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21/11/2019

Perguntas íntimas

imagem www.flickr.com/photos/30343551@N00/27630934808


Heraldo Palmeira

Eu pensei na solidão dos bares que a gente frequenta em busca de se livrar da solidão que nos atormenta em qualquer lugar.
Eu pensei nos tragos que vão sumindo dos copos sem destino certo, que nos elevam em voos incertos, insetos trôpegos atraídos pela lâmpada do meio da rua – não, não é a Lua, a gente descobre na ressaca do dia seguinte.
Eu pensei que você estava tão longe! Lembrei que falou do frio que fazia nos cantos da Holanda que passavam por aqueles seus dias. Lembrei das estrelas que não deviam estar no seu céu de inverno e que também não estavam no meu. Eu lembrei que você disse que gostaria de morar ali, comigo.
Senti falta da Lua, aquela bem grande, redonda, plena, esplêndida, companheira das noites de verão que nos levava à rua para olhar aquela dança, ela nua atravessando o céu do fim da tarde até a madrugada. As nossas almas nuas. A sedução refletida nos seus olhos e nos meus, portas escancaradas para todos os arrepios destemidos, estrada sem desvios, sem trânsito retido. Autoestrada de tudo que resolvemos deixar seguir.
Eu pensei em tanta coisa que não pensava pensar, na saudade de estar perto sem poder me aproximar. Ainda bem que falamos dos nossos medos, ainda bem que deu tempo escapar deles!
Eu ouvi as mesmas músicas que sempre me viram do avesso... Ouvi só para me endireitar, me acalmar, me fazer doer o peito de arrependimento de escutar, porque, nota a nota tocada, aumentava a tristeza de saber que iriam terminar em pouco tempo, parar naquele silêncio que diz tanto de tudo. Fechei os olhos, resignado.
Escapamos do quase fim porque, quase perdidos, pusemos a música para tocar de novo e prometemos ajustar a partitura. Que bom que não desistimos na primeira vontade de desistir. Que bom que ficamos parados na certeza de não ir. Que bom que não fomos para nunca mais.
Eu lembrei do som do mar como um pescador tentado a ficar em terra firme, embora enlouquecido para seguir em frente e ser tragado pelo amor que não consegue controlar. Navegar é preciso, viver não é. Como pensamos que seria, como queremos ser?
Eu me perguntei como você estaria agora. Redundante. Certamente linda como nunca conseguiu deixar de ser, porque as belezas são belas porque são e pronto!
Eu lembrei dos nossos cheiros carregados nos corpos sedentos e marcados pelas memórias olfativas. Eu lembrei dos afetos dos cinco sentidos aguçados, dos sextos sentidos antenados, cautelosos como os felinos. Eu lembrei suavemente, como quem não esquece. Eu lembrei...
Eu me perguntei se você estaria bailarina, rodopiando levemente sobre a ponta dos pés num canto de quarto de hotel, como costumava fazer só para me matar de encanto e de desejo. Só para me chamar num canto e...
Eu me perguntei se estava lhe vendo, pequenininha, minha pequenininha, ma petite que cabia inteira no meu bote de macho protetor, nos beijos delicados de simples reconhecimento no escuro sonolento da noite alta, só para lhe dar a certeza de que eu estava ali velando seu sono. A postos para você nunca mais acordar sozinha.
Eu lembrei dos nossos corpos exaustos. Sim, eu estava ali. Eu era quem você sempre quis a vida inteira, antes mesmo de me conhecer. E eu quis estar ali a vida inteira, a ponto de aparecer quando chegou a hora certa de ser reconhecido de imediato. Sim, sua imagem era apenas o meu espelho que eu ainda não havia mirado.
Eu pensei se você voltaria luminosa para me encontrar sob a deslumbrante luz de Lisboa, verso e prosa que se escreveria para nós e para todos os amantes pois os nossos rostos teriam os traços perfeitos de quem conheceu o amor.
Eu lembrei da luz daquele abajur sobre a mesa do quarto do hotel naquele fim de tarde tão bonito, o Tejo lá no horizonte. Eram as luzes perfeitas para você deitada no chão, escultural, distraída cuidando de seus afazeres, sem saber que me despertava fazeres impublicáveis que imprimi no papel de seda de outra das nossas noites perfeitas.
Eu pensei no quanto fui feliz depois de atravessar o perigo de não chegar. Eu pensei no quanto lhe quis todo tempo e em todas as curvas vencidas até a reta ampla do amor.
Sim, nós trilhamos todas as curvas das nossas geografias perdendo mapas e limites pelo caminho. Eu nem lembrei de fronteiras, nem consegui pensar no que seria depois, apenas fui indo. Qual sentido haveria sem você?
Eu ri o riso do nosso eterno humor, provocando por provocar, só para ralhar de brincadeira, só para tirar a pagode. Eu entendi a fortuna daquilo. Eu vi naquilo uma ode à vida.
Eu ouvi os sons que nos cercavam – a aflição delicada dos bandolins mal disfarçando a intensidade do tremor; o sopro sereno das flautas como o vento nas folhas lá fora; o bálsamo da cama de violinos como uma nuvem de conforto para o sono. Era eu me despedindo, quase morto de saudade. Era a música dos bares disfarçando a solidão. Era a ausência de som que emana das estrelas. Era a luz apagando. Era o sono, era o sono. Era tudo tocando baixinho. Era tudo chegando onde sempre esteve e a gente não enxergava. Era pouso. Era repouso. Era tudo!
Pela marca que nos deixa
A ausência de som que emana das estrelas
Pela falta que nos faz
A nossa própria luz a nos orientar
É a solidão nos bares que a gente frequenta
Não me fale do seu medo
Eu conheço inteira a sua fantasia
Quando eu não estiver por perto
Canta aquela música que a gente ria
É tudo que eu cantaria
E quando eu for embora, você cantará

Trechos de:
Estrelas (Oswaldo Montenegro)


20 comentários:

  1. Francisco Bendl21/11/2019, 11:40

    Parabéns, Wilson, pelo número atingido de leitores obtido pelo blog Conversas do Mano, meio milhão de pessoas!

    Minha reverência à tua iniciativa de criar um espaço estritamente cultural, sem a indevida intromissão política, que tanta celeuma ocasiona e desnecessariamente.

    Felicito o meu amigo Mano, que hoje está orgulhoso do blog que oferece às pessoas que preferem ler bons textos, informarem-se, conhecer mais sobre artes, e se deleitarem com os relatos impressionantes das viagens de Pimentel.

    Da mesma forma quando se deparam com os artigos escritos pela Ana, invariavelmente inteligentes, sensíveis, pertinentes, adequados e pontuais.
    A nossa escritora e poetisa enaltece as mulheres, e as coloca merecidamente em patamares que os homens jamais conseguirão atingir!

    Igualmente os ensinamentos sobre Buda, conforme divulga com a propriedade de sempre o nosso amigo e professor Rocha, cujas postagens nos fazem meditar sobre o equilíbrio necessário que devemos ter sobre o nosso comportamento.

    Minha admiração pelas crônicas de Palmeira, suas lembranças, analogias, sua cultura e ser um escritor maiúsculo, que discorre como poucos sobre as imagens que permeiam seus excelentes textos.

    Finalmente, o meu apreço especial ao meu amigo Mano, meu agradecimento pelo blog extraordinário, por este oásis cultural, pelo local criado com elogiável sentido de cidadania e colaboração ao bom gosto, ao refinamento, ao conhecimento, onde descansamos a mente das atribulações diárias ao ler as variedades de temas à disposição, e para esse público fantástico, de meio milhão de leitores!

    E aplaudo esta iniciativa brilhante de maneira efusiva porque propicia que surjam amizades sólidas, verdadeiras, mesmo que as pessoas jamais tenham se visto pessoalmente, que tenham trocado cumprimentos, que tenham sequer conversado, a não ser através da obra de cada um, e os comentários referentes às postagens, onde os frequentadores do Conversas do Mano registram seus pareceres sobre o que leram.

    Parabéns ao importante e extraordinário blog, Mano, diante desse número mágico de leitores que prestigiam merecidamente o teu trabalho.

    Um forte abraço.
    Saúde e vida longa, meu caro.

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    1. Heraldo Palmeira21/11/2019, 15:10

      Bendl,
      Obrigado pelo comentário generoso, em meio à essa justa homenagem ao nosso editor.

      Alcançar meio milhão de acessos é mesmo algo a ser registrado com todos os louvores numa terra em que ler é quase um insulto. Obrigado é o mínimo que podemos dizer ao Mano por esse seu relevante ato de cidadania. Particularmente, agradeço pela honra de ter me sido permitido embarcar neste Conversas. Abração.

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  2. Léa Mello Silva21/11/2019, 17:17

    E o Heraldo Palmeira está de volta !
    Senti falta de vc que é um poeta sensível e leio com prazer seus textos complementados pelas letras das músicas
    Como disse o Francisco, um oásis este blog
    Nunca deixo de ler cada um de vcs
    Mano está de parabéns !
    Um abraço amigo a todos !

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    1. Heraldo Palmeira21/11/2019, 22:11

      Léa,
      Sim, voltei sem nunca ter saído. Na verdade, as correrias da vida sempre nos levando num ritmo que parece ganhar vida própria e não controlamos. Agora, a calmaria do fim do ano já me bate à porta, tempo de escrever. Obrigado por sua leitura.

      Sim, estamos todos em festa com esse meio milhão que é muito mais, já que é impossível contar qualquer coisa neste mundo digital, sempre com suas progressões geométricas. E Mano de parabéns superlativo por juntar gente que gosta de gente. E de ler. E de conversar. Abraços a todos.

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  3. Flávio José Bortolotto21/11/2019, 19:50

    Prezado Autor Sr. HERALDO PALMEIRA,

    Belíssimo "Perguntas Íntimas", no qual o Poeta e Escritor Sr. HERALDO PALMEIRA faz o elogio da Companheira, amiga, bonita e sedutora.

    Temos aqui um mini "Cântico dos Cânticos" escrito de forma perfeita pelo Sr. HERALDO PALMEIRA.

    Abração.

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    1. Heraldo Palmeira21/11/2019, 22:14

      Flávio,
      Obrigado pela leitura e por palavras tão superlativas para este meu rascunho. Claro que não há nele nenhuma grandeza bíblica, apenas a fantasia de uma alma observadora, que tenta tirar do vento as histórias que correm por aí. Abração.

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  4. Marcos Seignemartin21/11/2019, 23:21

    Heraldo, a quem posso chamar de amigo. Lindo e poético texto. Leitura gostosa e fácil. Saudades de vc!

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    1. Heraldo Palmeira22/11/2019, 22:34

      Meu velho,
      Obrigado, saudade e amizade recíprocas. E apareça aqui em Sampa, estou por aqui. Abração.

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  5. Heraldo Pereira, parabéns pelo belo e profundo relato de alma, feliz por demonstrar e fazernos sentir, a grandeza da via de mão dupla do Amor.
    esquecido por tantos...
    Realmente, muito sensível!

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    1. Heraldo Palmeira22/11/2019, 22:37

      Marilia,
      Olhar para os lados nos ensina a enxergar a vida. Este é o papel que assumo a escrever sobre o cotidiano. Gosto quando o tema entra nos mistérios dos afetos, do amor, tão necessários nestes tempos. Abraço.

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  6. Moacir Pimentel22/11/2019, 08:26

    Mestre Heraldo,
    No momento em que o Blog comemora meio milhão de leituras, começo pedindo-lhe licença para deixar aqui registrado os parabéns e um recado para o "Mano" que dessa longa estrada deu o primeiro passo:
    "Caminante son tus huellas el camino y nada más
    Caminante, no hay camino se hace camino al andar"
    E prossigo confessando que não sei se nessa sua belíssima crônica você nos fala da sua jornada ou da sua fantasia, se foi "buscar no vento" uma estória ou se está nos narrando a história de "tudo que resolveram deixar seguir", se é prosa ou poesia. Mas sei que é muito bom ler de novo as artes da sua BI , que a saudade mais dolorosa é a aquela do que não foi e que quem escreve como você não deveria nunca ter saudades do que deixou de escrever.
    Abração

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    1. Heraldo Palmeira22/11/2019, 22:48

      Caríssimo,
      Todas as mesuras ao Mano e suas (nossas) Conversas são mais do que obrigatórias. Este espaço é um monumento que ele ergueu às pretinhas com as quais cavoucamos a alma e todos os sentidos. E agradeço pela sua culpa de ter me dado o ingresso para eu vir parar aqui.

      Sempre grato pela sua honrosa leitura, e despreocupado em explicar se é jornada ou fantasia - deixo a critério do sentimento do leitor - vou me valer do artista Caetano Veloso: "todas as minhas músicas são autobiográficas; até as que não são, são".

      E seguirei sempre operário destes rascunhos que me chegam de algum lugar invisível, que me aproprio sabendo que há de terem um Dono, alguém generoso que me permite gastar a tinta da minha BiC Cristal azul. Que assim seja! Abração.

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  7. Olá Heraldo,
    Nem sei o que dizer. Qualquer dito seria pouco.
    Você faz um acordo entre as palavras e os sentimentos que é pura, pura poesia!
    Você é poeta de Acari, de Sampa e do mundo.
    Maravilhei-me.
    Obrigada muito por esse encantamento.
    Até muito mais. Não suma nunca!

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    1. Heraldo Palmeira22/11/2019, 22:55

      Ana,
      Não há nada a dizer. Você é de fazer artes e bem entende que, quase sempre, o criar não tem explicação, apenas se faz. Fica, então, o dito pelo não dito.

      Tanto que não tenho o que dizer diante de "Você faz um acordo entre as palavras e os sentimentos que é pura, pura poesia!". Vale por qualquer resenha que alguém pudesse fazer, mesmo eu não merecendo resenha nenhuma.

      Eu nunca sumo, apenas resumo o tempo porque ainda há certas correrias lá fora. Passarão um dia, assim espero! Até muito mais!

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  8. 1) Parabéns Palmeira (meu time verde e branco do coração), vc jogou nas 11 posições(devem ter mais) dos amores, dos afetos, dos sentimentos...

    2)Palmeira profundo, poético, escreveu sobre Energias Primordiais - as mesmas da minha linhagem querida = Budismo Primordial.

    3) Bom fim de semana a todos (as) !

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    1. Heraldo Palmeira22/11/2019, 23:00

      Antonio,
      Obrigado. Quem me dera jogar nas onze, apenas tentei fazer uma linha de passe entre o que vi e o que deveria existir nos afetos. Abraço.

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  9. Wilson Baptista Junior23/11/2019, 10:42

    Heraldo, uma crônica (não sei bem se posso chamá-la assim) cheia de beleza. E com um parágrafo tão fundo, tão verdadeiro, que tenho certeza vai ecoar na alma de muitos dos leitores e leitoras:
    "Escapamos do quase fim porque, quase perdidos, pusemos a música para tocar de novo e prometemos ajustar a partitura. Que bom que não desistimos na primeira vontade de desistir. Que bom que ficamos parados na certeza de não ir. Que bom que não fomos para nunca mais."
    Obrigado e um abraço do Mano

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    1. Heraldo Palmeira23/11/2019, 12:21

      Mano,
      Chame como bem entender porque meus textos são assim mesmo, sem forma, sem pretensão, sem regras... Apenas são a tradução do que vejo, do que sinto, do que desejo e, às vezes, trazem pitadas do que vivi, vivo ou viverei - mesmo sem nunca ter vivido.

      Esse parágrafo que você destacou apenas comprova o que acabei de escrever e revela meu lamento de testemunhar, tantas vezes, grandes possibilidades, grandes coisas se perderem - em diversos campos da vida, não apenas no sentimental - porque as pessoas preferem agir intempestivas, pensam que dar o braço a torcer vai doer além do suportável. É pena, pois, quase sempre, nem há dor, mas apenas uma grande libertação, a chave para abrandar corações e almas, porta de entrada para tempos melhores e ótimas novidades.

      Por fim, obrigado por este Conversas e pelo espaço honroso onde posso rabiscar substantivos, verbos, adjetivos e até palavras sem sentido. Mas, acredite, tudo é sentido. Abraço.

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  10. Heraldo, nunca o li tão romântico. Tocante, encantador. Parabéns!!!

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    1. Heraldo Palmeira25/11/2019, 23:31

      Mestre querido,
      Grato pelo comentário, sempre honroso. O romantismo tornou-se um tom visível nos textos que deverão compor o livro. Resultou da observação de uma formalidade esquisita que percebi nos afetos, durante a viagem. Abraço.

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