fotografia Moacir Pimentel |
Moacir Pimentel
O edifício London Bridge
Tower - Torre da Ponte de
Londres - é, por enquanto, o arranha-céu
mais alto da União Europeia com
seus trezentos e dez metros de altura e oitenta e sete andares. O prédio, de forma triangular e inteiramente
revestido de vidro, foi projetado pelo arquiteto Renzo Piano e concluído em 2012. Logo os londrinos apelidaram-no de “Shard of Glass” – ou Estilhaço de Vidro
- porque é com um caco de vidro que ele realmente se parece. Há seis anos essa
estranha pirâmide se ergue brilhante em Southwark, a ribeira sul do Rio Tâmisa,
oferecendo aos londrinos e aos visitantes estupendas e longas vistas.
Nós visitamos essa maravilha arquitetônica em um dia frio de dezembro,
cujo céu não estava particulamente azul, mas mesmo com as nuvens cortando o
nosso barato a visão panorâmica da cidade de Londres e das terras circundantes
foi de tirar o fôlego. Lembro que ao sair do elevador, no sexagésimo nono
andar, continuei andando de um lado para o outro, por um tempo, tentando
processar a paisagem através dos painéis de vidro , antes de pegar minha câmera e começar a clicar (rsrs)
O mirante do edifício, conhecido como The View - A Vista! - se tornou, ao lado da Roda Gigante e dos
arranha-céus Gherkin e Walkie Talkie, um dos melhores lugares para se ver Londres das
alturas, em trezentos e sessenta graus.
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Helene Hannf, com certeza, não pôde ver a sua amada Londres assim, do
alto, e a essa altura da “franquia” já sabemos que as Londres antiga e a
moderna estão literalmente lado a lado e que não se pode mais nem imaginar nem
vivenciar uma sem a outra.
Tenho um grande e antigo encanto pela velha Ponte da Torre, que não me
canso de fotografar. Simplesmente gosto de saber que ela está bem ali, desde
que a sua primeira versão foi erguida pelos romanos cinquenta anos após o
Cristo. Já nos tempos do prezado Shakespeare a Ponte era um próspero
shopping center, habitada por mais de uma centena de predinhos, muitos com
lojas no piso térreo e lares no primeiro andar e até mesmo por um palacete de
quatro andares de nome “Nonesuch House”
assim chamado porque não havia mesmo “nada
como aquela casa” em toda a Europa, nem outra ponte parecida sobre outro
rio no vasto mundo.
Londres é uma visão de rara beleza, principalmente quando no inverno,
por volta das quatro da tarde, começa a anoitecer. A dica é esperar pelo
crepúsculo quando a cidade se ilumina e então a gente se lembra dos versos de John
Keats na abertura do seu longo poema Endymion.
“O que é belo há de ser eternamente
Uma alegria, e há de seguir presente.
Não morre; onde quer que a vida breve
Nos leve, há de nos dar um sono leve,
Cheio de sonhos e de calmo alento”.
Não sei quantas vezes assistimos ao por do sol sobre as muitas pontes ou
das margens do rio, ou das suas águas em barcos e ferries indo e vindo de
Greenwich, ou da London Eye, ou do alto de outros prédios de apelidos
carinhosos como o One New Change – “Uma Nova Mudança” (rsrs) – esse bem ao lado da
Catedral de São Paulo.
Não importa onde eu esteja perto do Tâmisa sempre persigo a danada da
ponte com os olhos e a fotografo compulsivamente. Admito que naquelas paragens
às vezes sou acometido por uma profunda antipatia por bobices modernosas e que
fico um tanto impaciente quando não estou do lado de fora, ao ar livre,
flertando e clicando adoidado o horizonte, as pontes, os anoiteceres de uma das
cidades mais apaixonantes do mundo.
Mas enquanto o horizonte, especialmente ao longo das margens do rio,
está passando por uma grande transformação, alguns pedaços da cidade continuam
como os vi pela primeira vez, nos anos oitenta. Aliás as chaminés, os imensos parques, os palácios são como eram há quinhentos anos quando pertenciam a Henrique
VIII e, de quebra, as ribeiras do rio ainda oferecem bares históricos para se
tomar um conhaque quando bate o vento.
O fato é que, desde ícones antigos como a Torre e a Ponte e recantos
obsoletos e desconhecidos que fotografo durante meus passeios a pé pelo
labirinto de becos tortuosos nos quais os avanços da moderna Londres ainda não
penetraram, até fenômenos mais recentes como a Adele (rsrs) pense em uma cidade
intrigante, de contrastes, de esquinas diversas, de arquitetura de cair o
queixo e de bairros charmosos e pacíficos como Notting Hill e Camden.
Aprecio especialmente as longas vistas a partir de Hampstead Heath, que
dizem ter influenciado C.S. Lewis ao escrever As Crônicas de Nárnia com suas
centenas de hectares de charnecas e bosques, locais para piqueniques e
ciclovias. O bairro é tão tranquilo que nem parece fazer parte de Londres e os
seus belos edifícios antigos são sempre usados como pano de fundo para filmes
de Hollywood, incluindo Les Miserables.
Também não posso deixar de mencionar Highgate e não apenas por ser um fã
da arte mortuária e porque o seu cemitério, do qual Karl Marx é um dos
residentes, é um dos mais vastos e fascinantes do mundo, mas por suas ruas
arborizadas e atraentes casas georgianas e pubs amigáveis.
O sistema de transporte público torna tudo em Londres de fácil acesso
apesar dos atrasos no metrô (rsrs) Tudo bem que as gigantescas multidões na
Oxford Street parecem estar indo sempre na direção oposta à nossa e que os
restaurantes no Soho estão sempre lotados, mas as infinitas opções de comida
deixam qualquer um tonto tendo todas as cozinhas do mundo como possibilidades
para o jantar. Ninguém é capaz de ficar entediado em uma cidade que oferece uma
tal gama de atividades culturais e atrações intermináveis e que é sempre magnífica quando vista d’ água.
Gosto da cidade exatamente porque é tradicional mas vanguardista,
impetuosa mas romântica, materialista mas poética e, acima de tudo,
perversamente irreverente. E porque é muito bom ir de barco pelo rio até
Greenwich no inverno, quando ela é invadida por aquela luz cinzenta peculiar.
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É bem bom embarcar em um trem para um dia preguiçoso em Bath, Oxford,
Cambridge, Brighton ou Windsor. É impossível não se divertir nos mercados de
rua de Portobello e Camden - com direito a peixe e a batatas fritos - e nos
parques reais. Londres, na verdade, tem mais espaços verdes e parques do que
qualquer outra grande cidade do mundo, garantindo aos seus habitantes e
visitantes retalhos do campo e uma fuga da vida da cidade sem ter que sair dela
fisicamente. Como explicar a benção que é poder desfrutar de segurança e
acessibilidade para explorar a cidade e vizinhanças a pé enquanto se absorve a
energia que irradia da arquitetura arrojada e a nostalgia contida nos marcos clássicos,
a atmosfera, o caráter e a história de suas áreas distintas?
fotografia Moacir Pimentel |
Mas, pedindo vênia a Dona Arquitetura e aos aço e vidro contemporâneos,
tenho um afeto especial pelos pátios escondidos e anônimos que mudaram muito
pouco desde dias esquecidos, pelas paisagens surpreendentes que me aparecem de
repente pela frente como cápsulas do tempo de paredes desgastadas e onde quase
se escuta, ao cruzar seus limiares, o murmúrio das conversas que ali rolaram
através dos séculos...
E pelas inúmeras e famosas colinas – os “hills” – que circundam a cidade como a do Traidor, por exemplo, de
onde os conspiradores da famosa e frustada Conjuração da Pólvora pretendiam ver,
de camarote, o Parlamento explodir. Especialmente notáveis são os horizontes
que se descortina do alto da colina Muswell, ao norte da cidade, a partir do seu
parque e, bem no seu coração, do Palácio de Alexandra – que os nativos chamam
de “Ally Pally” - onde rolam os festivais de hard rock no verão. Apesar do
barulho e das multidões ainda assim é muito bom ver Londres inteirinha
estendida a nossos pés, faça chuva ou faça sol, frio ou calor.
fotografia Moacir Pimentel |
Em lugares assim, mais serenos, ainda tem passarinho piando. E falando
em som, Londres tem uma paisagem musical e, ao flanar pelas suas esquinas, se
pode reviver a trilha sonora de toda uma vida desde, é claro, “London Calling” do
Clash até a Adele cantando maravilhosamente “Home Town Glory”.
Quando atravesso a Ponte Waterloo, por exemplo, a canção do Kinks explode
na minha cabeça - “Waterloo Sunset’s Fine”
- logo abafada pelos Rolling Stones berrando em Picadilly Circus “I Can’t Get No Satisfaction”. E
flanando da Londres romana para a shakespeariana e dela para a vitoriana de
Charles Dickens, of course que se chega à dos Beatles de quem sou fã de carteirinha:
yeah, yeah, yeah!
Bem, todos sabemos como é o amor. Começa com fogos de artifício, muitos aaahs
e ooohs e uis, luxúria e paixão. Depois, se tivermos sorte, esse sentimento
permanece para sempre embora apaziguado como acontece com o meu caso sério
londrino (rsrs)
O certo é que, se caminho na direção de Primrose Hill, a minha mente
assovia “The Fool on the Hill” -
that’s me! - do álbum Magical Mystery Tour. Como estar em Londres e não lembrar
da capa daquele LP dos Beatles que mostra os ídolos da nossa meninice/juventude
naquele cruzamento zebrado do lado de fora dos estúdios da Abbey Road?
fotografia Iain MacMillan |
Frank Doel, o herói do filme 84,
Charing Cross Road, no final da década de sessenta escreveu para a
escritora Helene Hannf:
“Tivemos um verão agradável com mais do que o número usual de turistas,
incluindo hordas de jovens fazendo peregrinação a Carnaby Street. Observamos
tudo de uma distância segura e, embora eu deva dizer que gosto muito dos
Beatles, que bom seria se seus fãs não gritassem tanto.” (rsrs)
Mas como fazer um fã aborrecente não “Twist and Shout” e quem esquece aquele momento que mudou a vida,
quando... “I Saw Her Standing There”?
Tudo bem que como o Bruce e o Paul todos nós somos “velhinhos em
formação” mas, ao fim e ao cabo, as bandas inglesas da minha vida – The Beatles,
The Rolling Stones, Pink Floyd, Led Zeppelin, Queen, Dire
Straits e, é claro, Sir Elton
John se transformaram na música de meus filhos. E em junho de 2005 , no Twickenham Stadium, durante o show
do U2 que assistimos juntos, o som deles se transformou no meu.
Até mesmo o Caetano, quando o pau quebrou nos anos setenta, homenageou a
capital inglesa com a sua “London, London”:
“While my eyes go looking for flying
saucers in the sky”....
fotografia Moacir Pimentel |
Só que, paradoxalmente, a Londres das cápsulas voadoras da London Eye
com seus estilhaços e colmeias de vidro e aço continua sendo aquela da Helene,
que foi palco para a vida e o trabalho de alguns dos maiores escritores,
dramaturgos e poetas da humanidade.
Apesar de ter tentado lhes mostrar a Londres dela percebo que terminei
escrevendo mais sobre a minha. Talvez porque traduzir Helene não seja tarefa
fácil, mesmo vendo o filme e lendo o livrinho 84, Charing Cross Road várias vezes e acompanhando as suas andanças
pela cidade, onde finalmente conseguiu chegar após ter experimentado o gostinho
do sucesso e recebido “um gordo cheque da
Reader’s Digest”. Devo confessar que, para mim, Helene Hannf permanece
maravilhosamente misteriosa como os túneis outrora usados pelos Cavaleiros
Templários medievais perto da Fleet Street ou as sombras da noite em
Westminster.
Finalizo citando alguns dos quatrocentos versos do
longo poema A Terra Desolada, da lavra do americano naturalizado inglês T. S.
Eliot que a Helene apreciava e que talvez tenha iniciado o modernismo na
palavra escrita, fazendo um sumário do pensamento daquela “geração perdida” de
escritores como Ernest Hemingway e Francis Scott Fitzgerald...
“E vou mostrar-te algo distinto
De tua sombra a caminhar atrás de ti
quando amanhece
Ou de tua sombra vespertina ao teu encontro se elevando.”
Será? Talvez, numa próxima franquia, se você ainda não tiver se cansado
de ler...