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27/08/2019

Música, música

imagem Uberchord


Heraldo Palmeira
Música, música
Companheira do quarto dos rapazes
Entre revistas e fumaça
Confidente do quarto das meninas
Entre calcinhas e sandálias
Música, música
Farol na cerração dos grandes medos
A força que levanta os bailarinos
Elétrica guitarra entre os dedos
Aflitos e quentes dos meninos
Eu era apenas um rapaz latino-americano sem dinheiro no bolso e vindo do interior quando esta canção foi lançada, e sua letra logo me chamou a atenção por ser uma delicada forma de falar de música por meio de imagens surpreendentes, reais, com importância para nos colocar dentro delas, com significações próprias mas intensamente relacionadas a outras coisas intrínsecas à vida.
Nenhuma outra arte tem o poder de transformar em retrato ou em filme da memória os momentos importantes, com a nitidez que a música consegue. E basta ouvir os primeiros acordes da música símbolo de qualquer momento para que ele volte quase como se estivesse acontecendo de novo. Ainda mais em se tratando dos amores.
Hoje, eu me peguei pensando quando foi que o primeiro humano teve noção de alguma sonoridade e percebeu que era mais do que apenas um dos muitos sons ao redor, que poderia se somar a outros e virar algo que se tornasse um ornamento tão definitivo e precioso para a vida.
Como terá sido a primeira manifestação musical? Imagino que tenha acontecido muito tempo antes do primeiro registro histórico. Consta que os homens pré-históricos somavam o som dos movimentos corporais aos sons vocais. As pinturas rupestres registradas nas cavernas já sugerem pessoas em atitudes de tocar instrumentos, cantar e dançar.
Os arqueólogos também encontraram fragmentos da época, que indicam a existência de instrumentos musicais primitivos. Permanece a dúvida crucial a respeito de quem surgiu primeiro, se as vocalizações ou os sons rudimentares – muito provavelmente percussivos e obtidos por meio de varetas tocadas contra superfícies ou por contatos das mãos com o corpo.
Esse mistério ainda insolúvel nos conduziu até as divisões que passamos a conhecer mais amplamente com a chegada da modernidade, tendo a música erudita europeia como primeira grande matriz cosmopolita.
Talvez como consequência do poderio econômico, a Europa foi capaz de gerar uma produção espetacular, bancada por mecenas e divulgada pelo mundo a partir de reinos interligados em razão dos laços comerciais e políticos das famílias nobres.
O século 20 alargou todas as fronteiras a partir do caldeirão múltiplo da música norte-americana, que brotou do fervor das igrejas, das dores das plantações de algodão e da fervura dos night clubs com suas orquestras e seus bambas.
A fonte foi generosa e em pouco tempo tudo explodiu na força de rapazes cabeludos e moças descoladas, com vozes transmudadas do conformismo para o inconformismo, vestidos em roupas exóticas e fazendo as bases harmônicas e guitarras do gospel, blues e jazz cuspirem o fogo sagrado do rock, que atravessou o Atlântico e ganhou eco nos domínios de Sua Majestade.
Depois veio a maturidade e esse caldo foi ganhando fusões, dando origem ao pop, adornado por sonoridades cada vez mais belas fornecidas pela tecnologia embarcada em estúdios e palcos do mundo. Passo seguinte, essa tecnologia entrou em quartos solitários e tudo parecia possível a todos.
Talvez tenha passado por aí uma perigosa estrada que parecia sem fim, que fazia crer que qualquer um podia ser músico, cantor e produtor ao mesmo tempo. Isso fez cair e muito a qualidade da produção.
Se falarmos do Brasil, basta olhar a parada de sucessos, onde gente pouco expressiva se arrasta e se engana numa celebridade efêmera e que não deixa memória.

Ainda bem que existe o projeto Playing for change garimpando nas ruas do mundo as pepitas de fogo que vão renovar nossa fé na boa música. E que assim seja, pois, não há qualquer dúvida, a música é a manifestação de arte mais entrelaçada às pessoas.
Música, música
Irmã, imã, irmã
Feroz como a ira do Irã
Ou mansa como o último carinho
Quando já chega a manhã
Música, música

Trechos de:
Música, música (Sueli Costa-Abel Silva)
Trecho incidental:
Apenas um rapaz latino-americano (Belchior)


23/08/2019

Efeitos do Pan-Americano

imagem Freepik


Ana Nunes
Dias de jogos panamericanos.
Assisti muito. Só não assisti tudo porque tinha que comer, dormir e trabalhar.
Fiquei impregnada. E como em mim tudo é misturado, ficaram-me na cabeça vôlei, caratê, judô, natação, saltos ornamentais, lançamentos de dardo e peso, salto de vara e distância e altura, arco e flecha, corrida dos cem e duzentos e muitos metros. Fiquei de passagem só na luta livre, boxe, tênis de mesa e levantamento de peso.

Eis o panorama panamericano que temos que aguentar:

Quando vou para a cozinha sou vôlei e dou cartão vermelho para os peixes e outros colegas de esporte e amarelo para as comidas complicadas. Ponto para o outro time - o das comidinhas fáceis, saladas e até pizza no pão sírio. Sério! Não invado a outra área, nem piso fora da linha. Corto os legumes e jogo as pontas num saque perfeito para o lixinho. Assim como a coroa do abacaxi, a casca da banana, as sementes das frutas. Manejo colheres de pau e dou cortadas certeiras com a faca afiada. Gosto da bancada seca e corro sempre para secá-la com meus panos branquinhos. Não tenho ajudante , tenho que fazer eu mesma. Meus raros treinadores são os livros de receita, palpites do meu google ambulante (que quando é questão de cozinha está sempre por perto) e a criatividade de fim de mês como desafio.
Me defendo com os temperos e ataco com panelas. Também faço meus ataques por cima da rede. Faca de queijo por exemplo. Diz o sr. Editor que foi tentativa de maricídio. Acho mesmo que foi um saque especial, tipo Lucarelli ou Wallace, meu preferido. A faca perdeu o cabo.
Cozinho em sets de vinte e cinco minutos podendo ir até trinta e seis ou mais se preciso.

Quando sou natação dou ouvidos aos coaches, marido e irmã geralmente, que me chamam de bocão e me mandam desacelerar. Dou de peito e pernadas e os coloco no lugar. Sou uma velhinha em formação, não uma promessa de atleta. Promessa é para quem tem tempo e juventude. Que aliás andam juntos. Mas no revezamento de copos e tarefas domésticas, medalhei! PÓDIO!

Quando não desacelero, piso na bola e preciso do VAR. Entro na pequena área dos assuntos proibidos e delicados e faço gol contra. Pronto, falei demais! Todos me olham consternados, meio de campo com saia justa. Tento consertar no escanteio das desculpas esfarrapadas e justificativas imbecis. Também, futebol não é o meu forte.
Parabéns! Dei o meu melhor!

Já ia me esquecendo do basquete. Eu pulo, eu corro contra relógio, estou misturando um pouco com ciclismo, mas avisei antes, comigo é tudo misturado, para dar conta do recado. As tarefas são muitas, cestas plenas de roupa para lavar, faço muitos pontos fáceis. Ainda bem que nessa casa tem Brastemp! Preparação das folhas para o almoço, a aula de cerâmica... bola de três pontos. E as chamadas de zap! Cometo faltas, dedos errados no tecladinho minúsculo do telefone. Vou para o banco e escrevo tudo de novo. Sou a nova cestinha! Não muito nova, concordo. Mas a Hortênsia também não é!
O jogo acaba no Netflix. Melhor que cestas. Ou melhor, a melhor das cestas.

Pensando em escrever... sou judoca. Às vezes consigo uma frase de efeito ou um comentário adequado e faço um Wazari. Posso até desenvolver um tema, um poema em ternura e aí certo, Ippon.
Mas quando dá branco nessas cruéis e ardilosas “pretinhas” sei que estou enrolando e vai ter penalidade, certamente. Apelo para o sr. Editor e peço ajuda com as palavras. Repescagem, segunda chance. Medalha de bronze. Ainda bem, saí-me mais ou menos bem. Não envergonhei os filhos atentos ao menor passo. Me pensam meio doida, eu acho!

Também na escrita me valho das flechas. Muita concentração. Proteção no ego para não extrapolar, alguma coisa boa na minha xícara de asas moles pretas, um jazz ou Nina Simone inclassificável, lapiseira na mão. Tenho pouco tempo. Mas se acerto no meinho... Bingo! Posso até medalhar. Tenho que esperar os comentários. Nesse quesito eles comandam as medalhas! E o espetáculo!

Na arte vou de Taekwondo. Tem que ser por quilo. Categoria sessenta quilos. Na cabeça capacete de idéias. Com pulinhos e pulinhos vou traçando pegadas no projeto das casinhas, favela na diagonal, argila do momento, branca pintadinha, canela, vermelha ou granito. Também faço pontos na tradição do lápis ou nanquim. Primeiro, segundo e terceiro tempos, onde escolho o melhor posicionamento, cadeira confortável. E lá vou eu pro que der e vier. Medalha de bronze por certo, todos ganham mesmo... E se não me derem, faço uma de argila mesmo!

Ah! Luta livre!
Bem, essa é com a vida!
Luta dura, machuca mas encanta!

Sabes qué?
Até o próximo Pan!


19/08/2019

A torre dos corvos

fotografia Moacir Pimentel


 Moacir Pimentel
Helene Hanff amava uma Londres especial, de sonho, literária, difícil de alcançar. Nas suas cartas para o culto livreiro britânico Frank Noel, a moça pedia:
“Fale-me da Inglaterra. Sonhei com Londres por tantos anos! Costumava assistir filmes ingleses somente para olhar para as ruas. Eu quero subir até Berkeley Square e descer a rua Wimpole e depois quero sentar naquele degrau no qual Elizabeth sentou-se quando se recusou a entrar na Torre”
Frequentemente mencionada por Helene, eis a Torre de Londres, branca e quadrada, cuja construção foi iniciada pelo rei normando invasor Guilherme, o Conquistador , em 1066. Ela já foi o lar de reis e rainhas, abrigou casernas para soldados e arsenais de armas e explosivos e, é claro, serviu como prisão e local de execução para muitos homens e mulheres. Muitos desses condenados entraram na Torre através do Portão dos Traidores.
fotografia Moacir Pimentel

Diz Dona Lenda que a Torre de Londres tem uma extensa coleção de moradores permanentes além dos seus guardiões cerimoniais, os Yeomen Warders, aqueles guardas de uniformes anacrônicos, também conhecidos como Beefeaters - ou Comedores de Carne de Boi – que sempre foram responsáveis por cuidar dos prisioneiros e dos corvos, proteger as jóias da coroa britânica e, last but not least, desde os tempos vitorianos, guiar os visitantes sem noção (rsrs)
Não se sabe ao certo porque eles são chamados de “comedores de carne de boi”. Talvez provar a comida do rei fosse uma das suas tarefas ou - quem sabe? - tenham sido alimentados com carne de boi para que se mantivessem fortes. O certo é que eles formaram a primeira guarda real do vasto mundo: cem homens especialmente treinados para defender o Rei com as próprias vidas. E atenção: não é fácil ocupar tal cargo!
fotografia Moacir Pimentel

Ele é reservado para militares aposentados das Forças Armadas, agraciados com pelo menos uma medalha de honra ao mérito. Há valentes anos atrás fizemos com nossos filhos a tal visita completa, guiados por um desses senhores e ouvimos lendas surpreendentes como, por exemplo, aquelas que tentam explicar a presença dos corvos de estimação na Torre de Londres, uma tradição imexível que pode ser resumida da seguinte forma:
“Se os corvos deixarem a Torre de Londres, a Coroa cairá e com ela a Grã-Bretanha “.
Só que ninguém sabe ao certo quem fez tal profecia. Uma das lendas mais antigas que linka a Torre a um corvo é celta de origem e narra a batalha de um rei dos bretões de nome Bran, contra o líder irlandês Matholwch. Vitorioso mas ferido de morte Bran pediu a seus seguidores que cortassem sua cabeça e enterrassem-na na Colina Branca - onde depois seria erguida a Torre - voltada para a França como um talismã para proteger a Grã-Bretanha das invasões estrangeiras. Muito bem. Mas cadê o corvo da história? Sucede que o nome do rei, “Bran”, é a palavra galesa para “raven” ou seja, corvo em inglês.
Porém essa narrativa não explica a presença de corvos na Torre. Tudo bem que corvos selvagens, faz muitos séculos, tenham sido atraídos pelo cheiro dos cadáveres dos inimigos da Coroa ali executados. A execução de Ana Bolena em 1535, por exemplo, é assim descrita:
“Mesmo os corvos ficaram em silêncio e imóveis nas ameias da Torre observando a cena estranha. Uma rainha estava prestes a morrer!”
Duas das mais coloridas versões da saga dos corvos, rolam no reinado do rei Carlos II. Dona Lenda jura de pés juntos que belo dia o então astrônomo real, John Flamsteed, reclamou que os corvos selvagens voando continuamente diante do seu telescópio tornavam-lhe muito mais difícil a tarefa de observar o céu lá do observatório no alto da Torre Branca. Flamsteed pediu a Carlos II que as aves fossem caçadas, mas o pragmático rei , receoso da profecia, recusou-se a exterminar os corvos determinando, em vez, a transferência do observatório e do amigo astrônomo para Greenwich.
De acordo com outra variação do mesmo tema, os corvos de estimação teriam se mudado para a Torre após o Grande Incêndio de Londres, em 1666, quando, durante três dias, a parte medieval da cidade no interior da antiga muralha romana esteve em chamas e dezenas de milhares de londrinos ficaram desabrigados. O fogo quase atingiu o Palácio de Whitehall, a residência de Carlos II, localizado em Westminster.
O certo é que a cidade viveu o caos e ficou indefesa diante da pilhagem que passou a ser cometida por homens e animais famintos como porcos, gatos, cães e uma grande quantidade de corvos selvagens. O rei ordenou a extinção dos roedores e dos corvos, para evitar as pragas que poderiam se espalhar. No entanto, mais uma vez receoso da profecia e convencido que seria um mau presságio matar todos os corvos, decidiu poupar uma dúzia que, sob seu comando e supervisão, desde então passaram a viver e a se reproduzir na Torre.
Corvos da Torre de Londres - imagem Wikipedia - Wikimedia Commons

Porém muita gente boa conta que, em vez, um erudito bardo, de nome Iolo Morganwg, um galês que também foi um notório falsificador, convenceu os Condes de Dunraven através do uso de papéis falsos de que o seu castelo em Glamorgan era a terra natal do acéfalo rei Bran e eles da sua estirpe, levando-os a enviar corvos à então Rainha Vitória, em 1883, como uma espécie de reivindicação espiritual à Torre e solicitando à soberana que os mantivesse por lá. Desde então os guardas reais teriam passado a mencionar os pássaros em seus contos góticos e sangrentos, para dramatizá-los ainda mais, pintando o local para seus visitantes como uma casa de horrores.
Mas a parte mais estranha e mais interessante dessa múltipla história é que até hoje seis magníficos corvos - e mais um de reserva! - especialmente selecionados e criados são mantidos na Torre de Londres e tratados como realeza, embora com as asas cortadas. Pode parecer uma bobice imensa mas naquelas paragens realmente se acredita que a coisa vai ficar preta para o reino se os corvos abandonarem as velhas muralhas (rsrs)
Entre os habitantes humanos da Torre de Londres, a mais notável foi Ana Bolena, a rainha dos mil dias e segunda esposa do rei Henrique VIII. Ele deixou de querê-la quando a moça não conseguiu dar-lhe o herdeiro varão, que almejava tanto que resolveu se livrar da mãe de sua filha, acusando-a de adultério. Embora a maioria dos historiadores concordem que Ana era inocente, o rei aprisionou e executou a moça de qualquer maneira. E a prova? Dizem que um lenço esquecido por ela em um evento foi apanhado pelo suposto amante - um dos cortesãos de Henrique - e beijado reverentemente antes de ser devolvido à rainha. Foi o bastante.
A vítima mais trágica e inocente da Torre, no entanto, foi a protestante Lady Jane Gray, a prima adolescente que  Eduardo VI - o filho de Henrique VIII com sua terceira rainha de nome Jane Seymour – nomeou como herdeira, negando o trono às suas duas meia-irmãs: Mary, a filha da católica Catarina de Aragão, e Elizabeth , a filha da bela Ana Bolena. Sucede que após a morte do menino rei, aos quinze anos, a sua meia-irmã mais velha que entrou para a História como a Bloody Mary - em livre tradução a Maria Sanguinária - simplesmente não aceitou a sucessão.
Por nove dias, Lady Jane Gray foi considerada como rainha da Inglaterra, mas antes de sua ascensão ao trono Maria já havia reunido apoiadores suficientes para convencer o Parlamento a declará-la rainha. Como resultado Jane foi trancafiada na Torre apesar de não ter qualquer intenção de lutar pelo trono nem desejar ser rainha. E meses depois essa cristã protestante, de apenas dezesseis anos, foi decapitada.
Last but not least os guardas da Torre - cidadãos acima de qualquer suspeita! - através dos séculos têm relatado encontros com fantasmas de linhagem real e/ou nobre, como Ana e Jane e os dois jovens filhos do rei Eduardo IV, que muitos acreditam terem sido assassinados por seu tio, que assim se tornou o rei Ricardo III.
fotografia Moacir Pimentel

Na verdade a escritora Helene Hannf não tinha interesse na Torre mas sim uma fascinação pela primeira rainha Elizabeth e, nos seus escritos, falou dela como se de uma amiga de infância. Helene nos fala de como a princesa via o mundo quando jovem e de como muitos conspiraram em vão para impedir que a filha de Ana Bolena e Henrique VII subisse ao trono da Inglaterra.
Quem ainda se recorda das antigas aulas de história há de lembrar que a então princesa Elizabeth foi acusada pela Bloody Mary de traição e interrogada em Whitehall por supostamente ter participado da conspiração que entrou para a história como a Rebelião Wyatt contra a então católica rainha, sua meia irmã.
De Elizabeth foram afastados os servos e conselheiros, a ela não foi permitido falar com a Rainha e foi assim, sozinha e aterrorizada, que a moça enfrentou o velho e experiente interrogador Stephen Gardiner, o poderoso Bispo de Winchester e Lorde Camareiro de Mary, descrito como “ambicioso, esperto, vingativo e sanguinário”. É claro que a princesa não recebeu qualquer migalha de simpatia desse senhor, além da autorização para escrever uma carta à irmã, protestando sua inocência e lealdade.
Essa longa carta, que é considerada um dos documentos mais importantes da História inglesa, tem firmes traços diagonais de tinta unindo as linhas de palavras, sugerindo que a jovem princesa temia que adições falsas, capazes de incriminá-la, pudessem vir a ser feitas nas partes em branco do papel.
Foi-lhe dito então que ela seria transferida de Whitehall para a Torre de Londres, o castelo mais temido da Inglaterra cuja história sangrenta ela bem conhecia. Afinal sua mãe, sua tia Catherine Howard e sua prima Jane Gray lá haviam sido decapitadas e enterradas sem as cabeças que, fincadas em mastros, alimentaram os corvos selvagens na Ponte da Torre. Como os prisioneiros da Torre raramente saíam de lá vivos, Elizabeth deve ter acreditado que seria executada.
Diz Dona História que ela foi levada de barco para a Torre debaixo de uma chuva torrencial e informada de que deveria entrar pelo Portão dos Traidores. Indignada, ela recusou-se e sentou-se no tal degrau. Aos vinte e um anos, ela defendeu-se com tal veemência que convenceu a guarda real encarregada de vigiá-la e, em seguida, o povo inglês da sua inocência:
“Aqui desembarcou e se encontra prisioneira uma súdita leal e verdadeira de Sua Majestade. Diante de Vós, ó Deus, que outro amigo não tenho, declaro que não sou traidora”.
Sim, a gente se emociona na Torre de Londres mas ela, sempre à beira do Tâmisa, não é mais a mesma. Ao seu lado hoje moram, imponentes, outras torres só que de aço e vidro espelhado, belos trabalhos de arquitetura contemporânea capazes de encarar com brio suas grandes contrapartes históricas: a Torre e a Ponte da Torre. O Gherkin, por exemplo, do alto de seus já ultrapassados quarenta andares, pode ser visto como um casamento da tradição com a modernidade.
fotografia Moacir Pimentel

Essa visão pós-moderna do arquiteto Norman Foster, concluída em 2003 após apenas dois anos de construção, tinha que ter um design verdadeiramente especial para ganhar os corações e as mentes dos habitantes de uma cidade com tanto orgulho da sua arquitetura histórica. Londres, mais uma vez, apostou no futuro que tanto tempo faz foi personificado por uma nova rainha de apenas vinte e cinco anos que, mesmo na sua desventura, enquanto passava pelas ruas era aclamada pelo povo.
A história inglesa remonta a milhares de anos, e é isso o que torna Londres tão atraente. Pode-se ir, em um piscar de olhos, desse modernoso edifício, vulgo “Pepino”, até o número 17 do Gough Square, subir as escadas e visitar a modesta casa e território sagrado para os que amam as pretinhas, onde Samuel Johnson compilou seu “Pai dos Burros” em inglês no ano de 1755. Será que ao chegar a Londres, Helene Hanff se perguntou, como eu, quem viveu nessas muralhas romanas, quem se abrigou do frio nessas moradias elizabetanas, cada vez mais sitiadas pelos aço e concreto e vidros espelhados?
fotografia Moacir Pimentel

Nessa cidade de oito milhões de habitantes, o futuro e o passado estão constantemente sobrepostos. Note que mesmo nos enclaves mais romanos e elizabetanos da cidade, como a Torre, o design moderno rasga o horizonte: é o caso de outro edifício, o Shard de Renzo Piano, do outro lado do rio.
Na foto ele dá o longo ar da graça dele no fundo da foto entre a muralha original que circundava a cidade fundada pelos invasores romanos e as moradias elizabetanas, nos fazendo lembrar que Londres foi, é e será sempre o cenário de muita ação. Veja ainda à esquerda da foto o estranho prédio da “Municipalidade” - a Prefeitura da cidade - que não tem nick mas poderia ser apelidado de Colmeia...(rsrs)
Que tal fazer um pausa antes de continuarmos o passeio? Até lá, então...


16/08/2019

Peripécias de um casal de idosos

Gato no petshop - autor 玄史生 (Creative Commons Attribution-Share Alike 3.0 Unported license)


Francisco Bendl
Faz algum tempo que eu a Marli pensamos em sair de Rolante, e morar mais perto dos filhos.
Dois na capital e um na cidade de Osório, o médico, cuja esposa é enfermeira e leciona na faculdade local.
Sentimo-nos pontas soltas longe de nossos amados.
Olhamos casas primeiro em Porto Alegre, inúmeras.
Afora o custo da mudança e o valor dos aluguéis, o problema das casas em condomínios fechados é a escada, pois a maioria absoluta é de sobrados.
Para quem já é velho, eis um obstáculo intransponível.
A solução seria apartamento.
No entanto, eu preferiria enfrentar as escadas que morar embaixo de alguém que sapateia, faz barulho à noite, usa de furadeira fim de semana, a mulher quando coloca sapatos de salto alto chega a doer no coração pelo toc  toc toc, no piso.
Mais:
O alto custo do condomínio que, muitas vezes, empata com o valor do aluguel.
Desta forma, somando as contas, afastamos Porto Alegre de nossas pretensões.
Para onde, então, iríamos eleger a nova cidade onde iríamos residir?
Osório!
Lá mora o nosso filho mais velho, médico, que nos ajuda volta e meia quando precisamos desta atenção específica.
E demos início ao périplo de escolher uma casa.
Os aluguéis eram mais caros que Rolante.
Empecilho:
Exigiam fiador.
Expliquei que o fiador é uma figura mitológica, tornou-se uma lenda, um mito.
Perguntei se era só esta modalidade de se alugar um imóvel?
Disseram-me que restava o seguro fiança.
Mais uma vez mencionei que a Porto Seguros levou o seu maior acionista à classificação de um dos homens mais ricos do Brasil, dono de uma fortuna estimada em mais de cinco bilhões de dólares!
O valor que é cobrado do aluguel, de um e meio a dois meses por ano, é um dinheiro que não fica para o inquilino, para o dono do imóvel e tampouco para a imobiliária.
As empresas me alegaram que era assim que trabalhavam, portanto, se eu estava interessado em alguma casa, eu teria de me submeter às suas regras.
Continuei procurando, pesquisando em imobiliárias sem tanta fama que, lá pelas tantas, aceitariam cartão de crédito, por exemplo.
Encontramos UMA CASA MARAVILHOSA, sobrado... sobrado, porém somente os dormitórios eram no andar de cima, e havia um no térreo, que seria inevitavelmente o meu, e também transformado em escritório.
Eu e a Marli olhamos, gostamos, e ficamos de voltar para assinar o contrato depois que o inquilino saísse, e a imobiliária fizesse a vistoria e consertasse o que precisasse de reparos.
Nesse meio tempo, surgiu uma casa térrea, ou seja, sem andar de cima, plana, e mais barata que o sobrado, mesmo com seus luxos e até piscina!
Cancelamos a casa que gostamos, que ainda não tínhamos assinado papel algum.
Dia seguinte, lá fomos nós de novo a Osório pela sexta vez em uma semana. Diga-se de passagem, que esta cidade dista de Rolante setenta quilômetros, ida e volta são cento e quarenta quilômetros percorridos, portanto.
Vimos a casa, era o que queríamos e, mais uma vez, voltaríamos para assinar o contrato depois que a papelada fosse analisada e o crédito aprovado, pois seria na mesma modalidade do sobrado, cartão de crédito!
Na volta, eu e a Marli pensamos, e começamos a rever os aspectos negativos de uma casa em uma cidade muito maior que a nossa.
Em Rolante temos segurança;
Pedimos as compras por telefone para o supermercado, que nos traz em casa, recebe o cheque e, ainda por cima, quem vem coloca as bebidas na geladeira!
Caso eu queira ir ao banco, basta eu ligar que vem um atendente e me leva no carro o que preciso, sem eu entrar na agência!
Todas às terças-feiras à tarde, vem um rapaz na sua camionete nos vender verduras, frutas, cebola, tomate, batatas, couve, repolho, abóbora, tempero verde... o que necessitamos, e sem qualquer agrotóxico!
Temos amizades sólidas em Rolante.
Por que deixar tais mordomias e regalias para trás?!
No dia seguinte liguei para esta imobiliária e desfizemos a preferência pela casa!
Nessas alturas, as imobiliárias que ouviam a minha voz já me atendiam com natural má vontade, também, pudera!
Tínhamos desistido de vários imóveis, depois de clamar pela preferência e outra modalidade de aluguel, e conseguido.
Ora, depois cancelar?!
Eis que nos liga outra imobiliária, e com uma proposta verdadeiramente irrecusável:
No prédio onde mora o nosso filho, desocupara um apartamento no andar de cima, no sétimo – ele reside no terceiro andar.
Garagem, três dormitórios, living para três ambientes, cozinha de bom tamanho, área de serviço, e um preço muito interessante.
A surpresa:
Nosso filho e a sua esposa seriam os avalistas!!!!
Ficamos de visitá-lo no sábado retrasado.
Pela manhã, eu e a Marli pegamos o nosso “possante” carro, e nos deslocamos para Osório.
Vimos o imóvel, agradou-nos de pleno, era o que precisávamos.
Combinamos que voltaríamos na segunda-feira para assinar o contrato, pois os documentos eu poderia enviá-los por e-mail.
No mesmo dia, sábado, portanto, liguei para um amigo meu que faz esse serviço, de mudança. O cara é especializado, um excelente profissional.
Expliquei-lhe que seria no sétimo andar, logo, algumas tralhas que temos não subiriam pelo elevador, deveria ser no “índio”, no muque, subindo sete andares pela escada!
O preço que seria cobrado foi estipulado em três mil reais, isso que seria para mim, um amigo(?!).
Um dos três aparelhos de ar condicionado que temos na casa seria vendido para a empresa de mudanças, diminuindo o valor do frete;
Também um fogão de quatro bocas, pois temos um outro, de seis, e seria este que levaríamos para Osório.
Resultado, a mudança diminuiria mil reais, ou seja, eu estava fazendo um ótimo negócio!
A colocação de dois aparelhos de ar condicionado no apartamento, localizado no sétimo andar, lembro, mediante andaime estilo rapel, com segurança e tal, cada um me custaria mil e duzentos reais a instalação, portanto, dois mil e quatrocentos reais;
Não havia cozinha.
A aquisição de uma por mais simples que seja, incluindo balcão e o inoxidável da pia não sai por menos de dois mil a dois mil e quinhentos reais.
Começamos a somar:
Mudança, ar condicionado, cozinha, outras instalações como máquina de lavar roupas, secadora de roupas, máquina de lavar pratos, um tanque, instalação do computador, antena de TV, telefone, Internet... o cálculo beirou dez mil reais!!!
Um dinheiro federal!
Uma soma que eu compraria o que desejo e sobraria troco.
À noite, eu e a Marli deitados um ao lado do outro e, como sempre fazemos, começamos a conversar sobre custos e benefícios desta mudança de cidade.
Em princípio, deveríamos esquecer as mordomias e regalias que mencionei;
Depois, a questão de ser apartamento. Apesar da segurança, me assombrou mais uma vez a lembrança sobre “quem mora no andar de cima”?!
E, se lá pelas tantas, faltasse luz ou o elevador quebrasse ou ficasse em desuso para reparações?!
Sem alimento, sem poder descer sete andares e depois subir, a solução seria pedir ajuda aos bombeiros, que seria tragicômico, um fiasco!
Também havia o problema da nossa cadelinha, a Lili, uma linguicinha, que adora correr pelo pátio da casa, além dos dois gatos pretos como o carvão, e que são os dengues da Marli, a Monalisa e o Amon Ra!
Nesse instante, paramos de conversar.
Olhávamos fixamente para o teto do quarto.
Certamente pensávamos o mesmo, a ponto que automaticamente e em sincronismo, voltamos nossos rostos um para o outro e exclamamos quase em uma só voz:
- VAMOS FICAR EM ROLANTE!
Na segunda-feira, lá fui para o telefone – pessoalmente eu não iria a Osório, nem sob os mais veementes protestos! – desistir do apartamento, alegando uma série de razões, as mais absurdas possíveis, claro.
A moça que me atendeu nesse meio tempo não gostou, natural.
Mas decidimos ficar onde tão bem estamos instalados, mesmo distante dos filhos e netos.
Agora, dia desses liguei para uma das imobiliárias que nos havia atendido.
Tive o azar de a mesma atendente estar do outro lado da linha.
Ao reconhecer a minha voz, ela foi taxativa:
- Alô, o senhor discou errado. Aqui é uma Petshop e não imobiliária!
Em outras palavras:
Osório e Porto Alegre, onde na capital fiz o mesmo com algumas imobiliárias, de ver as casas, propor um aluguel menor, e desistir no último momento, certamente vão usar do mesmo expediente, que mudaram de ramo.
Volta e meia, eu e a Marli desatamos a rir sem parar.
Imaginamos o que não devem ter pensado de nós, no mínimo, dois velhos loucos que não têm o que fazer!
Pensamos até mesmo no possível diálogo entre as imobiliárias:
- Alô, é da Alfa?
- Sim, e daí, é da Beta?
- Sim.
- Por acaso vocês receberam a visita de dois idosos, que queriam alugar um imóvel em Osório?
- Sim, ela uma ruiva, estatura mediana, magra, ele um sujeito grande, que fala alto, é este o casal?
- Sim, este mesmo.
- Não pareceram dois malucos e, ela, a chefe, pois o monstro a obedecia e só falava depois que ela permitia?
- Acertaste, são os dois velhos doidos. Escolhem o imóvel, pedem pela preferência, olham a casa, dizem que vão alugar e depois cancelam!
- Pior fizeram com a Delta!
- Com a Delta, logo com esta imobiliária, tão exigente?!
- Sim, com a Delta.
- Como?
- Pois a Delta concordou em alugar até sem fiador, imagina só!
- Sem fiador, como pode?
- O dono da imobiliária os achou tão simpáticos, que admitiu pela primeira vez alugar um apartamento desta forma!
- E alugaram?
- Claro que não!
- Tá brincando!
- Não, tô dizendo a verdade. Na segunda-feira ligaram e desistiram de mais esta escolha!!!
- Credo, que dois malucos!
- E soubeste da Imobiliária Gamma?
- Nãaaaoooo, mais uma?
- Nem te conto!!!
Combinamos que nossos filhos vêm nos visitar em Rolante por um bom tempo!!!

PS – Peço que Pimentel e Palmeira me perdoem por eu não ter postado comentários sobre seus artigos.
Não havia como, pois até o computador estava encaixotado.
O texto postado a respeito do trabalho da Ana, eu o enviei por Whats pessoalmente.
O Wilson teve a gentileza de postá-lo no Conversas do Mano.
Agradeço a compreensão.