fotografia Heraldo Palmeira |
Heraldo Palmeira
Dia de outono, relógios apontando para a hora do almoço. Todos nós
cuidando das nossas vidas. O tráfego normal na grande avenida que corta o
bairro e lhe serve de eixo.
No intervalo de dois quarteirões, tudo correndo absolutamente
igual nos estacionamentos, pontos de táxi, lanchonete de comida árabe, despachante,
açougue, mercearia, hortifrutigranjeiros, restaurante e loja de produtos naturebas,
estúdio de pilates, estúdio fotográfico, assistências técnicas de eletrodomésticos
e eletrônicos, chaveiro, restaurante popular e lojas de brinquedos educativos, materiais
elétricos e de construção.
Numa das oficinas mecânicas, uma kombi azul e branca da última
série está sob cuidados intensos, motor no chão – passa na minha cabeça aquele maravilhoso
filme de despedida que a fábrica mandou produzir quando encerrou a produção da
velha perua.
A lotérica cheia de sonhadores do grande prêmio em disputa. A floricultura
dividida entre natureza viva e natureza morta, algumas abelhas em pleno ofício
de garimpo das suas delicadezas.
Aqui e acolá, aquelas lojinhas que a gente nem sabe direito o que
vendem. A coisa de passar na porta delas todos os dias, saber que estão ali,
mas a distração de nunca olhar para dentro.
A loja de bugigangas domésticas, a frutaria, o ponto de táxi onde alguns
dos motoristas ora estão com o ar-condicionado “com problema desde ontem” há mais
de seis meses ora esqueceram a maquininha de cartão. Só nunca esquecem de
reclamar dos aplicativos que viraram concorrência indigesta.
A padoca do outro lado da rua – a televisão de cachorro na calçada
fazendo salivar por aqueles frangos assados rodando nos espetos –, frente a
frente com o salão do barbeiro mais curioso que conheço.
Um daqueles ônibus articulados, enormes, para no ponto em frente
ao salão. De repente, uma freada, o desassossego, um homem vociferando, um murro
dado na lataria do táxi, os berros do motorista em resposta aos impropérios do
outro.
Os velhos erros de sempre. A grande avenida de mão dupla, faixas
amarelas contínuas. Ônibus enorme parado. O táxi impaciente resolve ultrapassar.
O homem impaciente resolve atravessar a rua e sai de trás do ônibus. Era dia de
vida e ele não morreu atropelado.
Depois que ele e o taxista perceberam que nenhum era mais homem do
que o outro, cada um seguiu seu rumo. O carro subindo a grande avenida e sumindo
ladeira acima. O homem entrando na padoca. O ônibus seguindo a rota da linha
com seus passageiros com olhos curiosos lançados pelas janelas... Cada um a seu
modo querendo desacelerar o coração depois do enorme susto.
O barbeiro saiu para a calçada com a cara assustada, os cabelos
naquela cor da asa da graúna, beirando o negro da graxa de sapato Nugget, e me
encarou com sua sentença: “A culpa foi do táxi, que fez uma ultrapassagem
proibida”.
“A culpa foi dos dois. O homem atravessou fora da faixa, num local
de risco, saindo de trás de um ônibus” – respondi impaciente, talvez incentivado
por uma certa implicância com o curioso profissional.
Era ranço antigo, de quando cheguei para morar no bairro e ele me
crivou de perguntas indiscretas dentro da padoca. Até que perguntei se ele era
investigador de polícia ou trabalhava no censo e a gargalhada geral o deixou
sempre cuidadoso comigo, respeitando uma linha divisória imaginária desde então.
Segui meu caminho, uma senhorinha me parou logo adiante, aflita. “De
quem foi a culpa?” – quis saber. “Da pressa impaciente dos dois” – respondi. Ela
fez uma careta e notei que ficou processando aquele jogo de palavras, como se
esperasse uma resposta mais parcial, com partido tomado.
Parei na esquina, aguardando o sinal. O casarão amarelo, reformado
para abrigar a agência de viagens dominando a cena. Uma árvore enorme gritando
num cartaz pendurado nela mesma, em letras vermelhas e pretas sobre fundo
branco: “SOCORRO! ESTOU CAINDO”. Assim em maiúsculas assustadoras, aos gritos!
Dá medo de passar na “área da queda”, não tem como não ficar
imaginando a desgraça que ela causará se realmente tombar antes de qualquer
providência da municipalidade. E aquele grito urbano está lá há meses, como se
fosse um estandarte de uma brincadeira sem graça e bastante perigosa. Basta olhar
o quanto o piso ao redor já foi levantado pela raiz.
Passei na frente do restaurante refinado, a lanchonete lendária lá
na esquina do outro lado, instalada ali desde os anos sessenta. O pet, a
sapataria feminina, o consultório do veterinário, o restaurante japonês, a
livraria de rua – uma raridade nos tempos de hoje – e chego à minha esquina.
Estou envelhecendo sem pressa e a vida tem colaborado nisso. Fico aqui
no meu canto e ela lá no dela, parece ser um bom acordo. De cavalheiros. Quando
rezo, peço que tenha paciência comigo. Não vou me negar a nada, só quero ir
devagarinho. Abandonei o tempo da ansiedade, deixo a correria para a meninada
que ainda não descobriu que não vai chegar a lugar nenhum a não ser envelhecer –
porque muitos nem chegarão aqui.
Por isso, faz tempo que tenho me preocupado em ser gente. Pode parecer
esquisito, mas não é nada complexo, se limita a prestar atenção naquilo que
passa despercebido quando a gente pensa que está sendo a pessoa mais importante
do mundo – bobagem!
Olhar as pessoas é uma das coisas mais simples, que menos se faz e
que mais recompensa. É bom pisar na rua mais cedo e os meninos do sujinho
acenarem do outro lado com a pergunta “Vem almoçar hoje? É rabada! Tem bisteca
também!”.
Um dos garçons, bem jovem, costuma me perguntar coisas, falamos de
música e assuntos gerais. Tem sempre um chiste, damos boas risadas tirando onda
com o resto da turma. Os relatos das prosas noturnas da padoca já chegaram por
essa parte mais alta da rua, os meninos são todos amigos e, no fim das contas,
ganhei uma nova turma da vida.
Entrei no sujinho cumprimentando todos que trabalham ali. Estou em
casa, tanto quanto na padoca. A ponto de o velho garçom, em várias ocasiões,
almoçar comigo na mesma mesa porque ambos gostamos de deixar a prazerosa operação
de talheres para mais tarde, quando o movimento já diminuiu e as coisas estão
mais calmas. E a conversa simples é uma maravilha!
O lugar estava lotado, a clientela de sempre. A gente que trabalha
nos serviços gerais pelos arredores. Sentei de frente para a televisão,
normalmente sintonizada em resenhas esportivas, os analistas quase sempre
discutindo e colaborando com o burburinho.
O garçom bem jovem começou a falar de música, e de repente me disse
que tinha algo que gostou muito para me mostrar. Mudou a sintonia e soltou The
thrill is gone, gravada no Crossroads Guitar Festival 2010, em que BB King
recebe no palco Eric Clapton, Robert Cray, Jimmi Vaughn, Johnny Winter, Ron Wood
e uma penca de guitarristas.
Claro que houve um estranhamento no ambiente habituado às paixões
futebolísticas, mas não demorou para que o vozerio diminuísse, os olhares
estivessem capturados pelos músicos e vários dedos tamborilassem sobre as mesas
no compasso do blues.
A clientela foi terminando o almoço e ganhando a rua para cuidar
da vida. Estiquei até tomar o cafezinho coado, “está incluído no almoço”, e fui
embora feliz.
Bonita e agradável descrição de seu Bairro em São Paulo-SP com Foto, desse Escritor maravilhoso que é o Sr. HERALDO PALMEIRA.
ResponderExcluirCom humor e muito senso de observação da Natureza e principalmente das Pessoas, o Escritor vai narrando um dia típico de sua vida, mostrando que na agitação das grandes Cidades, TODOS andamos como que "correndo atrás da máquina", muitas vezes cometendo pequenos e até grandes acidentes que poderiam facilmente serem evitados com um pouco de paciência.
O Autor Sr. HERALDO PALMEIRA finaliza nos dizendo que: a Idade traz SABEDORIA, e esta nos ensina em separar as coisas importantes na Vida que são poucas, das comuns, comuns que quando colocadas em perspectiva errada podem causar muitos danos.
Parabéns e Saudações.
Flávio,
ExcluirObrigado pela leitura e comentário. Temos uma crônica cotidiana, simples, apenas uma observação sobre a vida comum numa megalópole, algo ainda possível no pedaço de São Paulo em que vivo - talvez por estar em um bairro majoritariamente residencial, onde não se gasta a maior parte do tempo "correndo atrás da máquina". Abraço.
Olá Heraldo,
ResponderExcluirÉ tão bom quando eu consigo, como você, sair do apressado habitual e, andando pelas ruas do bairro, olhar as casas coloridas, as placas e faixas, as pequenas lojas que guardam precisões e preciosidades, as pessoas, as batatas enērgicas das pernas do velho cansado apanhador de papel e outros desperdícios, a menina toda cor de rosa da mochila aos pés mais o laço de fita, a luz do sol escapada das folhas das árvores, e a mulher gari que varre essas folhas absorta nos seus pensamentos de poucos planos e muitas contas.
Ainda não consegui por inteiro, sem angústias, deixar-me envelhecer sem pressa.
Inquieta, comecei aos cinquenta quando resolvi deixar os hormônios e ficar , aos poucos, uma velha senhora orgânica sem agrotóxicos.
Venho treinando duramente. Chego lá?
Obrigada pela sua crônica delicada cheia de entrelinhamentos.
Atē mais"
Ana,
ExcluirPois é, em 1995 eu deixei o sistema formal de trabalho porque percebi que era mais importante sair do "apressado habitual", olhar com mais ternura para as "insignificâncias" instaladas ou passeando ao redor - como você tão bem descreveu as que lhe chamam a atenção no seu mundo cotidiano - e ir tentar ser feliz.
Acho que consegui por inteiro deixar-me envelhecer, pois aprendi a ver o tempo apenas como um fator e tenho de cumprir meu papel dentro de cada fase dele. Portanto, não penso na velhice como é de costume pensar, apenas vivo os dias, e viverei até quando eu não for mais dia nenhum. E nem noite. Imagino que estarei apenas perambulando pela madrugada. Por isso, o cabelo tomou a cor que bem quis, as rugas estão em seus devidos lugares, as dores não se tornaram inimigas, o cansaço sempre merece respeito, estou em paz com quem sou, não reclamo do que não tem reclamação que resolva... Obrigado, sempre. Até mais!
1) Crônica bem atual, as conversas/leituras/mensagens que este blog propõe bem.
ResponderExcluir2) A bela foto me fez lembrar que nos países do Sudeste Asiático, alguns budista colocam nas árvores os mantos laranjas dos monges,é uma forma de dizer "não me cortem, não me derrubem, não me abatam". Mas eu não sei se isto surte efeito.