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30/10/2019

Conversando com St. Antonius, em Antuérpia

Santo Antonio de Pádua, na igreja de Saint Antonius van Padua, em Antuérpia (foto Opencurches.eu)


Antonio Rocha
Os quatro mosqueteiros (eu, Heloisa esposa e minhas duas irmãs) e mais o trio (filha, genro e netinha) estávamos passeando na próspera e bela cidade portuária de Antuérpia.
Lá pelas tantas encontramos uma Igreja, entramos, não apenas para fazer as nossas orações, mas também para descansar das caminhadas. Nisso minha irmã mais nova chega perto e me diz:
- Teu amigo está ali te esperando.
- Quem ? – perguntei.
- Ora quem ? o Santo Antonio !
Me levantei e fui até o local indicado, onde havia uma imagem de St. Antonius van Padua. Guardei um folheto com uma oração em holandês. O que me chamou a atenção foi a forma de escrever  “Antonius”. E começamos a conversa:
Primeiramente agradeci por tudo o que ele representa em minha vida. Agradecidíssimo aos meus pais que concordaram em herdar o nome do meu pai Antonio.
Belo dia, lembrei, uma amiga freira e colega de faculdade me disse:
- “Você tem nome de Santo, não apenas é protegido, mas faça por onde, pois estes nomes estão rareando atualmente”.
Mas, voltemos à Antuérpia: Fiquei ali de pé orando, rezando, meditando, agradecendo inclusive o fato de ser budista e Santo Antonius me aceitar, me acolher, ele respondeu via intuição:
- Eu sou ecumênico, não ligo para esses rótulos terrenos. Inclusive, como você bem sabe, em uma de minhas encarnações eu fui Ananda (Anantuo, em mandarim), primo e discípulo do Mestre Buda.
Foi uma revelação espiritual, canalização mediúnica, intuitiva, que recebi quando estava em Madrid, em 2011.
Voltarei a esta conversa, mas posso lhes garantir que tudo, absolutamente tudo o que eu pedi Santo Antonius me ajudou. Umas coisas demoraram dez anos para chegar, mas continuo sempre grato.
No Brasil, nas cidadezinhas do interior, chamam o Santo de Toinho, Tonhão, Tonho, Tonico, Tunico, acrescento agora Antonius.


27/10/2019

Coisa existencial



Ana Nunes

Às vezes me pego sentindo e depois pensando em não escrever. Já disse quase tudo que penso. Outros já escreveram aqui o porquê, o para que de escrever e de ler e de parar. Ninguém sabe as respostas. Porque são muitas e são muitos. Cada um lê o que gosta e escreve o que sente. São retalhos emendados ponto a ponto.
Levantei hoje com essa coisa existencial. Uma espécie de angústia. Na verdade começou antes, junto a textos inacabados. Por isso ou aquilo. Como já disse um belo documentário brasileiro, é por preço ou é por quilo?
Não sei se escrevo sobre o mendigo, um desses meus papéis inacabados, já tão bem descrito pelo Heraldo, em passagens de belas crônicas.
O meu mendigo
Vejo numa manhã sombria
Ele sobe a rua devagar
Não tem pressa
Não tem casa nem família.
De pertences,
O cachorro magrelo que o segue
Sem saber porque
Apenas um dia se encontraram
No dividir o pão e a solidão.
E a sacola murcha
Com sei lá o que.
Não tem onde ir
Só o mundo no seu percurso.
Não tem cores além do cinza
Na camiseta velha e na calça achada
No tênis surrado de buracos andarilhos.
Com o tempo nem é mais cinza
Fica marrom o mendigo inteiro
Mais sujo e mais andado
Sua cor se mistura com o marrom da roupa
E só vejo seus olhos baços e baixos
Teimosos em continuar vendo.
Vê o mundo ao seu redor
Vê o lixo
Vê o passante aflito
E o ciclista atleta
Vê outro cachorro amarelo magrelo.
Vê o aroma do tempero
Nas casas do caminho
E não sei o que pensa.
Sente fome.
E penso de novo, não foi isso tudo já dito? Escrito e combinado? Continuo desanimada. Nem sei mais se sou eu ou se o nosso pequeno mundo. De aqui e de agora, de dor e desamor.
Pego outros papéis de rabiscos rabiscados. E entre eles um que fala de saudade. Já não a dissecaram todos aqui? Saudade de mãe de lua e de mar? De lugares de música e de amores? O que fazer?
A minha saudade
Começa no dia
Que amanheceu assim lindo
Sol claro tocando as folhas
E acordando os pássaros
Acordei com eles
Bem cedo ainda.
E soube o olfato apurado
Para sentir o traço da saudade
E olhos marrons bem claros
E bem abertos para beber a vida
E olhar a rua abandonada
No quase silêncio da madrugada.
Não sei porque
O café está melhor e mais apurado
O cheiro mágico se espalhando.
Lençóis ainda quentes e amarrotados
Travesseiros sentindo já a saudade da noite.
A música toca
E não me lembro do nome.
Que importa?
Meu filho está chegando.
Também já não o cantaram todas as mães de ninho vazio? Para que dizer de novo o que já foi dito? Até as notas musicais estão cansadas de se verem repetidas e repetidas.
Fico no meu ninho vazio. Cheio de lembranças boas e boas coisas de fazer. E letras de um não acabar mais. Misturadas e enroladas num novelo rechonchudo.
E perdida nos achados não quero sair de casa. Só em casos especiais. E deixo avisado que se ficar bem velhinha, acho até que ja falei isso mas sempre é bom lembrar, nada de me levar para passear porque o médico assim prescreveu. Ainda hoje, depois de uma semana intensa quase toda na toca me sinto vista estranha e diferente. Mas... Aleluia! Encontro um par! Um cara da CBN bem mais jovem, talvez nos seus cinquenta, crítico literário, escritor em prosa e verso, vira notícia porque, hoje, saiu de casa! Amigo, quase alma gêmea!
Se bem me lembro, nessas fracas luzes da ribalta, isso também já foi dito quando conversamos de velhice, de saudade, de modo de ser.
Escrever o que?
Se o mendigo passa por mim e nem me olha, se o filho lê e nota a falta de um a.
Se as velhinhas continuam a ser levadas a passeio num lugar sem senso na desculpa de tomar um sol já sem serventia.
Falar de flores?
Ou falar de chuva?
Ou de dores e amores?
A fase é existencial.
Mas ela passa e a existência fica.
Posso falar de frutas?


22/10/2019

A estrada romana


fotografia Moacir Pimentel

Moacir Pimentel 
A escritora Helene Hanff com certeza percorreu a rua Fleet - ou a Fleet Street como a chamam os londrinos - de ponta a ponta pois era uma fã ardorosa dos Diários de Samuel Pepys que foi um dos seus mais ilustres moradores.
A rua pediu seu nome emprestado ao Rio Fleet, que corria manso ao seu lado desde suas duas nascentes em Hampstead separadas pela colina do Parlamento, para desembocar no Rio Tâmisa. Só que, ao longo dos séculos, enquanto a metrópole crescia, o curso d’água foi diminuindo e se tornou tão poluído que deixou de ser navegável e teve que ser em parte aterrado e em parte desviado em 1700 para abastecer dois reservatórios d’água de modo que hoje no seu antigo curso não há nenhuma água à vista: o Fleet é, como dizem os nativos, um “rio subterrâneo”.
Mas o fato é que rio e o seu vale são conhecidos desde a época romana sendo que uma de suas pontes foi originalmente batizada de Ponte da Batalha - Battle Bridge - em uma referência ao local onde se diz que o exército da rainha celta Boadiceia foi derrotado pelos romanos no ano de 60 dC. O velho rio já correu defronte da Igreja de São Pancras, perto da atual estação ferroviária de mesmo nome, um dos locais mais antigos de culto cristão da Europa, possivelmente datando do início do século IV. E já foi até mencionado nas famosas Viagens de Gulliver!
Ou seja, a Rua Fleet é simplesmente a antiga estrada que outrora os romanos construíram como parte das fortificações de Londres cujo portão oeste, chamado de “Lud Gate”, ficava no que hoje é chamado de Ludgate Hill – a Colina de Ludgate - a meio caminho entre o Ludgate Circus e a Catedral de São Paulo.
fotografia Moacir Pimentel

Helene Hanff menciona a rua várias vezes nos seus livros porque ela conheceu a história da Inglaterra através dos Diários de Samuel Pepys que, entre os anos de 1659 a 1669, fez observações detalhadas de eventos como a praga de 1665, o Grande Incêndio de Londres e, de quebra, registrou os seus pensamentos e opiniões sobre os mais variados assuntos: de descrições de algumas das principais figuras da época, incluindo o arquiteto Christopher Wren e Isaac Newton e até algumas revelações de suas próprias infidelidades conjugais.
Ora, tendo nascido e vivido nas imediações da Fleet Street, o mundo de Samuel Pepys se estendia de Westminster até a Torre de Londres e, quando ele não o atravessava de barco pelo Rio Tâmisa, percorria uma rota regular: tendo como ponto de partida Whitehall, o cronista virava à direita em Charing Cross, seguindo pelas ruas Strand e Fleet, passando pela Catedral de São Paulo e atravessando a Ponte de Londres.
Nesse percurso poucos prédios sobreviveram nos últimos quase quatro séculos, mas muitos dos marcos históricos - principalmente as igrejas – continuam de pé e os nomes das ruas são os mesmos, se não suas antigas casas de madeira e o calçamento de pedra. Até hoje as ruas Strand e Fleet continuam sendo uma mistura agitada de predinhos de quatro e cinco andares, ocupadas por um mar de pedestres correndo entre escritórios e cafés e pubs e mesmo o tráfego, dominado por ônibus e táxis, ainda parece ecoar o clamor distante de carruagens, cavalos e carroças.
São poucos os arranha-céus nessa parte de Londres onde as ruas não são mais largas do que eram séculos atrás. A sensação de uniformidade através do tempo só desaparece à medida que a gente avança para as cercanias da Catedral de São Paulo, onde o moderno centro financeiro da cidade é dominado por torres e escritórios espelhados e impessoais.
O certo é que na rota entre Westminster e a Catedral de São Paulo, a Fleet Street foi a paisagem da vida de Pepys, um frequentador assíduo das suas tavernas para tomar uns goles de cerveja e fazer suas refeições em meio a boas conversas. A rua coleciona pubs e tavernas pitorescas, lugares que foram mencionados em tantos enredos de escritores que apreciamos e que, ainda hoje, mantêm as portas abertas sob suas placas charmosas. Um desses ícones da cidade é a Taverna George, abaixo à esquerda.
fotografia Moacir Pimentel

Do outro lado da rua, por uma estreita passagem, chega-se ao mais velho pub londrino, Ye Olde Cheshire Cheese, que de fora, parece ser estreito e pequeno, mas que tem vários bares e salas no subsolo. O pub Ye Olde Cheshire Cheese dá o ar da graça dele no dickensiano Conto das Duas Cidades mas tem pedigree literário mais amplo, tendo sido descrito também por Samuel Johnson, W.B. Yeats e Mark Twain.
Diz Dona Lenda que a casa preferida de Samuel Pepys foi outra, a Ye Olde Cock Tavern – A Taverna do Velho Galo - mencionada por ele nos seus diários. Na verdade a Taverna do Galo original, como nos informa a placa instalada na sua entrada, foi inaugurada em 1549, no lado oposto da rua, em outro prédio e com o nome de O Galo e a Garrafa.
fotografia Moacir Pimenel

Em 1887 a taverna e outros prédios foram demolidos para dar lugar ao Banco da Inglaterra. O pub foi transferido para o número 22 da Fleet, onde se encontra até hoje, vizinho do prédio das Royal Courts of Justice, que há séculos abriga os tribunais que julgam, em primeira instância, os casos mais importantes do Reino Unido. O pub sempre foi, portanto, frequentado por advogados e juízes.
Também a Ale and Pie House e a Punch Tavern são pubs famosos e frequentados por hordas de turistas. Das versões originais da maioria das velhas tavernas muito pouco chegou até nós. Da Taverna do Galo, por exemplo, só sobrou a escultura dourada do penoso e uma lareira decorada por esculturas para lá de imodestas (rsrs) Eu sinceramente prefiro beber em paragens mais calmas, mas como não clicar as placas e fachadas?
fotografias Moacir Pimentel

Pois é. O grande incêndio de Londres começou em uma padaria e destruiu a parte mais central da capital durante quatro dias em setembro de 1666. A estrutura medieval do centro - ruas estreitas e casas de madeira muito próximas umas das outras – contribuiu para a propagação das chamas que transformaram em cinzas mais de treze mil casas, oitenta igrejas e quarenta prédios públicos. Como dizem os portugueses, “arderam” entre outros, o centro administrativo da cidade conhecido como o Guildhall, a biblioteca de teologia do Sion College, a Ponte de Londres e a velha Catedral de São Paulo. Finalmente, no quinto dia de pesadelo, conseguiram deter o fogo em frente à igreja construída pela Ordem dos Cavaleiros Templários.
Os registros da época falam em um total de cem mil desabrigados e nove óbitos. No entanto pesquisas atuais afirmam que milhares de pessoas podem ter morrido, já que das mais pobres não eram mantidos registros. O prejuízo foi colossal mas o rei Charles II logo tomou providências contratando o famoso arquiteto Cristopher Wren para reerguer a Catedral e reconstruir Londres, começando pela área hoje conhecida como a “City”, o distrito financeiro.
Um dos antigos edifícios que sobreviveram sem cicatrizes à catástrofe ocupa o número 17 da Fleet Street e foi construído em 1610, acredita-se que pelo filho mais velho do Rei Jaime I, o príncipe Henrique, que usava uma sala do primeiro andar para reunir o seu conselho. Originalmente chamado de Taverna Prince's Arms, o prédio foi rebatizado como A Fonte em algum momento durante o século XVII. A sala, com um teto original ornamentado e painéis de carvalho é agora conhecida como Prince Henry's Room – O Salão do Príncipe Henrique – e alberga o museu de Samuel Pepys.
fotografia Moacir Pimentel

Talvez uma das fachadas mais fotografadas de Londres seja a dessa antiga estalagem, onde Dona Lenda jura de pés juntos que, séculos depois, Charles Dickens costumava ler os jornais todos os dias.
Sim, vale a pena caminhar pela Fleet Street e conhecer as estreitas passagens e pátios onde se escondem as casas de pretéritos e ilustres moradores, como por exemplo, a do Dr. Samuel Johnson, em Gough Square. Moram na rua uma estátua em sua homenagem e, bem assim, outra de Hodge, o seu gato de estimação, onde se lê a sua famosa frase: “Quando o homem está cansado de Londres, ele está cansado da vida”.
Vários escritores estão associados à Fleet Street incluindo John Milton, Izaak Walton, John Dryden, Alfred Tennyson, William Hazlitt e Samuel Coleridge. Muitos famosos ou foram batizados - como Samuel Pepys - ou se casaram ou foram sepultados – como o poeta Richard Lovelace - na antiga igreja de St. Bride's, obra do arquiteto inglês Christopher Wren, cuja torre – dizem! - inspirou o tradicional bolo de noiva de vários andares.
As lendas urbanas sobre essa rua são muitas. Quem já não ouviu falar do barbeiro assassino da Fleet Street? Dizem que Sweeney Todd nasceu em 1748, como Benjamin Barker, e que cresceu em uma Londres empestada por doenças, poluição, pobreza e corrupção. Foi aprendiz de barbeiro, teve noções de anatomia e de como roubar com mão leve os bolsos de seus clientes. Ele abriu uma barbearia na Rua Fleet e casou-se com uma bela jovem, atraindo a inveja de um poderoso juiz que preparou uma cilada para os pombinhos, separando-os.
Ele passou quinze anos em uma prisão na Austrália e ela se matou. Após cumprir a injusta pena, Todd voltou à Europa em busca de vingança e na barbearia da Rua Fleet reencontrou a proprietária do imóvel, a Senhorita Lovett, que guardara suas navalhas na gaveta e um amor incondicional pelo antigo inquilino no coração. Unidos em uma trama de vingança, o casal decidiu reinaugurar a barbearia dele e a loja de tortas dela e deu no que deu: as vítimas tinham as gargantas cortadas na cadeira do barbeiro e viravam recheio das tortinhas. Ao todo foram mais de cento e cinquenta mortes.
Essa história surgiu pela primeira vez em 1846, no romance The String of Pearls – O Fio de Pérolas. Um ano depois ganhou adaptação para os palcos e o subtítulo “O barbeiro demoníaco da Rua Fleet”. O certo é que hoje esse serial killer rivaliza em fama com outro assassino cruel do século XIX: Jack, o Estripador. Verdade ou fake news? Bem, como dizem os antigos: “onde há fumaça há fogo” (rsrs)
fotografia Moacir Pimentel

Perambulando por Fleet Street, pelos quarteirões ao redor da Catedral de São Paulo, somos surpreendidos, a cada passo, por tesouros escondidos. Você sabia que há uma muralha romana no coração de Londres, surpreendentemente intacta, apesar de ter sido erguida no século 2 dC? Em Love Lane, por exemplo, mora um pequeno jardim dedicado a Shakespeare, ou melhor, a Heminge e Condell, os dois homens que publicaram o seu trabalho vários anos após sua morte. O modesto parquinho fica a poucos passos da agitada Catedral, sua tranquilidade oferecendo uma pausa no caos das ruas próximas, dos becos e prédios circundantes por onde esbarramos com muitas evidências da Blitz.
É que em 29 de dezembro de 1940 a Luftwaffe alemã bombardeou essa parte de Londres na tentativa de destruir a Catedral, um dos orgulhosos símbolos da cidade. Eles quase conseguiram. Hoje quem caminha por essas paragens imediatamente percebe que a maioria dos edifícios é relativamente nova. O vidro e a pedra e o cromo contrastam com as velhas colunas e fachadas ornamentadas dos prédios mais antigos, enquanto as evidências das restauração e reconstrução pós-guerra estão por todos os lados.
Uma das histórias mais pungentes da Blitz refere-se ao fogo que varreu a Shoe Lane - na saída da Fleet Street. Ali, um bombeiro foi atingido quando uma parede desmoronou e não pode ser alvo apesar do esforço desesperado dos colegas. Mas a esquina da Shoe Lane – em livre tradução a Alameda do Sapato - entrara para a história de Londres antes.
É que Fleet Street há muito tempo é associada ao quarto poder: a imprensa. Diz Dona História que, no início do século XVI, a impressão e a publicação tornaram-se ali o comércio dominante. Explico: por volta do ano de 1492 um cidadão de nome Wynkyn de Worde montou a primeira impressora da cidade no adro da Igreja de St. Bride's, na mesma Shoe Lane.
Essa estranha associação da impressão com a igreja pode ser explicada porque os vigários medievais gostavam de ler. Assim, o empreendedor tinha um mercado à sua porta e fez um sucesso estrondoso com todos os tipos de textos. Logo Richard Pynson abriu uma outra editora ao lado da Igreja de St Dunstan, fornecendo principalmente livros de Direito para os advogados e magistrados que trabalhavam nos tribunais vizinhos, mas também publicando ficção, poesia e peças de teatro.
Em março de 1702, rolou também na Fleet Street, ao lado do pub King’s Arms, a primeira edição do primeiro jornal diário do reino, The Daily Courant, estabelecendo uma ligação antiga entre jornalistas e bebida. Em seguida, foi a vez do Morning Chronicle abrir as portas e por aí foram, de modo que no alvorecer do século XX tanto a Rua Fleet quanto a área circundante estavam dominadas pela imprensa britânica e indústrias relacionadas. Embora muitos jornais proeminentes tenham se afastado dessa vizinhança a velha rua ainda serve de metonímia para a imprensa. Todos os jornais britânicos já moraram nesse endereço.
O prédio do Daily Telegraph, concluído em 1928, no número 120 da Fleet, é um excelente exemplo de arquitetura Decô, com detalhes escultóricos típicos dos edifícios públicos da época cujas fachadas falam da paixão dos anos 20 por todas as coisas egípcias. No topo do prédio duas máscaras esculturais portentosas de nome “Passado” e “Futuro” dão testemunho da importância que os proprietários do jornal se davam, confirmada no friso acima da entrada principal, que mostra uma infinidade de Mercúrios voando da Grã-Bretanha para enviar notícias aos seus domínios e além (rsrs)
Todo o glamour e o entusiasmo da velha Fleet Street foi turbinado quando alguns anos mais tarde, em 1932, a apenas quatro portas de distância do Telegraph, o novo edifício do Daily Express abriu suas portas e imediatamente fez o vizinho parecer obsoleto, autoproclamando-se um ícone da modernidade. O prédio do Express é uma mistura agressivamente moderna de vidro e cromo pretos contrastando com a brancura da igreja St. Bride, não aquela medieval original que o seu paroquiano Samuel Pepys descreveu sendo destruída pelo fogo, mas a St. Bride's que foi erguida por Wren e mora bem à frente do jornal, sua torre alva se refletindo sombriamente na fachada inescrutável do vizinho.
A ampla entrada com dossel cromado leva a um átrio bizantino que contém dois enormes relevos batizados de “Britânia” e “Império”, criados pelo escultor Eric Aumonier.
fotografia Dar(io) Tar - Wikimedia

Ambos os edifícios, do Telegraph e do Express, são agora propriedade do Grupo Goldman Sachs, com os seus fabulosos interiores Decô guardados a sete chaves e os turistas barrados no baile. Mas para quem procura ecos das aspirações vertiginosas dos anos 20 e 30, esses edifícios resumem as preocupações de sua década e são relíquias de um mundo perdido. E há outros!
Sim, entre a rua Fleet e o Rio Tâmisa há mais surpresas, como é o caso da Igreja do Templo - a Temple Church - que, com mais de oitocentos anos de história, foi construída pela Ordem dos Cavaleiros Templários. Muita gente conhece a Igreja do livro/filme O Código Da Vinci, do Dan Brown, que a tirou do anonimato e a transformou em atração turística. Até porque fica escondida entre prédios comerciais em uma espécie de pracinha à qual se chega através de um arco de pedra e, se você não sabe da sua existência, é difícil que a descubra por acaso. Inspirada na Igreja do Santo Sepulcro em Jerusalém e consagrada no fim do século XII, mais precisamente no ano de 1185, essa igreja é interessante embora tenha sido bombardeada e reconstruída no pós guerra.
John Salmon / Temple Church, Temple, London EC4 / CC BY-SA 2.0

Ela não tem a grandiosidade de outras igrejas, catedrais e abadias londrinas mas é uma das raras igrejas redondas conhecidas, uma característica das construções feitas pelos Templários. O seu pátio tranquilo abriga uma coluna de mármore dominada pela estátua de bronze de dois cavaleiros em cima de um único cavalo. Trata-se do símbolo dos Templários porque simboliza o seu voto de pobreza: eles eram muito pobres para comprar cada um o seu próprio cavalo ( rsrs)
Hoje são famosos os concertos musicais realizados na igreja e as apresentações do seu coral, conhecido como um dos melhores da Inglaterra. Mas a Temple Church não tem apenas importância arquitetônica, religiosa e musical. Ela também foi o primeiro banco de Londres. Pois é.
Os templários eram monges guerreiros, membros de uma ordem religiosa com uma hierarquia inspirada na teologia, um rígido código de ética e uma missão declarada: proteger os peregrinos em rota para a Terra Santa durante as Cruzadas da Idade Média. Eram um exército armado e dedicado à guerra santa, à defesa da onda de peregrinos cristãos que viajavam milhares de quilômetros pela Europa a caminho de Jerusalém.
Esses peregrinos precisavam, de alguma forma, bancar meses de comida, transporte e acomodação, sem carregar grandes somas de dinheiro consigo, já que isso os tornava alvo fácil para os salteadores de estrada. Os Templários acharam uma solução para esse problema: um peregrino poderia deixar seu dinheiro na Temple Church em Londres e depois pegá-lo de volta em Jerusalém contra a apresentação de uma carta de crédito.
Não se sabe direito como os Templários faziam esse sistema bancário funcionar, nem como se protegiam contra fraudes nem se havia um código secreto para verificar os documentos e as identidades dos viajantes/depositantes. O certo é que o banco privado - embora pertencesse ao papa aliado a reis e príncipes ao redor da Europa – foi gerenciado brilhantemente por monges que tinham feito voto de pobreza, ali na Fleet Street, apelidada por eles, na Idade das Trevas, de Rua da Vergonha!
fotografias Moacir Pimentel

Quem caminha por Fleet pode até passar batido pelo cavalo dos pobres templários, mas não tem como não reparar no monumento que marca o início da rua, na fronteira com Westminster: a estátua do dragão-símbolo da City em cima de um nicho que dá guarida a outra escultura da Rainha Vitória. Como também no arco do Temple Bar, na torre da Igreja São Clemente e na primeira casa de chá de Londres – a Twinings Tea Shop! - inaugurada em 1706 e responsável pelo sucesso da bebida no país.
Diferentemente do que deve ter acontecido com Helene Hanff - lembre-se que a moça detestava ficção! - Fleet Street a mim lembra de outra Londres literária imperdível: a dickensiana. A rua, o bairro, a atmosfera da cidade são mencionadas em várias das páginas desse romancista de quem sou fã de carteirinha: Charles Dickens.
Mas essa já é outra conversa.


18/10/2019

Bruges-la-Morte

Fernand Khnopff - Estudo para a capa do livro de Rodenbach


Wilson Baptista Junior
O post do Antonio sobre sua visita a Bruges me fez lembrar uma tia muito querida, monja beneditina; já falei dela por aqui, tradutora de livros, muito culta, grande coração, hoje lá em cima conversando com São Tomás de Aquino. Uma vez, voltando de uma viagem com a Ana a Paris, contei para ela de um passeio que tínhamos planejado a Bruges, presente do meu filho que tínhamos ido visitar, mas que acabamos não podendo fazer. E ela deu um sorriso misterioso e disse “Bruges la Morte”...
Quando perguntei porque esse nome, me disse que era por causa de um romance do século XIX. Mas tínhamos mais coisas que conversar, e não perguntei mais sobre o livro.
Naquele tempo, coisa de vinte anos atrás, não era fácil encontrar um livro desses, o dela já tinha se perdido há muito tempo, e acabei me esquecendo da história. Outro dia, conversando com o Antonio, falei disso e ele me sugeriu que lesse e escrevesse sobre o livro. Maravilhas do Kindle, minutos depois eu já o tinha na frente. Agradeço ao amigo, porque a leitura valeu a pena, tanto pelo romance quanto pela lembrança da tia.
Já na página de abertura o autor, Georges Rodenbach, nos avisa:
“Dans cette étude passionelle, nous avons voulu aussi et principalement évoquer une Ville, la Ville comme un personnage essentiel, associé aux états d’âme, qui conseille, dissuade, détermine à agir.
Ainsi, dans la realité, cette Bruges, qu’il nous a plu d’élire, apparaît presque humaine... Un ascendant s’établit d’elle sur ceux qui y séjournent.
Elle les façonne selon ses sites  et ces cloches.”
Traduzindo:
“Neste estudo passional, quisemos também e principalmente evocar uma Cidade, a Cidade como uma personagem essencial,  associada aos estados da alma, que aconselha, dissuade, determina a ação.
Assim, na realidade, esta Bruges, que nos aprouve escolher, aparece quase humana... Estabelece-se uma ascendência dela sobre aqueles que ali moram.
Ela os conforma segundo seus lugares e seus sinos.”
Na edição original, de 1892, bem de acordo com a intenção do autor, a história é ilustrada com trinta e cinco fotografias em preto e branco da Bruges da época; foi o primeiro livro de ficção ilustrado assim de que se tem notícia. Infelizmente, nem a edição disponível no Kindle nem a grande maioria das edições modernas trazem mais essas ilustrações.
Lido e apreciado o romance, mesmo assim hesitei um pouco em escrever este post, por causa da complexidade das descrições dos estados de alma que teria que resumir, e peço desculpas aos leitores porque, sendo um romance simbolista, não é fácil fazer uma resenha compreensível sem tomar emprestada uma parte das próprias frases do autor, então, se aqui e ali o leitor que já o tiver lido reconhecer algum pedacinho do original (espero que levando também em conta, se não ficar tão parecido, que se deve à minha tradução), não se espante.
Cais do Rosário, Bruges (cartão postal antigo)

A história começa com um viúvo, Hugues Viane, que se prepara para sair de sua casa, junto ao cais do Rosário, para seu passeio da tarde, como costumava fazer nos últimos cinco anos, desde que se mudou para Bruges, logo depois da morte de sua mulher. Seu casamento feliz e apaixonado de dez anos tinha terminado bruscamente com a doença fulminante que em poucas semanas levou embora a moça.
Quando a mulher morreu, Hugues tinha cortado a longa trança de seus lindos cabelos louros, e mandado fazer para guardá-la uma caixa de cristal pousada sobre o piano, mudo desde a sua partida. Para ele, a trança era a alma da casa. Nesses cinco anos, conservara intocadas as salas onde guardara seus bibelôs, suas almofadas, o biombo que ela mesma tinha feito, todos os móveis em que ela tinha repousado, e ele mesmo cuidava de sua arrumação, não confiando nem em sua velha e devotada empregada, Barbe, para tocar naquelas lembranças sagradas.
Ele sempre passeava no final da tarde, amava a tristeza de Bruges nesse horário. Por isso tinha se mudado para lá depois da morte da mulher; à tristeza de sua alma tinha que corresponder a da cidade:
“C’etait Bruges-la-Morte, elle-même mise au tombeau de ses quais de pierre, avec les artères froidies de ses canaux, quand avait cessé d’y battre la grande pulsation de la mer”.
Traduzindo:
“Era Bruges-a-Morta, ela própria inumada na tumba de seus cais de pedra, com as artérias congeladas de seus canais, quando neles havia parado de bater a grande pulsação do mar”.
Assim era para ele a cidade nessa hora triste. Parecia-lhe que a sombra das torres invadia sua alma, que os velhos muros e as águas lhe falavam baixinho, que “a lenta persuasão das pedras” lhe ordenava que não sobrevivesse à morte da amada.
Mas era justamente o seu amor, e a vaga esperança de revê-la no Céu que o impediam, católico que era, de se matar.
Bruges - Igreja de Notre Dame (fotografia de Wolfgang Daudt)

Nesse dia, voltando da igreja de Notre Dame, onde costumava ir para fitar o sepulcro da princesa Marie de Bourgogne, que representava para ele a visão do amor se perpetuando na morte, forçava o pensamento para reconstituir o rosto da morta, mas já o tempo fazia esmaecer a memória desse rosto. Quando, de repente, passou por ele uma moça que fez seu coração perder uma batida pelo tanto que se parecia com sua mulher, nas feições, no tamanho, no ritmo do seu andar e até nos longos cabelos louros tão amados, achou que estava enlouquecendo, ou que, à força de procurar sua lembrança, suas retinas a viam na figura alheia. E desse dia em diante, para sua confusão, quando se lembrava da morta era a desconhecida da véspera que via. E com toda a clareza, sem mais fazer esforço. A composição das duas imagens na sua alma tinha agora uma força de vida que lhe dava a ilusão de uma presença real do amor perdido.
Começou a olhar em volta, durante seus passeios, até que deu de novo com a moça, seguiu-a ainda absorto nas suas lembranças, e viu-a entrar no teatro (levavam uma ópera de grande sucesso na época, Robert le Diable, de Meyerbeer – com um dueto da qual, aliás, Alphonse Daudet faz graça no seu romance mais famoso ao apresentar aos leitores Tartarin de Tarascon, um de meus heróis de infância), e, apesar de que desde que enviuvara não tinha aguentado voltar a ouvir música, comprou um bilhete, entrou e sentou-se. Mas procurou-a em vão na audiência, até que, ao final da peça, viu-a... entrar em cena, como uma das bailarinas do coro que entrava em cena no último ato. Fascinado, não via nela a dançarina, mas a sua morta querida, saída do sepulcro, que lhe estendia os braços lá no palco...
Bruges - Teatro da Cidade (imagem Visitbruges.be)



Nos dias seguintes, informou-se do seu nome, Jane Scott, e de que ela morava em Lille, na França vizinha, a pouco mais de duas horas por trem, de onde vinha nos dias das representações da ópera.
Uma noite, tomou coragem e abordou a moça, que para aumentar sua confusão tinha uma voz igual à da sua morta. Voltou a abordá-la e a conversar com ela outras vezes, mas fora do teatro, porque para manter a ilusão preferia vê-la com suas sóbrias vestimentas em vez de com a maquiagem, os braços nus e as lentejoulas de cena.
Como se pode imaginar, com o passar dos dias e dos encontros uma atração diferente foi tomando conta dele e nosso viúvo começou, quando via e ouvia aquela em cuja imagem imaginava a morta, a sentir falta dos abraços, dos beijos, da intimidade perdida. E, para encurtar a conversa, terminaram por tornar-se amantes.
Primeiro no quarto do hotel onde ela se hospedava, depois numa casa que ele alugou para ela nos arredores da cidade. Fez com que ela deixasse o teatro. E, quando estavam juntos, procurava nos carinhos e nos gestos encontrar a sua ausente.
Mas Jane, que não sabia o que se passava, não compreendia o seu comportamento, diferente do dos outros homens. Sua insistência no modo de vestir, em não deixar os cabelos pintados de louro voltarem à sua cor natural, no seu ar triste mesmo nos momentos mais íntimos.
E no entanto Hugues estava feliz; a semelhança o fazia esquecer a dor, a própria cidade parecia menos triste, o tocar dos sinos, antes tão sombrio, já não parecia que tinha a ver com ele. A cidade cinzenta, dos canais imóveis entre as pedras antigas, do céu do norte, que gradativamente tornava as almas do seu povo também cinzentas e tristes, escolhida por ele porque se parecia tanto com sua melancolia, parecia ter se esquecido dele. Mas por seu lado ele se esqueceu de que Bruges, cidade antiga e conservadora, era também uma cidade pequena, e quando a ligação daquele senhor antes austero e de luto com uma dançarina, que todos sabiam quem era, inevitavelmente se tornou conhecida, logo se tornou a fofoca da cidade. E só a sua velha e fiel empregada, inquieta porque ele muitas vezes agora faltava ao jantar (coisa inédita até então), ainda não sabia do caso do patrão.
Hugues continuava a cultuar a morta toda manhã, ao ver nas salas fechadas os retratos, os objetos, os móveis, e mais do que tudo a trança dourada, mas agora era a semelhança da outra que ele via sem perceber. A trança intocada desde que fora colocada na caixa de cristal, relíquia preciosa que podia apenas contemplar. E depois – ia procurar Jane, como se fosse a última estação do seu culto, que trazia de novo à vida todas as lembranças. Mas nunca, em ocasião alguma, tinha falado à amante da mulher e de sua história, e menos ainda querido levá-la até sua casa.
Mas a internalização da semelhança o levou, um dia, a querer vê-la mais igual ainda à morta, e assim escolheu dois dos vestidos até aquele dia guardados em sua casa, embalou-os cuidadosamente  e levou-os para ela de presente. E, para sua surpresa, Jane (que não sabia da sua origem) os achou antigos, fora de moda, feios, pensou que ele estava zombando dela e disse isso sem papas na língua.
Perplexo, Hugues tentou persuadi-la a vestir ao menos um dos vestidos, querendo ver, confirmar a semelhança que existia em sua lembrança. Depois de muito insistir Jane vestiu um deles, zombando, dançando e levantando a saia para se ver melhor. E a semelhança naquele momento lhe pareceu farsesca, e viu nela a morta  aviltada.
Algum tempo depois Hugues deu a Barbe um dia e uma noite de folga, que ela aproveitou para visitar uma parenta que vivia na Beguinaria (as beguinas eram mulheres, geralmente solteiras ou viúvas, que não eram monjas mas escolhiam morar em conventos, algo parecido com as oblatas de hoje mas com regras menos rígidas. Hoje esse convento é ocupado pelas monjas beneditinas).
Vue du Béguinage depuis le Sud - Bruno de Simpel (1886)
Prédio central da Beguinaria  (fotografia de Marc Ryckaert)

          Mas toda a sua alegria se dissipou quando, após o jantar, sua parenta chamou-a em particular e contou as novidades sobre Hugues, dizendo que ela agora deveria deixar o emprego, que, na visão rígida da época,  se tornara incompatível com uma mulher honesta.
Confusa e inconformada, triste por ter que deixar um emprego que era sua última esperança de poupar o dinheiro necessário para, na velhice que se aproximava, poder se juntar às beguinas, ao sair dali no dia seguinte foi procurar seu confessor, na igreja de Notre-Dame, que após ouvi-la, conhecendo a virtude da serva, lhe disse que, embora o patrão fosse sem dúvida culpado, quanto a ela deveria pensar que, enquanto os encontros dele fossem fora de casa e aquela “mulher de má vida”, nas suas palavras, não pusesse os pés na residência onde ela trabalhava, podia continuar ali sem medo, mas se algum dia a amante entrasse no lar a empregada não poderia mais, ficando, se tornar cúmplice do pecado.
Enquanto isso Hugues, que, todo envolvido, não sonhava que seu affair fosse do conhecimento geral, e que a cidade toda sabia e comentava para onde o levavam suas saídas vespertinas, sentia uma grande desilusão. A tentativa de combinar a visão da viva com a lembrança da morta tinha, ao contrário, feito diminuir a semelhança entre elas. E, sem perceber que era o seu modo de olhá-la que tinha mudado, punha a culpa em Jane por estar diferente.
À medida em que a intimidade revelava as maneiras mais livres da amante, uma vivacidade vinda da atriz, uma maneira mais descuidada de se vestir e se portar em casa, a distinção e a reserva natural de Hugues se ofendiam. Ao mesmo tempo em que bebia o som amado de sua voz, se entristecia com as palavras que ouvia...
E Jane, cansada de seu mau humor, chegava tarde, preferindo passear pelas lojas do que voltar para casa. Hugues passou então a variar a hora de suas visitas, mas muitas vezes não a encontrava. E retomava então seus passeios pela cidade, sem rumo, e a cidade novamente se fazia para ele cinzenta, ah, tão cinzenta e triste...
Acabava voltando, sem sentir, ao cais do Rosário, deixando para ir ver a amante mais à noite. Em pouco tempo, porém, voltava a vontade de vê-la e lá ia ele de novo. Até que o cinzento da tardinha e o frio da garoa invadiam sua alma e o levavam de volta à dor da perda da mulher. Então, a alma cinzenta como a cidade ao cair da noite e triste como o soar dos velhos sinos, arrepiava carreira mas não conseguia voltar para casa, com medo da solidão e das lembranças.
Errava pela cidade, seus pensamentos se tornando tão cinzentos como ela, os olhos se elevando para as torres das igrejas chamados pelos sinos, querendo em vão se elevar como elas mas preso à terra, sentia-o agora, como se o seu pecado o acorrentasse à morte e ao diabo.
Não há como resenhar, aqui, o profundo simbolismo com que o autor descreve ao longo de toda a obra as mudanças na alma da personagem. Nem quão bem ele mostra como a personalidade, a alma mesma das cidades conforma a dos moradores: “nós entramos nelas, enquanto elas penetram em nós... Toda cidade é um estado de alma”. É preciso ler o livro, deixar que, como as cidades, ele entre em nossas almas para compreender.
O que mais deprimia Hugues eram os sinos, muitos, ininterruptos, como um ofício dos mortos incessante. Ele voltava ao seu antigo costume de parar nas igrejas, principalmente a de Saint-Sauveur, com a sua tristeza sepulcral que nem as muitas e belas obras de arte que a ornavam podiam espantar. E sonhava com a morte enquanto se ajoelhava para rezar.
Bruges - Catedral de Saint Sauveur  (imagem Wikipedia.fr - CC)

Um dia, ouvindo lá o sermão do padre, ele se convenceu definitivamente que o seu pecado o separaria para sempre da morta amada, que a morte eternizaria a ausência que ele pensara temporária.  Desse dia em diante, a ideia do seu pecado o apunhalava. Mas assim também o torturava a de deixar Jane e voltar à solidão.
E o tempo todo a cidade e os seus sinos o admoestavam e o pressionavam. Como se estivessem, visíveis e sensíveis, rodeando-o e insistindo.
Para ele, cada vez mais, a lembrança da morta se dissociava da visão da amante. Já detestava, sem conseguir dissuadi-la, a maquiagem de cena que ela voltava a usar, tão diferente da morta; as discussões, inauditas nos tempos do casamento, as contas trazidas pelos fornecedores das compras de roupas e jóias que ela fazia a crédito, valendo-se do bom nome do amante.
Jane agora começava a sair para visitar amigas (velhas amizades retomadas, assim pelo menos dizia), uma vez até viajou por dias para visitar uma irmã doente em Lille de que nunca falara a Hugues.
As suspeitas que inevitavelmente afloraram nele acabaram se confirmando com as cartas anônimas, com acusações, com provas, que foram se avolumando em sua caixa de correio com toda a maledicência de uma cidade provinciana.
Para Hugues, chegava. Era como se a morta morresse de novo com a desilusão e o engano. E ele foi à casa da amante, sem raiva, infinitamente triste, para terminar com ela. Contou-lhe tudo, ante a fingida incredulidade dela mostrou-lhe todas as provas.
Mas quando ela, com um riso cruel, furiosa, gritou que não importava que fosse verdade, e que ela já não queria ficar ali, que ia embora, por um instante, vendo não mais a figura da morta, mas da mulher que ele, apesar da ilusão e do engano, tinha também amado, a ideia de voltar a ficar só, sem ninguém entre ele e o peso dos sinos na reprovação das pedras da cidade cinzenta, desesperou-se e implorou-lhe que ficasse...
Jane, aventureira esperta, percebeu o poder que tinha sobre o pobre Hugues, e imaginou que, ele sendo mais velho, em má saúde, gasto pelas tristezas, provavelmente não viveria muito, e que ela seria uma idiota de perder a oportunidade de conseguir uma herança que supunha de bom tamanho, porque ele era um solitário e todos o consideravam rico.
Daí para a frente ela moderou seus modos, tornou-se mais prudente, e quis mesmo visitar a casa de Hugues, visita que ele nunca lhe tinha permitido, para saciar sua curiosidade de conhecer essa vasta residência, e fazer, digamos assim, um inventário da sua riqueza par tomar uma decisão.
Para convencê-lo a deixar ver a casa tornou-se afetuosa, grudenta mesmo, e quis aproveitar a ocasião que se apresentava da procissão do Santo Sangue, onde no dia da Ascensão levavam pela cidade o relicário de ouro com um pouco do sangue de Cristo que tinha escorrido da ferida de lança que o soldado lhe fizera na cruz, e que a crença popular dizia que nesse dia se tornava novamente líquido; ela nunca tinha assistido a procissão, passava longe do seu arrabalde, mas passaria bem debaixo das janelas da casa de Hugues que davam para o cais do Rosário.
Depois de alguma dificuldade e de muita persuasão conseguiu convencer o amante.
Na manhã do dia santo, a velha Barbe foi logo à primeira missa, e começou seu trabalho anual de ornamentar a casa, por dentro e por fora, para o dia de festa. Era um dia que enchia de felicidade sua alma beata, uma ocasião de testemunhar sua devoção em conjunto com a cidade. Mas na hora do almoço, surpresa! O patrão a chamou e avisou que receberia uma pessoa para o jantar, e que ela tomasse as necessárias providências.
Ora, isso nunca tinha acontecido, a depois da primeira surpresa uma desconfiança gelou o sangue da velha: E se fosse a tal mulher perdida de que haviam lhe falado na Beguinaria? Abrir a casa a tal mulher, no dia em que o próprio sangue de Jesus ia passar à porta?
Como quem não quer nada, perguntou ao patrão quem seria a pessoa convidada, e ante sua negativa atreveu-se a perguntar se era porventura uma senhora, porque se fosse não poderia servir-lhe o jantar, porque seu confessor a proibira. Hugues, estupefato, demorou a compreender quanto era ruim a reputação de Jane para que a velha e fiel empregada tomasse uma decisão dessas, mas quando teve a certeza do porque da recusa, disse simplesmente que ela podia ir embora naquele momento, e que voltasse no dia seguinte para recolher suas coisas.
Barbe se foi, e Hugue, ouvindo a porta bater, sentiu remorso e tristeza por perder de tal maneira alguém que tinha feito parte de sua vida, e irritação ao pensar que isso era por causa de uma mulher que já o tinha feito sofrer tanto.
E começou a pensar no que sentiria a morta com a chegada, ao lar ainda cheio dela, da outra...
Jane chegou, brusca, imperiosa. Subiu com ele ao quarto, e ouvindo a música da procissão que se aproximava, abriu as cortinas para ver, contra a vontade do dono da casa, que tinha medo do escândalo. As pessoas na rua olharam para ela, e Hugues, perdendo a paciência, fechou violentamente a cortina. Quase transparente, permitia ver o bastante sem ser visto. Jane, amuada, sentou-se no sofá, longe da janela, e ele ficou observando a procissão, já detestando a presença da amante.
Bruges - Procissão do Santo Sangue (cartão postal antigo)

A magnificência da cerimônia o distraiu, e quase se esqueceu da presença de Jane. Mais adiante, lembrou-se dela, e, como homem distinto, contrafeito tentou fazer as pazes, mas só recebeu de volta um olhar irritado e um riso sarcástico. Profundamente triste voltou para a janela e continuou a olhar a procissão.
Passado o bispo com o relicário de ouro que levava o Santo Sangue, Jane percebeu o afastar da música e sem uma palavra colocou o chapéu se preparando para partir. Desceu as escadas em silêncio, mas, passando pelas portas das salas, que Barbe deixara abertas, entrou para vê-las, e examinava tudo, indiscretamente, quando viu um retrato da morta. Não sabendo do que se tratava, pegou na moldura com ar de chacota dizendo: “Olha, tens o retrato de uma mulher que se parece comigo!”
Hugues, furioso, gritou-lhe que largasse o retrato, e quando ela, sem compreender, riu de novo, tomou-o das mãos dela, sentindo profanadas as lembranças que apenas tocava com a maior reverência. Jane, irônica, passou à outra sala, mexendo em tudo, mudando de lugar os bibelôs, até que se deteve com uma grande risada à frente do precioso cofre de cristal, e, espantada e divertida, retirou de dentro a trança dourada e sacudiu-a no ar como uma echarpe de dançarina.
Hugues empalideceu, com aquele sacrilégio todas as desilusões, todos os sofrimentos, todas as suspeitas reprimidas lhe vieram à cabeça e lançou-se sobre ela para lhe tomar a trança sagrada. Mas Jane, interpretando mal seus movimentos, fugiu por detrás da mesa, enrolando a trança no pescoço como um boá e desafiando-o a tomá-la dela. E Hugues, correndo atrás da mulher que se esquivava rindo, perdeu o controle, o sangue lhe subiu aos olhos, agarrou as duas pontas da trança e puxou com toda a força, para tomá-la da profanadora. E, sem que tivesse essa intenção, estrangulou a pobre amante, que não soubera compreender o grande mistério da sua alma.
Quando sua visão clareou, contemplou os destroços de sua vida: Barbe o deixara, Jane jazia morta, na sua palidez era novamente a imagem da morta como se aquela tivesse morrido de novo...
No silêncio do final da procissão chegou o som dos sinos, todos os sinos da cidade tocando juntos, celebrando a volta do Santo Sangue à catedral. E Hugues ficou ali atordoado, repetindo, na cadência do seu dobrar, “Morte... Morte... Bruges-la-Morte...” sem saber se o som de bronze se derramava sobre uma cidade ou sobre uma tumba.