-----------------------------------------------------------------------------------------------------------------

02/10/2019

Paixão antiga

Paul Klee - Vista de Kairouan (1914)


Ana Nunes

Hoje vou falar de paixão antiga porque fui a uma bela exposição de Paul Klee, paixão minha desde que fomos apresentados. Exposição de nome Equilíbrio Instável, bem climatizada com duas portas em cada saída e entrada, onde uma só era aberta depois de fechada a outra, para manter a temperatura.
Tivemos sorte, o Mano e eu, de chegarmos lá numa tarde de quinta feira, tudo vazio e fresquinho e escuro. Vi tudo, li quase tudo e voltei maravilhada. Celebrei com Heineken!
Lá fiquei sabendo do Paul Klee músico, filho de músicos, que com sete anos começou a tocar violino. Aos onze era membro honorário da Sociedade de Música de Berna.

Bem novinho a avó Anna Catharina, ilustradora de livros, colocou lápis e pincéis em suas mãos. O que fez surgir lindos desenhos pequenos como suas mãos. Guardados pela irmã passaram por muitas outras mãos até chegarem aqui para meu deleite. São traços delicados a lápis em pequenos formatos, cheios de detalhes e movimento. Tem almoço em família, tem carroça pioneira puxada por cavalo. Lógico, me lembrei dos netos. E amei ainda mais esses desenhos infantis. Preciosidades.

Paul Klee - Desenhos (1883 / 1885)

Com suas duas artes, e música e os desenhos e pinturas, Paul Klee se atormentou pela vida afora. Diversas vezes largou uma pela outra. E de outra vez largou as duas por um sabático pelos bares e mulheres. Vida e boemia. “...disse interiormente adeus à literatura e à música. Deixei de me esforçar para adquirir uma experiência sexual refinada neste caso particular. Praticamente não penso nas artes plásticas, só quero cultivar minha personalidade”, palavras suas escritas no seu Diários.

Paul Klee - desenho (1925) / Esboço para aula (década de 1920)

Vale a pena ler suas opiniões sobre a música, apogeu e decadência segundo ele, que não se interessava pelos novos compositores, ignorando Schönberg e seu círculo.
Num concerto conheceu a pianista Lily Stumpf com quem se casaria depois desse tempo de esbórnia(!) Com ela tocou em diversos concertos e festas e teve um filho, Felix. Por um bom período foi “dono de casa” cuidando dele e das tarefas domésticas. O que, com certeza, travou sua criação artística levando-o a um desenvolvimento tardio. Mas com Felix certamente descobriu a delicadeza e a simplicidade nos desenhos. Mas se pensarmos em infantilidade e ingenuidade nos seus trabalhos estaremos nos enganando. Por trás deles existe um homem estudado, viajado, conhecido de Seurat, Matisse, Derain, Toulouse Lautrec, Edvard Munch, James Ensor. Mais tarde Kandinsky. E Picasso e os cubistas. Admirava e reconhecia a importância de Paul Cèzanne mas não chegou a conhecê-lo. Deve ter sofrido boas e belas influências desses artistas todos porque ninguém passa incólume por essas artes admiráveis. Estudou com Macke a teoria da cor de Robert Delaunay.

Passeou pelas águas-fortes num ciclo de onze gravuras chamadas Invenções. Leves, delicadas e estranhas. Segundo li na exposição “a série reflete sua visão cética de mundo e seu desdém pelo código de conduta burguês próprio daqueles anos.”

Paul Klee - Fênix Envelhecida (1905)

No meu gosto e afeto Paul Klee ganha o mundo com suas aquarelas feitas na Tunísia.

Klee ensaiava nas cores a sua arte. Mas sabia do caráter artificial delas porque ainda não era a sua criação. A viagem ao oriente veio lhe dar essa autonomia tão desejada. No diário, mais tarde publicado, escreveu: “Fico possuído pela cor; não preciso de ir à procura dela. Ela possui-me para sempre, sei-o.”
Para mim lá ele produziu seus mais belos trabalhos, com a sobreposição de cores, transparência e leveza das aquarelas.
Numa de suas últimas obras na viagem, As Portas de Kairouan, teve a certeza de ter se tornado pintor. Segundo ele, nela conseguiu se afastar do objeto e abstrair-se dele.

Paul Klee - Ãs Portas de Kairouan (1914)




Paul Klee - No Estilo de Kairouan (1914)

Na Primeira Guerra Mundial Klee perdeu Mack, seu companheiro de viagem. Também Franz Marc, um grande amigo. Ao contrário de seus amigos perdidos serviu durante a guerra como oficial. Nesta época Klee tornou-se socialista apesar de um certo ceticismo. Falava de si como “globalmente revolucionário”. Segundo suas palavras falando do socialismo disse que não lhe “seria hostil, pois é o único movimento honesto”.
Ainda nesse período integrou a Bauhaus que reunia a antiga Escola Superior de Belas Artes e a antiga Escola das Artes Decorativas. Foi uma tentativa de agrupar os vários ramos da arte. Lá estudou seu filho Felix que mais tarde viria a se tornar diretor de ópera onde ironizava e brincava sobre a vida na Bauhaus. Klee criou fantoches maravilhosos que estavam na exposição a que fui, ricos, criativos, parecendo feitos com materiais recicláveis. Deles se utilizou Felix para essas encenações.

Paul Klee - Marionetes Para Meu Filho (1916 - 1925)

Ainda vi sua série de anjos alados muito loucos. Me pareceram influências do cubismo em suas formas fragmentadas.

Paul Klee - Anjos (1939)

Depois de Túnis, onde começou a se abstrair do objeto, foi ao Egito. Mas relatou em carta para Lily que as experiências de lá não eram tão puras quando as de Túnis.
Daí partiu para quadros muito abstratos, de linhas e quadrados coloridos. Por essas minhas bandas muitos professores e artistas beberam nessa fonte. Normal! Com certeza também eu bebi nessa fonte de água pura chamada Klee.

Paul Klee - Tapete - Caminhos Principais e Caminhos Secundários (1929)

No final de sua vida foi acometido pela esclerodermia, doença autoimune degenerativa que ataca tecidos conjuntivos, a pele e às vezes órgãos internos. Mas não abandonou sua arte. Usava pincéis com espontaneidade. “...simplificação técnica de um lúdico encantamento com o grotesco”. Certamente lúdico mas nem tão grotesco. A sua pintura Flora no Rochedo é linda de nome, de cores e de grafismos. Amo Paul Klee! Em qualquer fase onde esteve!

Paul Klee - Flora no Rochedo (1940)

Paul Klee nasceu e morreu em Berna, na Suíça, em 1879 e 1940 respectivamente.
E assim, ainda cheia de coisas por dizer, vou guardar meu livro de folhas soltas de tão folheado, rasgar minhas anotações e reler o Diários (que foi escrito na intenção de ser publicado) onde Paul Klee coloca, entre outros textos, as cartas que escreveu para Lily durante sua vida. 
Só para ficar mais perto.

Paul Klee - Ad Parnassum (1932)

Será influência do pontilhismo de Seurat?





10 comentários:

  1. Lea Mello Silva03/10/2019, 08:47

    Ana

    neste blog vou aprendendo com cada um dos participantes
    Na minha ignorância sobre Paul Klee gostei de conhecer e descobrir um pouco de sua vida e cores
    Uma aula agradável e escrita com sua sensibilidade
    Obrigada ❤️

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Olá Primaléa,
      É primavera já com as nossas avenidas cor de rosa e tapetes amarelos de florezinhas nos passeios. E assim penso sempre em Primaléa! Será sua alegria, sua delicadeza, serão suas flores na varanda? Não sei. Mas não importa. Importa que você gostou de conhecer Paul Klee.
      Beijo.

      Excluir
  2. Francisco Bendl03/10/2019, 12:48

    Aninha, minha prezada amiga,

    Desta vez caí na tua armadilha!

    Elaboraste um texto tão refinado, que não me atrevo a comentá-lo!

    Em princípio, o artigo trata de paixões antigas, que as classificamos como eternas, e guardadas no interior de nossos corações com extremo cuidado e carinho;
    Depois, aborda um tema que jamais vou me atrever a elogiar ou criticar porque não entendo absolutamente nada de artes, ainda mais sobre pintura, onde és uma especialista e artista.

    Mas, se nada sei sobre esta manifestação humana tão importante na caminhada que percorremos desde que surgimos neste planeta até o dia de hoje, a certeza que tenho comigo é que postaste mais um artigo digno dos teus elevados conhecimentos neste particular.

    Então, se não posso registrar nenhuma letra com relação ao assunto que escolheste para nos brindar com a tua cultura, teu bom gosto, com esta tua sensibilidade e inteligência que relatas as tuas emoções e sentimentos, posso, sim, escrever que mais uma vez foste impecável, brilhante, pois transformaste um assunto sobre pinturas que a mim seria enfadonho, para um artigo que aplaudo e admiro pela forma como te expressaste:
    singela, a descrição da pintura como significativa para a tua vida, e termos e expressões que se coadunam com a ênfase que empregas a uma das tuas paixões antigas.

    Vou dizer o quê?
    Vou comentar o quê?

    Aplaudo este teu trabalho; admiro como o escreveste; reverencio a pessoa que vê na arte o sublime; eu o conceituo como um ser humano muito além da minha capacidade de entender através do trabalho alheio o significado da existência.
    O artista não pinta, ele elabora um quadro da vida; nós, que não somos artistas e não os compreendemos é que somos pintores de obras inacabadas, de ilusões, onde queremos mostrar através de pinceladas desconexas a imagem do vitorioso, enquanto a realidade nos atira na cara a mediocridade de uma existência sem cores, sem brilho, sem a devida expansão que deve ter o espírito, a alma, e o que diz o coração!

    Parabéns, Aninha!

    Forte abraço, caloroso e fraterno.
    Saúde, muita saúde, Aninha, junto aos teus amados!

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Chicão, meu prezado amigo,
      Te boleei e te fiz cair na armadilha!
      E se você não sabe nada das artes coloridas como viu TANTA coisa boa de mim na postagem sobre o Klee? Ele é assim, na sua singeleza transporta a gente para a alegria, para as cores. Simples linhas e quadrados viraram mágica nas suas mãos.
      Você disse: "Aplaudo este seu trabalho...reverencio a pessoa que vê na arte o sublime." Não é assim você com a ópera? E com as músicas de todos os tempos?
      Somos todos seres à milanesa nessa farinha do mesmo saco. (Quase bife preferido...)
      Saúde. Muita.
      Um abraço caloroso. E muito respeitoso!
      Até mais.

      Excluir
  3. Flávio José Bortolotto03/10/2019, 18:49

    Prezada Autora Sra. ANA NUNES,

    Muito interessante a sua visão sobre a Arte da Pintura de PAUL KLEE, Artista Alemão que viveu quase toda vida na Suíça, e que é um dos seus preferidos, principalmente no uso das cores.

    É impressionante que PAUL KLEE tendo visitado boa parte do Mediterrâneo, local de muitas luzes, ele tenha tido o maior insight de cores na Tunísia, Terra da antiga Cartago. A História tem suas influências.

    Googlei e aprendi que PAUL KLEE, Músico e Pintor, tinha o desejo de associar cada nota musical a uma tonalidade de cor, de tal forma que seus Quadros expressassem em Cores uma melodia em Notas Musicais equivalentes.
    Acho que se não conseguiu, chegou perto.

    E a senhora também faz uma bela Arte, admirando o trabalho deste Gênio do Abstrato e principalmente das Cores.

    Parabéns junto com nossas Saudações.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Olá Flávio Bortolotto,
      É sim muito interessante essa estreita relação de Klee com as duas artes. Também, iniciado que foi tão criança pelos pais músicos e a avó ilustradora!
      E ele sempre ficou indeciso entre as duas. Quando jovem, pelas minhas pesquisas, ele se decidiu pelas imagens um pouco para contradizer os pais que o queriam músico. Ganhamos nós pelos seus dons e indecisão.
      Obrigada pelo comentário.
      E pela gentileza do "nossas saudações".
      Até mais.

      Excluir
  4. Olá Moacir,
    So sorry!
    Invadi sua praia onde você nada muito melhor do que eu. É que fiquei assanhada com Paul Klee. E velhinha assanhada é obra de Satã. Rsrsrs. Só falando sobre ele para ter um apaziguamento.
    Esse maravilhoso peixe dourado, conhecido mundo afora, é da fase em que Paul Klee descobriu a pintura escura, as tintas pretas. Ia escrever sobre isso mas o texto estava ficando grande e muito cheio de imagens. Mas como você bem sabe e deve sofrer na hora da seleção, não dá para falar de arte sem mostrá-la.
    E essa maravilha Death and Fire de que você poeta maravilhosamente é da fase final, a mesma da Flora no rochedo, quando ele já estava bem doente. Irreconhecível se olharmos fotos. A Fatal Senhora já se fazia anunciar.
    Belas palavras suas de que nada resta de Hitler (será mesmo?) enquanto Paul Klee sobreviveu em folhas de música e aquarelas.
    Fiquei sabendo que na exposição estão levando crianças de escola e tentando fazê-las perceber a relação música e imagem nos trabalhos. Levam também crianças bem novas, de jardim. A neta de uma amiga foi. E gostou!
    Por favor, vá depressa ao Zentrum e me conte tudo, não me esconda nada!
    Estou esperando muito mesmo essa franquia dos antepassados. Que já antecipavam o Pontilhismo. E por esperar muito (há mais ou menos uns 25 anos que te pedi ) vou invadir de novo seus domínios e escrever sobre Morandi. Outra paixão minha. Como o Klee ele é inclassificável. Não há rótulo que o rotule.
    Obrigada pelo comentário.
    Até sempre mais.

    ResponderExcluir
  5. 1)Gostei da fotos, dos desenhos e demais técnicas do Paul Klee.

    2) Gostei tb do texto da Ana, uma artista falando das artes de outro artista.

    3) Lucram os leitores. Parabéns.

    4) Parabenizo tb o blog que aproxima-se de meio milhão de visitas.

    ResponderExcluir
  6. Antonio,
    Muito obrigada pelo comentário tão gentil!
    Com tanta visita, não é que deu certo? Parabéns a vocês colaboradores!
    Até mais.

    ResponderExcluir
  7. Foi mesmo uma bela exposição, e um post melhor ainda.
    Gostei muito de ter ido lá com você.

    ResponderExcluir

Para comentar, por favor escolha a opção "Nome / URL" e entre com seu nome.
A URL pode ser deixada em branco.
Comentários anônimos não serão exibidos.