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Fernand Khnopff - Estudo para a capa do livro de Rodenbach |
Wilson Baptista Junior
O post do Antonio
sobre sua visita a Bruges me fez lembrar uma tia muito querida, monja
beneditina; já falei dela por aqui, tradutora de livros, muito culta, grande
coração, hoje lá em cima conversando com São Tomás de Aquino. Uma vez, voltando
de uma viagem com a Ana a Paris, contei para ela de um passeio que tínhamos
planejado a Bruges, presente do meu filho que tínhamos ido visitar, mas que
acabamos não podendo fazer. E ela deu um sorriso misterioso e disse “Bruges la
Morte”...
Quando
perguntei porque esse nome, me disse que era por causa de um romance do século
XIX. Mas tínhamos mais coisas que conversar, e não perguntei mais sobre o
livro.
Naquele
tempo, coisa de vinte anos atrás, não era fácil encontrar um livro desses, o
dela já tinha se perdido há muito tempo, e acabei me esquecendo da história.
Outro dia, conversando com o Antonio, falei disso e ele me sugeriu que lesse e
escrevesse sobre o livro. Maravilhas do Kindle, minutos depois eu já o tinha na
frente. Agradeço ao amigo, porque a leitura valeu a pena, tanto pelo romance
quanto pela lembrança da tia.
Já na página
de abertura o autor, Georges Rodenbach, nos avisa:
“Dans cette étude passionelle, nous avons voulu aussi et principalement
évoquer une Ville, la Ville comme un personnage essentiel, associé aux états
d’âme, qui conseille, dissuade, détermine à agir.
Ainsi, dans la realité, cette Bruges, qu’il nous a plu d’élire, apparaît
presque humaine... Un ascendant s’établit d’elle sur ceux qui y séjournent.
Elle les façonne selon
ses sites et ces cloches.”
Traduzindo:
“Neste estudo passional, quisemos
também e principalmente evocar uma Cidade, a Cidade como uma personagem
essencial, associada aos estados da
alma, que aconselha, dissuade, determina a ação.
Assim, na realidade, esta Bruges,
que nos aprouve escolher, aparece quase humana... Estabelece-se uma ascendência
dela sobre aqueles que ali moram.
Ela os conforma segundo seus lugares e seus sinos.”
Na edição
original, de 1892, bem de acordo com a intenção do autor, a história é
ilustrada com trinta e cinco fotografias em preto e branco da Bruges da época;
foi o primeiro livro de ficção ilustrado assim de que se tem notícia.
Infelizmente, nem a edição disponível no Kindle nem a grande maioria das
edições modernas trazem mais essas ilustrações.
Lido e
apreciado o romance, mesmo assim hesitei um pouco em escrever este post, por
causa da complexidade das descrições dos estados de alma que teria que resumir,
e peço desculpas aos leitores porque, sendo um romance simbolista, não é fácil
fazer uma resenha compreensível sem tomar emprestada uma parte das próprias
frases do autor, então, se aqui e ali o leitor que já o tiver lido reconhecer
algum pedacinho do original (espero que levando também em conta, se não ficar
tão parecido, que se deve à minha tradução), não se espante.
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Cais do Rosário, Bruges (cartão postal antigo) |
A história
começa com um viúvo, Hugues Viane, que se prepara para sair de sua casa, junto
ao cais do Rosário, para seu passeio da tarde, como costumava fazer nos últimos
cinco anos, desde que se mudou para Bruges, logo depois da morte de sua mulher.
Seu casamento feliz e apaixonado de dez anos tinha terminado bruscamente com a
doença fulminante que em poucas semanas levou embora a moça.
Quando a
mulher morreu, Hugues tinha cortado a longa trança de seus lindos cabelos
louros, e mandado fazer para guardá-la uma caixa de cristal pousada sobre o
piano, mudo desde a sua partida. Para ele, a trança era a alma da casa. Nesses
cinco anos, conservara intocadas as salas onde guardara seus bibelôs, suas almofadas, o
biombo que ela mesma tinha feito, todos os móveis em que ela tinha repousado, e
ele mesmo cuidava de sua arrumação, não confiando nem em sua velha e devotada
empregada, Barbe, para tocar naquelas lembranças sagradas.
Ele sempre
passeava no final da tarde, amava a tristeza de Bruges nesse horário. Por isso
tinha se mudado para lá depois da morte da mulher; à tristeza de sua alma tinha
que corresponder a da cidade:
“C’etait
Bruges-la-Morte, elle-même mise au tombeau de ses quais de pierre, avec les
artères froidies de ses canaux, quand avait cessé d’y battre la grande
pulsation de la mer”.
Traduzindo:
“Era Bruges-a-Morta, ela própria inumada na tumba de seus cais de
pedra, com as artérias congeladas de seus canais, quando neles havia parado de
bater a grande pulsação do mar”.
Assim era
para ele a cidade nessa hora triste. Parecia-lhe que a sombra das torres
invadia sua alma, que os velhos muros e as águas lhe falavam baixinho, que “a
lenta persuasão das pedras” lhe ordenava que não sobrevivesse à morte da amada.
Mas era
justamente o seu amor, e a vaga esperança de revê-la no Céu que o impediam,
católico que era, de se matar.
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Bruges - Igreja de Notre Dame (fotografia de Wolfgang Daudt) |
Nesse dia,
voltando da igreja de Notre Dame, onde costumava ir para fitar o sepulcro da
princesa Marie de Bourgogne, que representava para ele a visão do amor se
perpetuando na morte, forçava o pensamento para reconstituir o rosto da morta,
mas já o tempo fazia esmaecer a memória desse rosto. Quando, de repente, passou
por ele uma moça que fez seu coração perder uma batida pelo tanto que se
parecia com sua mulher, nas feições, no tamanho, no ritmo do seu andar e até
nos longos cabelos louros tão amados, achou que estava enlouquecendo, ou que, à
força de procurar sua lembrança, suas retinas a viam na figura alheia. E desse
dia em diante, para sua confusão, quando se lembrava da morta era a
desconhecida da véspera que via. E com toda a clareza, sem mais fazer esforço.
A composição das duas imagens na sua alma tinha agora uma força de vida que lhe
dava a ilusão de uma presença real do amor perdido.
Começou a olhar
em volta, durante seus passeios, até que deu de novo com a moça, seguiu-a ainda
absorto nas suas lembranças, e viu-a entrar no teatro (levavam uma ópera de
grande sucesso na época, Robert le Diable, de Meyerbeer – com um dueto da qual, aliás,
Alphonse Daudet faz graça no seu romance mais famoso ao apresentar aos leitores
Tartarin de Tarascon, um de meus heróis de infância), e, apesar de que desde
que enviuvara não tinha aguentado voltar a ouvir música, comprou um bilhete,
entrou e sentou-se. Mas procurou-a em vão na audiência, até que, ao final da
peça, viu-a... entrar em cena, como uma das bailarinas do coro que entrava em
cena no último ato. Fascinado, não via nela a dançarina, mas a sua morta
querida, saída do sepulcro, que lhe estendia os braços lá no palco...
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Bruges - Teatro da Cidade (imagem Visitbruges.be) |
Nos dias
seguintes, informou-se do seu nome, Jane Scott, e de que ela morava em Lille,
na França vizinha, a pouco mais de duas horas por trem, de onde vinha nos dias
das representações da ópera.
Uma noite,
tomou coragem e abordou a moça, que para aumentar sua confusão tinha uma voz
igual à da sua morta. Voltou a abordá-la e a conversar com ela outras vezes, mas
fora do teatro, porque para manter a ilusão preferia vê-la com suas sóbrias
vestimentas em vez de com a maquiagem, os braços nus e as lentejoulas de cena.
Como se pode
imaginar, com o passar dos dias e dos encontros uma atração diferente foi
tomando conta dele e nosso viúvo começou, quando via e ouvia aquela em cuja
imagem imaginava a morta, a sentir falta dos abraços, dos beijos, da intimidade
perdida. E, para encurtar a conversa, terminaram por tornar-se amantes.
Primeiro no
quarto do hotel onde ela se hospedava, depois numa casa que ele alugou para ela
nos arredores da cidade. Fez com que ela deixasse o teatro. E, quando estavam
juntos, procurava nos carinhos e nos gestos encontrar a sua ausente.
Mas Jane,
que não sabia o que se passava, não compreendia o seu comportamento, diferente
do dos outros homens. Sua insistência no modo de vestir, em não deixar os
cabelos pintados de louro voltarem à sua cor natural, no seu ar triste mesmo
nos momentos mais íntimos.
E no entanto
Hugues estava feliz; a semelhança o fazia esquecer a dor, a própria cidade
parecia menos triste, o tocar dos sinos, antes tão sombrio, já não parecia que
tinha a ver com ele. A cidade cinzenta, dos canais imóveis entre as pedras
antigas, do céu do norte, que gradativamente tornava as almas do seu povo
também cinzentas e tristes, escolhida por ele porque se parecia tanto com sua
melancolia, parecia ter se esquecido dele. Mas por seu lado ele se esqueceu de
que Bruges, cidade antiga e conservadora, era também uma cidade pequena, e
quando a ligação daquele senhor antes austero e de luto com uma dançarina, que
todos sabiam quem era, inevitavelmente se tornou conhecida, logo se tornou a
fofoca da cidade. E só a sua velha e fiel empregada, inquieta porque ele
muitas vezes agora faltava ao jantar (coisa inédita até então), ainda não sabia
do caso do patrão.
Hugues
continuava a cultuar a morta toda manhã, ao ver nas salas fechadas os retratos,
os objetos, os móveis, e mais do que tudo a trança dourada, mas agora era a
semelhança da outra que ele via sem perceber. A trança intocada desde que fora
colocada na caixa de cristal, relíquia preciosa que podia apenas contemplar. E
depois – ia procurar Jane, como se fosse a última estação do seu culto, que
trazia de novo à vida todas as lembranças. Mas nunca, em ocasião alguma, tinha falado
à amante da mulher e de sua história, e menos ainda querido levá-la até sua
casa.
Mas a
internalização da semelhança o levou, um dia, a querer vê-la mais igual ainda à
morta, e assim escolheu dois dos vestidos até aquele dia guardados em sua casa,
embalou-os cuidadosamente e levou-os
para ela de presente. E, para sua surpresa, Jane (que não sabia da sua origem)
os achou antigos, fora de moda, feios, pensou que ele estava zombando dela e
disse isso sem papas na língua.
Perplexo,
Hugues tentou persuadi-la a vestir ao menos um dos vestidos, querendo ver,
confirmar a semelhança que existia em sua lembrança. Depois de muito insistir
Jane vestiu um deles, zombando, dançando e levantando a saia para se ver
melhor. E a semelhança naquele momento lhe pareceu farsesca, e viu nela a morta
aviltada.
Algum tempo
depois Hugues deu a Barbe um dia e uma noite de folga, que ela aproveitou para
visitar uma parenta que vivia na Beguinaria (as beguinas eram mulheres,
geralmente solteiras ou viúvas, que não eram monjas mas escolhiam morar em
conventos, algo parecido com as oblatas de hoje mas com regras menos rígidas.
Hoje esse convento é ocupado pelas monjas beneditinas).
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Vue du Béguinage depuis le Sud - Bruno de Simpel (1886) |
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Prédio central da Beguinaria (fotografia de Marc Ryckaert) |
Mas toda a
sua alegria se dissipou quando, após o jantar, sua parenta chamou-a em
particular e contou as novidades sobre Hugues, dizendo que ela agora deveria
deixar o emprego, que, na visão rígida da época, se tornara incompatível com uma mulher
honesta.
Confusa e
inconformada, triste por ter que deixar um emprego que era sua última esperança
de poupar o dinheiro necessário para, na velhice que se aproximava, poder se juntar às beguinas,
ao sair dali no dia seguinte foi procurar seu confessor, na igreja de
Notre-Dame, que após ouvi-la, conhecendo a virtude da serva, lhe disse que,
embora o patrão fosse sem dúvida culpado, quanto a ela deveria pensar que,
enquanto os encontros dele fossem fora de casa e aquela “mulher de má vida”,
nas suas palavras, não pusesse os pés na residência onde ela trabalhava, podia
continuar ali sem medo, mas se algum dia a amante entrasse no lar a empregada
não poderia mais, ficando, se tornar cúmplice do pecado.
Enquanto
isso Hugues, que, todo envolvido, não sonhava que seu affair fosse do
conhecimento geral, e que a cidade toda sabia e comentava para onde o levavam
suas saídas vespertinas, sentia uma grande desilusão. A tentativa de combinar a
visão da viva com a lembrança da morta tinha, ao contrário, feito diminuir a
semelhança entre elas. E, sem perceber que era o seu modo de olhá-la que tinha
mudado, punha a culpa em Jane por estar diferente.
À medida em
que a intimidade revelava as maneiras mais livres da amante, uma vivacidade
vinda da atriz, uma maneira mais descuidada de se vestir e se portar em casa, a
distinção e a reserva natural de Hugues se ofendiam. Ao mesmo tempo em que
bebia o som amado de sua voz, se entristecia com as palavras que ouvia...
E Jane,
cansada de seu mau humor, chegava tarde, preferindo passear pelas lojas do que
voltar para casa. Hugues passou então a variar a hora de suas visitas, mas
muitas vezes não a encontrava. E retomava então seus passeios pela cidade, sem
rumo, e a cidade novamente se fazia para ele cinzenta, ah, tão cinzenta e
triste...
Acabava
voltando, sem sentir, ao cais do Rosário, deixando para ir ver a amante mais à
noite. Em pouco tempo, porém, voltava a vontade de vê-la e lá ia ele de novo.
Até que o cinzento da tardinha e o frio da garoa invadiam sua alma e o levavam
de volta à dor da perda da mulher. Então, a alma cinzenta como a cidade ao cair da
noite e triste como o soar dos velhos sinos, arrepiava carreira mas não
conseguia voltar para casa, com medo da solidão e das lembranças.
Errava pela
cidade, seus pensamentos se tornando tão cinzentos como ela, os olhos se
elevando para as torres das igrejas chamados pelos sinos, querendo em vão se
elevar como elas mas preso à terra, sentia-o agora, como se o seu pecado o
acorrentasse à morte e ao diabo.
Não há como
resenhar, aqui, o profundo simbolismo com que o autor descreve ao longo de toda a obra as mudanças na
alma da personagem. Nem quão bem ele mostra como a personalidade, a alma mesma
das cidades conforma a dos moradores: “nós
entramos nelas, enquanto elas penetram em nós... Toda cidade é um estado de
alma”. É preciso ler o livro, deixar que, como as cidades, ele entre em
nossas almas para compreender.
O que mais deprimia
Hugues eram os sinos, muitos, ininterruptos, como um ofício dos mortos
incessante. Ele voltava ao seu antigo costume de parar nas igrejas,
principalmente a de Saint-Sauveur, com a sua tristeza sepulcral que nem as
muitas e belas obras de arte que a ornavam podiam espantar. E sonhava com a
morte enquanto se ajoelhava para rezar.
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Bruges - Catedral de Saint Sauveur (imagem Wikipedia.fr - CC) |
Um dia,
ouvindo lá o sermão do padre, ele se convenceu definitivamente que o seu pecado
o separaria para sempre da morta amada, que a morte eternizaria a ausência que
ele pensara temporária. Desse dia em
diante, a ideia do seu pecado o apunhalava. Mas assim também o torturava a de
deixar Jane e voltar à solidão.
E o tempo todo a cidade
e os seus sinos o admoestavam e o pressionavam. Como se estivessem, visíveis e
sensíveis, rodeando-o e insistindo.
Para ele,
cada vez mais, a lembrança da morta se dissociava da visão da amante. Já
detestava, sem conseguir dissuadi-la, a maquiagem de cena que ela voltava a
usar, tão diferente da morta; as discussões, inauditas nos tempos do casamento,
as contas trazidas pelos fornecedores das compras de roupas e jóias que ela
fazia a crédito, valendo-se do bom nome do amante.
Jane agora
começava a sair para visitar amigas (velhas amizades retomadas, assim pelo
menos dizia), uma vez até viajou por dias para visitar uma irmã doente em Lille
de que nunca falara a Hugues.
As suspeitas
que inevitavelmente afloraram nele acabaram se confirmando com as cartas
anônimas, com acusações, com provas, que foram se avolumando em sua caixa de
correio com toda a maledicência de uma cidade provinciana.
Para Hugues,
chegava. Era como se a morta morresse de novo com a desilusão e o engano. E ele
foi à casa da amante, sem raiva, infinitamente triste, para terminar com ela.
Contou-lhe tudo, ante a fingida incredulidade dela mostrou-lhe todas as provas.
Mas quando
ela, com um riso cruel, furiosa, gritou que não importava que fosse verdade, e
que ela já não queria ficar ali, que ia embora, por um instante, vendo não mais
a figura da morta, mas da mulher que ele, apesar da ilusão e do engano, tinha
também amado, a ideia de voltar a ficar só, sem ninguém entre ele e o peso dos
sinos na reprovação das pedras da cidade cinzenta, desesperou-se e implorou-lhe
que ficasse...
Jane,
aventureira esperta, percebeu o poder que tinha sobre o pobre Hugues, e
imaginou que, ele sendo mais velho, em má saúde, gasto pelas tristezas,
provavelmente não viveria muito, e que ela seria uma idiota de perder a
oportunidade de conseguir uma herança que supunha de bom tamanho, porque ele
era um solitário e todos o consideravam rico.
Daí para a
frente ela moderou seus modos, tornou-se mais prudente, e quis mesmo visitar a
casa de Hugues, visita que ele nunca lhe tinha permitido, para saciar sua
curiosidade de conhecer essa vasta residência, e fazer, digamos assim, um
inventário da sua riqueza par tomar uma decisão.
Para convencê-lo
a deixar ver a casa tornou-se afetuosa, grudenta mesmo, e quis aproveitar a
ocasião que se apresentava da procissão do Santo Sangue, onde no dia da
Ascensão levavam pela cidade o relicário de ouro com um pouco do sangue de Cristo que
tinha escorrido da ferida de lança que o soldado lhe fizera na cruz, e que a
crença popular dizia que nesse dia se tornava novamente líquido; ela nunca
tinha assistido a procissão, passava longe do seu arrabalde, mas passaria bem debaixo
das janelas da casa de Hugues que davam para o cais do Rosário.
Depois de
alguma dificuldade e de muita persuasão conseguiu convencer o amante.
Na manhã do
dia santo, a velha Barbe foi logo à primeira missa, e começou seu
trabalho anual de ornamentar a casa, por dentro e por fora, para o dia de
festa. Era um dia que enchia de felicidade sua alma beata, uma ocasião de
testemunhar sua devoção em conjunto com a cidade. Mas na hora do almoço,
surpresa! O patrão a chamou e avisou que receberia uma pessoa para o jantar, e
que ela tomasse as necessárias providências.
Ora, isso
nunca tinha acontecido, a depois da primeira surpresa uma desconfiança gelou o
sangue da velha: E se fosse a tal mulher perdida de que haviam lhe falado na
Beguinaria? Abrir a casa a tal mulher, no dia em que o próprio sangue de Jesus
ia passar à porta?
Como quem
não quer nada, perguntou ao patrão quem seria a pessoa convidada, e ante sua
negativa atreveu-se a perguntar se era porventura uma senhora, porque se fosse
não poderia servir-lhe o jantar, porque seu confessor a proibira. Hugues,
estupefato, demorou a compreender quanto era ruim a reputação de Jane para que
a velha e fiel empregada tomasse uma decisão dessas, mas quando teve a certeza
do porque da recusa, disse simplesmente que ela podia ir embora naquele momento,
e que voltasse no dia seguinte para recolher suas coisas.
Barbe se
foi, e Hugue, ouvindo a porta bater, sentiu remorso e tristeza por perder de
tal maneira alguém que tinha feito parte de sua vida, e irritação ao pensar que
isso era por causa de uma mulher que já o tinha feito sofrer tanto.
E começou a
pensar no que sentiria a morta com a chegada, ao lar ainda cheio dela, da
outra...
Jane chegou,
brusca, imperiosa. Subiu com ele ao quarto, e ouvindo a música da procissão que
se aproximava, abriu as cortinas para ver, contra a vontade do dono da casa, que tinha
medo do escândalo. As pessoas na rua olharam para ela, e Hugues, perdendo a
paciência, fechou violentamente a cortina. Quase transparente, permitia ver o
bastante sem ser visto. Jane, amuada, sentou-se no sofá, longe da janela, e ele ficou observando a procissão, já detestando a presença da amante.
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Bruges - Procissão do Santo Sangue (cartão postal antigo) |
A
magnificência da cerimônia o distraiu, e quase se esqueceu da presença de Jane.
Mais adiante, lembrou-se dela, e, como homem distinto, contrafeito tentou fazer
as pazes, mas só recebeu de volta um olhar irritado e um riso sarcástico.
Profundamente triste voltou para a janela e continuou a olhar a procissão.
Passado o
bispo com o relicário de ouro que levava o Santo Sangue, Jane percebeu o
afastar da música e sem uma palavra colocou o chapéu se preparando para partir.
Desceu as escadas em silêncio, mas, passando pelas portas das salas, que Barbe
deixara abertas, entrou para vê-las, e examinava tudo, indiscretamente, quando
viu um retrato da morta. Não sabendo do que se tratava, pegou na moldura com ar
de chacota dizendo: “Olha, tens o retrato
de uma mulher que se parece comigo!”
Hugues, furioso,
gritou-lhe que largasse o retrato, e quando ela, sem compreender, riu de novo,
tomou-o das mãos dela, sentindo profanadas as lembranças que apenas tocava com a
maior reverência. Jane, irônica, passou à outra sala, mexendo em tudo, mudando
de lugar os bibelôs, até que se deteve com uma grande risada à frente do
precioso cofre de cristal, e, espantada e divertida, retirou de dentro a trança
dourada e sacudiu-a no ar como uma echarpe de dançarina.
Hugues
empalideceu, com aquele sacrilégio todas as desilusões, todos os sofrimentos,
todas as suspeitas reprimidas lhe vieram à cabeça e lançou-se sobre ela para
lhe tomar a trança sagrada. Mas Jane, interpretando mal seus movimentos, fugiu
por detrás da mesa, enrolando a trança no pescoço como um boá e desafiando-o a
tomá-la dela. E Hugues, correndo atrás da mulher que se esquivava rindo, perdeu
o controle, o sangue lhe subiu aos olhos, agarrou as duas pontas da trança e
puxou com toda a força, para tomá-la da profanadora. E, sem que tivesse essa intenção, estrangulou a pobre amante,
que não soubera compreender o grande mistério da sua alma.
Quando sua
visão clareou, contemplou os destroços de sua vida: Barbe o deixara, Jane jazia
morta, na sua palidez era novamente a imagem da morta como se aquela tivesse morrido
de novo...
No silêncio do
final da procissão chegou o som dos sinos, todos os sinos da cidade tocando
juntos, celebrando a volta do Santo Sangue à catedral. E Hugues ficou ali
atordoado, repetindo, na cadência do seu dobrar, “Morte...
Morte... Bruges-la-Morte...” sem saber se o som de bronze se derramava sobre uma
cidade ou sobre uma tumba.