilo ou forma ou jeito de conduzir ou levar a sua vida.
Algo próprio, inato, individual; mesmo a vida em família tem indivíduos muito diferentes na sua composição.
Pois bem, podemos traduzir que cada um de nós tem uma espécie de “filosofia” de vida, um ritmo, maneiras peculiares de enfrentar as dificuldades e saborear as facilidades.
E, a cada alvorecer, a cada sol nascendo, aquele dia será diferente do anterior, a ponto que nos vemos obrigados, ocasionalmente, a reagir muito diferente do que faríamos em condições normais.
Tais reações intempestivas, agressivas, que fogem à nossa personalidade, à nossa índole, ao nosso “gênio”, obrigam-nos a tomar medidas que jamais imaginamos que seriam possíveis, pois sequer pensamos nos resultados  porque  imediatas, instantâneas, ocasionais.
Logo, a “filosofia” que escolhemos para viver, consciente ou inconscientemente foi alterada, e não importam as circunstâncias, pois o dia que habitualmente vivemos sempre terá um novo significado e aprendizado.
Ora, eis a filosofia como tradição da não tradição, a grosso modo, claro.
Se a cada dia eu me renovo, da mesma forma a tradição filosófica torna-se tradição em não ser jamais a mesma no dia seguinte, lógico.
A vida é renovação constante. Não nos é permitido estabelecer uma existência sem qualquer mudança, alteração, rumo modificado; até mesmo a forma como entendemos nos apresentar e ser para as demais pessoas, também sofrerá modificações porque precisamos considerar que anexamos às nossas vidas mais experiências com a idade que avança no tempo - boas ou más -, porém servirão para nosso amadurecimento, crescimento pessoal, profissional, familiar ou não, lá pelas tantas!
Portanto, a filosofia não será a mesma no dia seguinte, haja vista que sofrerá influências positivas e negativas, que nos obrigarão a repensar se o que fazemos está correto ou se precisamos de reciclagem, de aperfeiçoamento...
A vida sempre nos exigirá inventar, criar, construir uma pequena gambiarra existencial, formular conceitos!
Sabemos que conceito quer dizer aquilo que se concebe no pensamento sobre algo ou alguém.
A partir de então, dos conceitos que formulamos sobre a nossa existência, certamente um deles seria “viver a vida”, pois se a filosofia estará sempre questionando o que se sabe, definitivamente não temos a menor ideia de como será o dia de amanhã.
Para Deleuze, a filosofia é a arte de formar, inventar, fabricar conceitos.
O filósofo inventa e pensa o conceito;
Pitágoras criou um conceito: o de amigo da sabedoria;
Descartes criou um conceito: o do cogito (pensar);
Leibniz o de mônada (átomo inextenso com atividade espiritual, componente básico de toda e qualquer realidade física ou anímica, e que apresenta as características de imaterialidade, indivisibilidade e eternidade);
Bergson o de duração.
Que conceito poderíamos criar para nossas vidas, nossas existências?
Teimosia?
Luta?
Esperança, enquanto temos forças?
Enganar a nós mesmos?
Lealdade?
Amizade?
Confiança?
Ou a própria existência humana é o conceito de cada pessoa, ou seja, manter-se vivo?!
Vida que se caracteriza através de dores, sofrimentos, alegrias, realizações, frustrações, decepções, fugazes momentos de felicidades, companhia, afeto, amor, desamor, ódio, tolerância, intolerância, consideração, solidariedade, desprezo, caridade, respeito... que necessitamos entender e nos manter equilibrados, conscientes.
Se observarmos mais detidamente, o ser humano é o conceito do legado de cada filósofo que mencionei acima.
Evidente que sem querer saber mais do que eles, mas cada definição citada sem o homem e seus temores, dúvidas, inseguranças, os pensadores se não se baseassem neles mesmos não conseguiriam enunciá-las, de chegarem às conclusão obtidas, levando-se em conta o momento, a época que existiram em confronto com a atual, onde temos muito mais conhecimentos de nós mesmos e do que nos rodeia.
Não havia parâmetros, referências, paradigmas, para que pudessem se fundamentar e apresentar seus estudos com a profundidade que escreveram ou falaram, mas pensaram, refletiram, criaram as suas circunstâncias, conforme Ortega y Gasset (O homem é o homem e a sua circunstância).
Estudar apenas sobre o que os filósofos pensaram sobre a humanidade, seus conceitos ontológicos, epistemológicos, renunciamos a uma das mais importantes funções da Filosofia, que é refletir sobre o nosso tempo atual e não de ontem, e tentar resolver os dilemas de nosso dia a dia, menos o passado!
Viviane Mosé, filósofa e poeta, deixa-nos uma reflexão:
“O sofrimento é causado pela falta de ética, pela falta de respeito à vida, ao corpo, à natureza, às pessoas”.
Por outro lado, também cita:
“Tratamos mal os que se lançam, se arriscam. Somos uma sociedade de impotentes, deprimidos”.
Quando debatemos o que é certo, errado, ética, moral, comportamento... estamos nada mais, nada menos, que pensando filosoficamente.
Logo, a filosofia contribui sobremaneira para o indivíduo ter uma visão de mundo mais ampla, melhor, mais abrangente, sendo essencial à cidadania, ao indivíduo.
Em seu livro, 101 Experiências da Filosofia Cotidiana (Editora Sextante), Roger-Pol Droit descreve pequenas tarefas que podem deflagrar questionamentos filosóficos:
Experimentar roupas:
pode levar o indivíduo a pensar  em outras realidades e nos dilemas de outras vidas e outras culturas;
Tornar-se santo ou carrasco:
a pessoa se esforça para observar em si e nos outros todas as características boas e más e ficar, assim, menos propenso a julgamentos morais;
Encontrar lembranças perdidas:
constatar que se possui na memória mais lembranças do que se supõe. Faz pensar sobre o potencial de cada memória humana;
Tornar-se música:
deixar-se levar pela música e sentir-se parte dela pode levar a pensar sobre as conexões por trás de toda a realidade que nos cerca;
Ver uma mulher na janela:
sonhar e criar realidades possíveis. Ao olhar para a mulher na janela, o indivíduo imagina uma outra vida para si e uma história com o personagem que dura por toda uma vida e termina ao final da rua;
Colocar-se no planeta dos pequenos gestos:
a rede dos pequenos gestos forma um mundo à parte, e a proposta é fazer pensar a respeito de todos os pequenos mundos que formam o nosso mundo. O mundo de uma mosca não tem nada a ver com o seu;
Sorrir para qualquer um:
buscar a cumplicidade momentânea de um sorriso desconhecido que compartilha dilemas e inquietações em comum ou que simplesmente enfrenta a vida na mesma cidade.
E por aí vai...
Aliás, tenho para mim que estudar filosofia ou saber o que vem a ser esta ciência - de amor pela sabedoria, experimentado apenas pelo ser humano consciente da sua ignorância -, tanto para encontrarmos a nossa essência, o nosso âmago, quanto para as indefectíveis comparações com comportamentos alheios, torna-se fundamental para entendermos o contexto social em que nos inserimos a partir do grupo que nos identificamos, movimentos políticos, sociais, religiosos...
Ao indagarmos os porquês dessas aproximações com pessoas, porém NÃO deixando de lado as razões pelas quais também seria útil o isolamento como reflexão ao modo como vivemos e entendemos a vida, e a nossa existência em relação ao mundo, indiscutivelmente estaremos avançando neste processo filosófico, de se saber mais sobre o próprio eu.
Não devemos porém, esquecer de atribuir ao dia a sua devida importância como oportunidade de crescimento pessoal, mental, intelectual, e de se saber mais sobre a nossa  compreensão e conhecimento, isto é, nada melhor que o dia seguinte para nos animar e catapultar para novos enfrentamentos, e de aumentar nossas resistências às invasões de influências negativas ou decisões que nos ocasionarão arrependimento.
Para Bergson, o nosso contato com o mundo exterior se efetua em dois planos distintos:
De um lado,  o comportamento do “eu de superfície” e, do outro, do “eu profundo”, revelando dois tipos de existência em face do modo de conhecer.
Heidegger fala-nos de uma existência inautêntica e de uma existência autêntica.
O homem  comum se deixa levar por uma séria de questões superficiais, por uma curiosidade inconsequente, que se perde no conhecimento das simples notícias, sem maiores exigências. Pois esta curiosidade vã coloca o homem diante de uma existência inautêntica, em consequência de conhecimentos adquiridos  sem profundidade.
Somente quando o homem substitui esta curiosidade inconsequente pela angústia, que é a expressão de uma percepção dramática da existência humana, em que o homem se vê permanentemente em uma encruzilhada, em que cabe decidir a sua vida, é que o homem vive a sua existência autêntica.
Quando pensamos a vida, efetivamente, não se trata apenas de recordar o passado ou imaginar o futuro, como escrevi acima.
Trata-se de julgar a nossa participação na existência, e decidir a nossa vida em função de uma consciência e de uma responsabilidade assumida, que efetiva a possibilidade de existirmos como seres livres, segundo o que dispõe a nossa natureza, de direito, e nem sempre de fato.
Pensar a vida não é pensá-la em termos de caminho que percorremos, uma espécie de trilha a seguir, não, pois viver não é passar, mas é ser.
Justamente por isso, importa é saber como participamos da vida, como sentimos a vida, o que construímos de nosso próprio ser no nosso próprio modo de ser!
O ser humano é criatura e é criador; não o criador de si mesmo nas suas origens, mas é criador de si mesmo no seu modo de ser, na sua maneira de assumir as forças de sua própria existência, na forma pela qual participa e se integra na existência.
Caminhar na vida não é percorrer um caminho anteriormente traçado, repito. Trata-se de construir o seu próprio ser à procura de um sentido na sua vida.
Como diz um “filósofo” de conversas nos bares, um tal de Chico Bendl:
Há mais verdades entre o que desejamos ser e efetivamente somos, do que podem discernir as filosofias já conhecidas!
Com a devida permissão do notável Shakespeare, obviamente.


17/06/2019

O sino maior

fotografia Moacir Pimentel


Moacir Pimentel 
É claro que não li todos os grandes livros mencionados por Helene Hannf no filme Nunca te Vi, Sempre te Amei, mas li outros poemas e prosas que ela não teria lido (rsrs) Decerto que os livros que li da lavra dela – 84, Charing Cross Road, A Duquesa de Bloomsbury e O Legado de Q - me provocaram lembranças de variadas esquinas britânicas que a moça não visitou. Logo, ao lhe descrever as paisagens das Inglaterra física e literária dessa senhora, é inevitável que eu termine teclando sobre as minhas (rsrs)
Mas, acredite, valeu a pena viajar pelas pretinhas da Helene que “só podia escrever sobre o que lhe acontecia” e passar a limpo todas as recordações e emoções que o seu filme nos traz. Como os bons amigos, como os grandes livros, 84 Charing Cross Road não é para ser esquecido.
Portanto, ao contrário do que a foto que abre o post sugere, esse não será apenas mais um passeio turístico. Hoje eu vou teclar sobre a cidade, sim, mas ainda em um contexto literário, sob luz das cartas trocadas por duas criaturas que nunca se encontraram mas que, de algum modo, rascunharam as vidas um do outro : os nossos velhos conhecidos Helene Hanff e Frank Doel.
Perambulando pelas coisas que Helene escreveu depois do seu primeiro livrinho, a gente entende que, de certa maneira, apesar dela ter desembarcado em Londres dois anos depois da despedida do seu melhor amigo e personagem, a moça não chegou tarde demais, pois o livreiro Frank - como um fantasma elegante - continuou a aparecer em tudo o que ela criou depois, em coisas que, não se pode deixar de pensar, ela teria teclado para ele, às vezes furiosamente e em maiúsculas, naquela velha máquina de escrever, em missivas que jamais foram postadas mas que ele teria “traduzido” perfeitamente.
O filme dedicado a esses dois quase namorados é uma conversa que, como dizia um famoso londrino de nome Jack - aqueeeele Estripador - temos que entabular sem pressa e “por partes” (rsrs) Porque ao assisti-lo se percebe que os livros e a vida, o filme e os poemas, Londres e as cartas foram tão furtivamente amarrados juntos que cada corda teclada reverbera outra.
Foi durante sua turnê literária pela Inglaterra que Helene descobriu que as praias de Brighton consistem em seixos em vez de areia, que Ben Jonson fora enterrado em pé porque nunca pagara pelo túmulo e que na realidade e tanto tempo faz, o Big Ben não era a Torre nem o Relógio mas simplesmente o maior dos seus cinco sinos (rsrs)
Só que hoje se você perguntar a qualquer um nesse mundão de meu Deus, qual é a imagem que mais associa a Londres, a resposta será “Big Ben!”. Embora eu creio que ele disputa com a cabine telefônica e o ônibus vermelhos o título do mais icônico cartão postal dessas paragens.
 
fotografia Moacir Pimentel

A Torre do Relógio é chamada por todo o mundo afora de “Big Ben” mesmo que, oficialmente, seu nome de batismo seja Torre Elizabeth e que a sua imagem e não a das Casas do Parlamento ao lado dela - a principal residência dos monarcas britânicos do período medieval até o reinado de Henrique VIII - tenha se tornado o símbolo do governo britânico.
Assim decidi abrir esse post “livresco” com o Big Ben que, sem deixar de ser um ícone turístico também possui um significado literário que nos remete a uma das poucas autoras de ficção que, tenho certeza, a Helene apreciava: Virginia Woolf.
Na obra dessa autora a torre do relógio de Westminster atua como um símbolo da tradição e do conservadorismo ingleses e da importância que os ilhéus dão à pontualidade, tudo bem, mas nela o Big Ben é principalmente o que é - um relógio! - marcando desapaixonadamente a infinita progressão do tempo sem esperar por ninguém.
As batidas do Big Ben são os principais divisores da narrativa de um livro famoso da Virgínia, de nome Senhora Dalloway, no qual elas interrompem impiedosamente os pensamentos e ações dos personagens. É como se tudo rolasse antes e depois dos ataque do Big Ben:
“Primeiro um aviso, musical; então a hora, irrevogável. Os círculos de chumbo dissolvidos no ar”.
 
fotografia Moacir Pimentel
O tempo é tão importante nesse romance que o seu título original foi As Horas e o som do relógio marcando as inteiras e as meias é um lembrete contínuo do passar da vida, de que o tempo é linear na progressão das horas que se desenrolam no sentido do futuro, mas é circular na presença constante do passado nas vidas de todos os seus personagens. Quando deles começamos a ler os retornos ao passado, as memórias, tanto belas quanto assombrosas, percebemos que não conseguem superar seus traumas e perdas, não conseguem esquecer o que viveram no passado e que, em certo sentido, isso lhes rouba o futuro.
A protagonista do enredo, de nome Clarissa, teme tão profundamente a passagem do tempo e a inevitabilidade da morte que repete, como um mantra, uma linha da peça Cimbelino, de Shakespeare:
“Não temas mais o calor do sol / nem as raivas do inverno furioso”.
É importante o papel do Big Ben na trama desse romance labiríntico e modernista – porque não dizer cubista? - nesse diálogo entre o homem e a vida urbana no qual até as ruas de Londres funcionam como metáforas. Nas páginas da Senhora Dalloway, o Big Ben é muito mais do que o símbolo da Inglaterra: é um registro físico e auditivo da passagem do tempo e a consciência palpável da morte. Ele está presente no livro como um dos personagens e com uma personalidade definida:
“O som do Big Ben atinge a meia hora com um vigor extraordinário, como se fosse um jovem, forte, indiferente, sem consideração”.
Tanto o livro/filme Nunca te Vi, Sempre te Amei quanto o livro Senhora Dalloway têm algo em comum: fazem uma evocação afetuosa da cidade de Londres. E para quem gosta de livros e da capital inglesa - “esse cara sou eu!” - são itens obrigatórios na prateleira.
Helene Hanff cultivou a vida inteira uma imensa vontade de conhecer o país natal dos seus livros prediletos. A pergunta que o filme responde superficialmente é: por quê? Por que Helene era uma fã entusiasmada desse tipo de leitura? Sucede que ela lera aos dezessete anos, durante o seu primeiro e último ano na universidade, os escritos de um brilhante romancista britânico e professor de Cambrige, chamado Sir Arthur Quiller-Couch, a quem ela apelidou carinhosamente de “Q”.
“Ali de pé, olhando para as longas prateleiras abarrotadas de livros dele, eu relaxei e de repente estava em paz”.
Foi a coleção de cinco volumes das palestras e aulas de Sir Arthur, entitulada On the Art of WritingSobre A Arte de Escrever – que Helene encontrou empoeirada em uma prateleira obscura de uma modesta biblioteca da sua Filadélfia natal, aquilo que inspirou-a a iniciar, ao mesmo tempo, a sua carreira de roteirista para teatro e televisão e a sua cruzada em busca da literatura inglesa. Quando Helene bateu os olhos na coleção de “Q” pensou:
“É exatamente o que eu preciso”
Mas não foi bem assim. Explico: logo no prefácio do primeiro volume da tal coleção, ficou claro para a moça que “Q” estava palestrando em uma língua que não era a dela mas respirou fundo e foi em frente até a página 3, quando percebeu que “Q” “achava” que ela tinha lido o poema Paraíso Perdido de John Milton. Como não fazia ideia do que isso fosse e, consequentemente, do que “Q” estava falando, a moça parou a leitura, voltou à biblioteca e “levou o Milton para casa” (rsrs)
Só que de saída, logo no Livro I do Paraíso miltoniano, ela sacou que Milton “achava” que ela lera uma versão cristã de Isaías e que sabia tudo sobre as artimanhas de Lúcifer no céu. Como ela fora criada no judaísmo e não tinha noção de nada disso, Helene de novo colocou John Milton de lado, retornou à biblioteca e confiscou a Bíblia certa a qual leu de cabo a rabo. Terminada aquela bíblica, ela reiniciou a leitura poética do Paraíso Perdido e só depois de ter lido o seu último verso retomou a conversa com o prezado “Q”, na tal da página 3.
Para descobrir, na página 4 ou 5, que precisava de tradução para um monte de frases em latim e citações em grego e que “Q”, mais uma vez erroneamente, imaginava que ela conhecia todas as peças de Shakespeare, era íntima de Johnson e versada no Segundo Livro de Esdras, que não morava nem nos Antigos nem nos Novos Testamentos ora mais seus conhecidos, mas entre os textos Apócrifos, um conjunto de evangelhos que ninguém tinha se lembrado de dizer à coitada sequer que existiam (rsrs)
Segundo a moça, foram necessários onze anos para concluir a leitura da obra completa de Quiller-Couch, mas tudo bem porque “Q” sabia que ela “nunca fora uma aluna muito inteligente”. Só que a essa altura do filme ela já estava viciada (rsrs) Após essa convivência literária com o professor de Cambridge e seus amigos do peito - Izaak Walton, William Shakespeare e John Milton - Helene tornou-se uma ávida e crítica leitora de toda a literatura inglesa na qual conseguia por as mãos e os olhos. Desse mentor pessoal, porém, ela assimilou um gosto bastante peculiar e a influência de “Q” foi tamanha que ela a transformou em um outro livro autobiográfico de nome Q’s Legacy - O Legado de Q .
Talvez essa educação autodidata tenha sido a forma que Helene encontrou para compensar a sua falta de formação acadêmica, pois teve que abandonar a universidade por causa da difícil situação financeira de sua família durante a Depressão. Ou – quem sabe? – ao ler os mestres ingleses tão desesperadamente a moça estivesse apenas se preparando para ser o que sempre almejou ser : uma escritora. É a tal história: “quem bem lê, bem escreve”.
É como se esse seu amor desmedido pela literatura a tivesse infectado com um tipo de puritanismo literário. Livros de baixa qualidade, na opinião dela, ou poesia “selecionada” em vez da obra completa, seguiam direto para a lixeira nas suas “faxinas de primavera” que os amigos não compreendiam (rsrs)
“Por que não? Pessoalmente, não consigo pensar em nada menos sacrossanto do que um livro ruim ou mesmo um livro medíocre. “
Mas pelos bons livros o seu afeto era tão forte que se estendia além da simples leitura. Ela não podia tolerar qualquer dano físico aos volumes e, menos ainda, o mau uso do idioma inglês. Era tal o seu fascínio pela literatura inglesa e tão caudalosa a sua leitura que, dentro em breve, tornou-se impossível para a moça encontrar livros para ler em Nova York. Porque desejava livros raros e deles edições específicas: os Ensaios de autores como Chesterfield, William Hazlitt e Leigh Hunt, As Lendas da Cantuária de Chaucer, A Jornada para a América de Tocqueville, Os Sermões Completos de John Donne, Shakespeare segundo a visão de Samuel Johnson, As Cartas de Amor de Bernard Shaw e Ellen Terry, A Antologia do Amante do Livro de R. M. Leonard – seu livro de cabeceira! – e a coleção de ensaios de nome O Leitor Comum de Virginia Woolf.
Mas Helene Hanff era realmente uma amante dos livros do tipo “ eu estava lá”, e nunca lia ficção, detestava livros que não fossem historicamente precisos e jurava de pés juntos que não conseguia se interessar “por coisas que não aconteceram a pessoas que nunca viveram”.
Já eu me interesso bastante e é justamente nessa divergência que mora a grande dificuldade de escrever uma resenha sobre essa senhora e a “Inglaterra literária” dela. As minhas viagens livrescas não seguiram exatamente os passos dela, talvez porque, além das dela também li as cartas do poeta John Keats:
“Eu de nada tenho certeza, a não ser da realidade das afeições do coração e da verdade da Imaginação. A beleza apreendida pela Imaginação deve ser verdade”.
Infelizmente Helene se recusava a ler Shelley e Keats, porque os considerava poetas excessivamente sentimentais, enquanto que eu milito no time dos que acreditam que se Keats não tivesse se despedido com meros vinte cinco anos de idade, teria sido um poeta maior que Shakespeare. O fato é que, com essa mesma idade, o Bardo não possuía ainda a solenidade e a grandeza de Keats ao contemplar o mistério do universo.
Esse jovem poeta não foi, portanto, só mais uma promessa literária não concretizada. Keats foi um grande poeta e, tivesse vivido mais, teria sido apenas melhor do que já era. Existem muitos tributos a John Keats na velha Inglaterra. De todos o que mais me agrada é a estátua de bronze do rapaz, no hospital onde chegou a estudar para ser boticário, antes de chutar o pau da barraca e começar a poetar a sério:
 
fotografia Moacir Pimentel

Li Keats pela primeira vez aos dezoito anos quando, a conselho de um então professor de Literatura, comecei a devorar sua obra pelos pequenos poemas e não pelas famosas Odes, mais longas e maduras. Com um deles, de nome A Song About Myself ou Uma Canção Sobre Mim Mesmo, que versava sobre um moleque que queria ganhar a estrada com uma mochila nas costas e conhecer o mundo, desnecessário seria dizer que a minha identificação foi total (rsrs)
Diferentemente de Helene, penso que os versos de Keats, em vez de serem melosos e sentimentais, simplesmente foram escritos por um garoto pobre, romântico, doente, tuberculoso, enfurnado em seu quarto, em uma velha casa de North Hampstead, um vilarejo do século XVIII, que foi o seu lar, de 1818 até 1820, os seus mais produtivos anos.
Foi ali que ele se apaixonou perdidamente pela garota da casa ao lado, Fanny Brawne, com quem não pode se casar, porém, pois os pais da moça, nada satisfeitos com a precária situação financeira do rapaz, preferiram adiar o casamento até que as coisas melhorassem. Foi ali que ele escreveu para a mulher amada um dos mais pungentes poemas de amor já escritos por mão humana, muito bem traduzido pelo Sr. Editor:
Para Fanny

Imploro tua – misericórdia – piedade – teu amor! Sim,
[ amor!
Amor misericordioso que não atormenta
Amor de um só anseio, nunca desviado, sem maldade,
Sem máscara – e ao ser visto, imaculado!
Oh! Deixa-me ter-te inteira, sê minha – toda – toda!
Aquela forma, aquela beleza, aquela doce avidez
Do amor, seu beijo – essas mãos – esses olhos divinos,
Aquele seio cálido, branco, luminoso, de infinitos
[ prazeres,-
Tu mesma, - tua alma - por piedade dá-me tudo, tudo,
Não poupa nem a menor parte de um átomo ou eu
[ morro,
Ou, se ainda continuar vivendo, triste escravo teu,
Esquecerei, em minha miséria infinda,
Para que é feita a vida – o paladar da minha mente
Perdendo sua paixão, e cegando minha ambição!
Foi lá que ele escreveu a Ode ao Rouxinol - e provavelmente as outras cinco! - sob uma ameixeira no jardim. De lá viajou para Itália na tentativa inútil de driblar a Velha Senhora em climas mais quentes. A tuberculose o ceifou em Roma, em 1821, onde ele dorme seu sono eterno no cemitério dos não católicos – Cimitero Acattolico - ao lado do poeta Percy Bysshe Shelley, do poeta e escultor William Wetmore Story e de sua esposa Emelyn, cujo túmulo é um dos mais fotografados do mundo por causa do Anjo da Dor que o decora e que foi esculpido pelo devotado marido.
 
O Anjo da Dor - escultura de William Wetmore Story (imagem Wikipedia)

Em confronto com a beleza da escultura, o túmulo de John Keats quase passa desapercebido, decorado que é apenas por uma singela lápide que diz:
“Aqui jaz Aquele Cujo Nome foi inscrito na Água”.
Se, no geral, a qualidade e a musicalidade da tradução poética deixa a desejar – “Traduttore, traditore?” - no caso dos poemas de Keats nem isso: a escassez de traduções é inacreditável. Mas a de Augusto de Campos nos permite vislumbrar o espírito, a juventude e o humor do poeta nos versos do Gato da Senhora Reynolds, no qual tão bem descreve a natureza dos felinos :
Gato! que já passaste o teu grande climatério,
Quantos ratos e camundongos já comeste?
Que petiscos roubaste? Ergue-me o olhar, reveste
De verde lânguido os teus olhos de mistério.
Alça as orelhas de veludo, mas não queiras
Fincar em mim as tuas úngulas latentes,
Faz teu meigo miado e conta as sorrateiras
Caças de ratos, peixes, pintos nos teus dentes.
Não baixes os teus olhos, nem lambas agora
As patas, apesar da asma e dos apuros
Da cauda cetinosa que te falta; e embora
As servas te enxotassem com castigos duros,
Teu pelo ainda é suave e lembra como outrora
Te esquivavas dos cacos de vidro pelos muros.
Bem, todos nós conhecemos alguns gatos dessa raça (rsrs) Acho que gatos e livros combinam, talvez porque os gatos também se aquietam nas poltronas indiferentes ao resto do mundo, como fazemos nós quando temos um bom livro nas mãos.
O fato é que o livro real, do tipo que pode ser folheado, colocado na mochila, assinado por um autor, oferecido a um amigo, dedicado a ela, colocado em uma estante, escondido na mesa do escritório, ou empilhado sobre o criado mudo para servir de esconderijo para o gato do pedaço, transforma as coisas em versões mais bonitas de si mesmas, com uma graça silenciosa. Como Helene Hannf e Frank Doel, não imagino a vida sem livros.
Mas o passeio literário continuará na próxima conversa.