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26/02/2020

Nossos avós, os amigos dos ursos

Capa de livro (kinga-thebooksnob.blogspot.com)


Moacir Pimentel 
Se você que está lendo esse post se perguntar por quais cargas d'água eu decidi rascunhar uma “minissérie” pré-histórica, permita-me explicar que trata-se de um interesse muito antigo. Acontece que há quarenta anos viajar sozinho com uma mochila nas costas por esse mundão a fora às vezes era uma aventura bastante solitária.
Graçasadeus nas hospedarias das grandes cidades da Ásia, que serviam de portão tanto de chegada quanto de saída para os viajantes, havia sempre um armário cheio de livros que turistas generosos deixavam para trás quando voltavam para casa. A lei não escrita da estrada era clara no sentido de que, para se pegar um deles, era necessário se colocar outro no lugar.
Para alguém que lê com a minha voracidade, aqueles livros foram uma benção. E a leitura de um deles, um paperback de quinhentas páginas sobre a Pré-História na Era Glacial, da lavra da escritora norte-americana Jean M. Auel e de nome The Clan of The Cave Bear – O Clã do Urso da Caverna - me absorveu de tal maneira por estradas indianas e nepalesas que, de volta à civilização, só sosseguei depois de ter visitado a caverna de Altamira, na Espanha, e a réplica da de Lascaux, na França. É que no comecinho dos anos oitenta sobre a Caverna de Chauvet – a última ponta do triângulo das cavernas - de nada ainda se sabia.
O fato é que aquele romance pré-histórico ambientado na Europa do Paleolítico Superior e cujo foco é a evolução da espécie humana moderna no período de sua coexistência com os humanos arcaicos, ou seja, os neandertais, bombou! Tudo bem que o livro depois virou um péssimo filme e, em seguida,  uma “franquia” chamada Earth's Children - Filhos da Terra – bem cansativa devido às constantes e longas repetições explicativas de fatos que haviam rolado nos volumes anteriores. É verdade que, gradualmente, a saga foi perdendo o charme e a força do livro original mas, mesmo assim, vendeu muitas dezenas de milhões de cópias e me tornou um ávido leitor e aprendiz do tema Pré-História.
Nessa loooonga estória a protagonista é a Ayla, uma garotinha sapiens separada de seus pais aos cinco anos devido a um terremoto que, por acaso, também destrói a caverna que servia de morada para uma tribo neandertal, o tal do Clã do Urso da Caverna. Depois da tragédia e de enterrar os seus mortos o clã viaja à procura de um novo lar e então se depara com a pequena órfã quase morta em seu caminho.
Ela é então adotada por dois poderosos membros do Clã, a curandeira Isa e o xamã Creb, irmãos do líder Brun, e passa a se esforçar para se encaixar na sua nova família para quem tudo nela era sem precedentes e que se refere à menina como uma “dos outros”.
Sim, porque a criança era física e intelectualmente mais evoluída do que as pessoas do clã neandertal. Ela era alta, magra, curiosa e tagarela. Eles eram baixos, musculosos e silenciosos pois se comunicavam através de um tipo de linguagem de sinais. Porém a maior diferença entre Ayla e sua nova tribo, pelo menos nos escritos da autora americana, era a mente: a dela uma esponja que absorvia novas informações e saberes, a deles um lento banco de dados que chamavam de “memórias”.
Ou seja, na ficção os do clã lembravam bem mais do que aprendiam pois possuíam cérebros superdimensionados para armazenar todo o conhecimento acumulado por inumeráveis gerações. Como se não bastasse tinham um rígido conjunto de papéis de gênero, incluindo regras duras quanto às mulheres do clã serem proibidas de caçar e de falar com os machos–alfa da tribo sem serem autorizadas (rsrs)
Ayla, por óbvio, diferentemente dos demais pirralhos do clã que só necessitavam aprender como “lembrar”, não possuía nenhuma dessas “memórias” inatas nem podia recordar as soluções à medida que precisa se virar ao lidar com problemas e desafios. Ela teve que aprender e aprendeu mas não se conformou com as rígidas expectativas impostas às mulheres da sua nova tribo, brutalmente patriarcal, até porque os papéis dos seus homens e mulheres eram totalmente determinados biologicamente já que eles nasciam com diferentes conjuntos de conhecimento de acordo com o gênero. Ou seja, para o clã os papéis e as normas de gênero eram imutáveis. Complicado!
Sucede que Ayla não parou de crescer até ficar muito mais alta do que o mais alto dos machos e mesmo sabendo que a pena para o crime de usar uma arma seria a expulsão da tribo – ou seja, a morte! - treinou escondido até que dominou o uso de uma funda e passou a caçar predadores e animais de pequeno porte e se tornou provedora.
É que a garotinha não tinha as limitações biológicas das mulheres neandertais e, portanto, quando lhe era dito que não podia fazer isso ou aquilo, simplesmente dava de ombros, ia em frente de qualquer maneira e fazia o que bem entendia melhor do que os homens. Em última análise a autora da ficção insinua que a capacidade da Ayla de aprender a fazer o trabalho de mulheres e homens foi fundamental para sua própria sobrevivência e segurança e a chave tanto para a evolução da humanidade quanto para a extinção dos neandertais.
O resumo da ópera é que a garota percebe que o clã, opressivo e incapaz de mudar, está condenado e apesar de seu compromisso com as pessoas que a criaram começa a se perguntar se existe uma maneira alternativa de viver. Ao ser finalmente expulsa da tribo pelo novo líder, o impetuoso e agressivo Broud, ela decide empreender uma jornada para encontrar “os outros”, os da sua própria espécie e deixar de ser o que havia sido desde menina: diferente. E então mesmo que o romance inaugural da série termine com a moça rejeitada e sozinha, entendemos que ela ficará bem. E entendemos que a humanidade também o fará porque somos tão engenhosos e imaginativos quanto a Ayla.
Mas afinal, como era esse tal de clã, como era esse tal de Homo sapiens neanderthalensis e no que ele diferia de nós?
Bem, eu diria que, no geral, os neandertais não eram tão feios quanto a cultura pop os pinta. Com a barba feita, um banho de loja e um bom corte de cabelo, não pareceriam tão estranhos nas nossas praias (rsrs)
Modelo de cabeça de homem adulto neandertal - Smithsonian Museum of Natural History (fotografia Wikipédia)

Para começo de conversa o nome deles é a tradução literal do local onde a primeira ossada do homem arcaico pré-histórico foi encontrada, em uma caverna no Vale de Neander, perto de Düsseldorf, na Alemanha. Em alemão “tal” significa vale.
Sabemos que seu tempo médio de vida era de trinta anos, que seus cérebros eram maiores do que os nossos, que possuiam maxilares protuberantes, testas recuadas e quase nenhum queixo, que tinham narizes largos e salientes, olhos enormes e sobrancelhas salientes e que, assim como Jean Auel os descreveu, muitos deles tinham cabelos loiros ou ruivos e muitos pelos. Sua altura média era de um metro e sessenta e oito centímetros, eles tinham pernas e antebraços curtos - o resultado de sua adaptação ao frio - seus ossos eram espessos e pesados e as ossadas encontradas mostram sinais de poderosas ligações musculares e de vidas brutalmente difíceis. Digamos que era uma galera extraordinariamente forte!
Os neandertais foram caçadores formidáveis, desenvolveram instrumentos de caça elaborados lascando as pedras para se tornarem pontiagudas. Os caras matavam mamutes com apenas lanças de mão! Eles inventaram o primeiro processo industrial conhecido: a produção de uma cola de casca de bétula com a qual prendiam pontas de pedra em lanças. Também foram as primeiras criaturas viventes a usar peles para se proteger do frio e a enterrar seus mortos, sendo de um deles uma das mais antigas sepulturas de que se tem notícia, com mais de cem mil anos.
A taxonomia completa do ser humano contemporâneo jura de pés juntos que pertencemos ao reino animal, que somos mamíferos e vertebrados, da ordem dos primatas, da família Hominídea, da espécie Homo sapiens e da subespécie Homo sapiens sapiens.
Acontece que o termo binominal Homo sapiens foi cunhado em 1758 pelo sueco Carl Linnaeus, o pai da Taxonomia. O uso dos binômios – o primeiro referente ao gênero e o segundo à espécie do ser vivo descrito – é prático e simples e o sistema de classificação, chamado de “divisão e denominação” segue uma hierarquia facilmente abstraída.
Só que não havia motivo, no século XVIII, para o cientista pensar que o adjetivo “sapiens” também acabaria qualificando outros membros adicionais da mesma espécie. O primeiro fóssil de um neandertal só foi descoberto no século XIX muito depois do nosso batismo!
A verdade é que quando as evidências fósseis de outras subespécies extintas começaram a emergir da terra em fluxo constante, os limites e definições do gênero Homo ficaram mal definidos e até confusos e é por isso que lemos Homo sapiens neanderthalensis e Homo sapiens sapiens.
Note que, historicamente, o pensamento simbólico e as obras de arte têm sido apresentados como prova da superioridade cognitiva dos humanos modernos, como exemplos das habilidades excepcionais que definem nossa espécie. O povo neandertal, em comparação, sofreu, digamos, um ataque de fake news desde que os seus primeiros esqueletos foram desenterrados (rsrs) O certo é que Dona Ciência se não os batizou como stupidus, já os descreveu como incapazes de concepções morais ou teístas.
O mundo já percebeu, no entanto, que os nossos primos arcaicos não eram menos inteligentes do que os humanos modernos. Também não há evidências de que a nossa superioridade cognitiva os tenha levado à extinção há quarenta mil anos atrás de Portugal, no oeste, até as montanhas da Ásia Central, no leste, enquanto nós sobrevivíamos.
Apesar da visão dos neandertais como brucutus ser um dos estereótipos mais duradouros da cultura pop, todas as evidências arqueológicas atestam que essa imagem não tem qualquer base e que a lenda urbana de que eram pouco dotados intelectualmente foi uma maneira simplista de explicar porque eles desapareceram.
Simplesmente os “sabichões” deduziram que os humanos modernos tinham uma melhor cognição e que ela teria se manifestado, é claro, em uma caça mais cooperativa, em melhores armamentos, em uma dieta mais ampla, em uma reprodução mais eficiente, em mais inovação adaptativa e outras vantagens importantes. As explicações podem até dar ótimas estórias, mas o único problema é que não há arqueologia para apoiá-las.
Na realidade todos comparam os neandertais arcaicos com seus sucessores, os humanos modernos que viveram no Paleolítico Superior, e não com os humanos que viveram ao mesmo tempo que eles, há duzentos mil anos atrás. Isso é como dizer que os habitantes no século XIX eram menos inteligentes do que nós porque não tinham laptops(rsrs)
O Clã do Urso da Caverna me pegou pelo pé principalmente pela quantidade e qualidade da pesquisa realizada pela sua autora. A narrativa fazia uma descrição detalhada da botânica, herbologia, fitoterapia, arqueologia e antropologia. Ao falar, por exemplo, das cavernas pintadas e das esculturas talhadas em osso nelas encontradas, a escritora elenca os pigmentos, os materiais e as técnicas usadas e motiva qualquer um a visitá-las.
No entanto foram os personagens do romance pré-histórico que, pelo menos para mim, transformaram o livro em uma janela através da qual eu pude vislumbrar através do tempo e de uma imensa distância os nossos ancestrais e desejar conhecê-los, experimentar o mundo através de seus sentidos, saber como viveram, entender como e o quê pensavam quando olhavam para um céu estrelado.
Se eu pudesse entrar na cabeça deles, me depararia com um  animal sem compreensão ou encontraria sinais de consciência e, nesse espelho, me reconheceria? Será que eles imaginavam que as ferramentas que fabricavam e seus ossos durariam incontáveis gerações e, ao fim e ao cabo, conversariam com seus descendentes? Que se perguntavam sobre o futuro de seu povo, se haveria herdeiros para o seu mundo e os seus modos?
A escritora foi capaz de me conectar com os prezados neandertais, de me soletrar que, de certa forma, eles eram exatamente como nós mas que de muitas outras maneiras, ainda eram muito parecidos com os animais que vieram antes deles. Jean Auel me fez aceitar “de boa”, como diz a juventude, que venho do mundo animal. Naquelas páginas, pela primeira vez na vida, me percebi parte de uma corrente evolutiva de ancestrais e descendentes e experimentei uma espécie de parentesco com o resto da criação.
Ao descrever a personagem Isa, a curandeira neandertal que criou Ayla, ela revela detalhes preciosos da flora, da fitoterapia ancestral. O romance nos soletra como fazer e usar ferramentas de sílex, como caçar e escarnar animais, como pescar trutas com arpão e esturjões com redes - e comer suas ovas com as mãos! - como preparar e pintar o couro, como cozinhar em circunstâncias pré-históricas, cardápios tanto neandertais quanto sapiens (rsrs)
É claro que a autora fundamentou o seu mundo fictício nas teorias arqueológicas aceitas e apoiadas pela academia enquanto escrevia o romance. À época os doutos teorizavam, por exemplo, que os neandertais não teriam sido capazes de articular porque ossos hioides – que dão sustentação à língua e são a única parte do esqueleto que não se liga diretamente a nenhum outro osso – não tinham sido encontrados nas suas ossadas já escavadas.
Por isso ela dotou o seu clã com uma baixa capacidade de articulação verbal compensada por uma rica linguagem gestual. E não é que o tal ossinho sem o qual um sistema fonador neandertal teria sido muito prejudicado foi finalmente descoberto pela primeira vez em um túmulo, em 1989, dez anos depois da publicação do romance?
Na primeira página do livro havia a ilustração de um mapa da Europa, com todos os sítios arqueológicos do roteiro fictício a ser percorrido por Ayla, onde haviam sido descobertos - na real! - restos culturais, utensílios e pinturas e esculturas dos cro-magnons da Idade do Gelo. Sim, trata-se em parte de literatura de viagem, a da Ayla, mulher feita, desde a atual região da Ucrânia até a fronteira entre o sul da França e o norte da Espanha – o paraíso das cavernas pintadas! - ao longo de uma rota indireta pelo vale do rio Danúbio para encontrar o povo de Jondalar, o companheiro de viagem e vida que a moça encontra enquanto exilada no segundo volume da série.
Outro aspecto riquíssimo do romance mora no próprio título – Clã do Urso da Caverna! - ou seja no link estabelecido pela escritora entre o povo neandertal e os ursos gigantescos que então povoavam as cavernas da Europa.
Caça ao urso das cavernas (pintura de  Zdeněk Burian - 1952)

Essa proximidade não foi apenas um produto da imaginação da autora, mas fruto do seu minucioso dever de casa. Sucede que no início do século XX, um arqueólogo amador estava explorando uma caverna nos Alpes Suíços quando descobriu muitos crânios e ossos de urso que pareciam ter sido arrumados em padrões específicos: sete crânios encaravam a entrada da gruta, enquanto outros seis se encontravam dispostos em entalhes nas paredes laterais da caverna. Além disso um osso da coxa de um deles fora inserido na cavidade ocular do crânio do maior dos animais.
A caverna já era conhecida pelos habitantes da região e por eles fora batizada de Drachenloch - Covil dos Dragões - apesar dela abrigar milhares de ossos de urso. É provável que, no entender do povo local, somente predadores poderosos como os dragões teriam sido capazes de matar tal quantidade de ursos enormes (rsrs)
Foi daí que surgiu a tese de que os ocupantes neandertais daquela caverna, teriam possuído algum tipo de espiritualidade e considerado os ursos como guardiões e talvez até mesmo praticado algum tipo de culto. O fato é que a conexão mística entre ursos e neandertais não é algo isolado e restrito à ficção ou apenas à tal Caverna dos Dragões.
A existência ou não desse culto entre os neandertais na Eurásia Ocidental no Paleolítico Médio tem sido uma discussão estimulada por descobertas arqueológicas de novos ossos de Ursus spelaeus “em seguidinho” em outras cavernas na Suíça, na Eslovênia e nos Alpes austríacos e na Borgonha francesa, que intrigam os arqueólogos por causa de seus arranjos naturalmente impossíveis, de suas caveiras colocadas em cima de pedras/pedestais em posições estranhas ou em composições peculiares e cerimoniais.
No seu romance Jean Auel descreve como Creb, o xamã da tribo de neandertais, faz uso de ervas alucinógenas para ver o passado e o futuro, em cerimônias secretas de culto a Ursus. Em 2012, trinta e dois anos depois, uma análise de DNA nos dentes de um neandertal de cinquenta mil anos de idade, encontrado em El Sidrón, no norte da Espanha ao lado de mais uma caveira do bicho, sugeriu que o seu dono consumia plantas não por gosto, mas por valores alucinógenos. Tais evidências, é claro, turbinaram a hipótese de “culto” e fizeram muita gente boa especular que os neandertais exploravam cavernas profundas, presumivelmente com o propósito de induzir êxtases ou estados alterados de consciência há cinquenta mil anos atrás, se não muitos milhares de anos antes.
Muitas das cada vez mais frequentes descobertas arqueológicas e informações genéticas recentes batem com aquelas que li, tanto tempo faz, nas estórias do clã do meu encanto (rsrs) Pelo menos os neandertais meus velhos conhecidos, lá nas páginas do romance histórico, eram sim espiritualizados e adeptos do totemismo. Ou seja, acreditavam que cada um dos membros da tribo tinha um parentesco, uma relação com um ser espiritual e que essa entidade ou totem, geralmente um animal, além de servir como seu emblema ou símbolo, também interagia com o indivíduo, como um companheiro, um protetor, com poderes e habilidades sobre-humanas.
Essa narrativa totêmica cometida pela escritora Jean Auel converge com aquelas feitas pela academia sobre o totemismo, descrito pelos especialistas como um complexo de idéias e comportamentos com base em uma visão de mundo extraída da natureza, ou seja, um conjunto de práticas místicas na organização social de populações cujas economias tradicionais dependiam da caça e da coleta.
No mundo das cavernas inventado pela autora americana cabia ao mogur Creb, o xamã do clã, descobrir qual era o totem de cada criança da tribo. No caso da estrangeira Ayla a escolha foi fácil porque a menina escapara do ataque de um leão que no entanto, deixara-lhe na coxa as cicatrizes causadas pelas suas garras (rsrs) Além dos totens individuais, o Clã, como um todo, acreditava ter a proteção de “Ursus”, o gigantesco morador das cavernas.
Lendo as vívidas descrições que a escritora faz da vida da tribo, a gente percebe que os membros do clã se identificavam com o animal porque ele vivia e sobrevivia no mesmo contexto que a tribo, também colhia, pescava, era doido por mel, se abrigava do inverno nas grutas e, embora se defendesse de modo violento e fatal, se o deixassem em paz vivia e deixava viver. Note que esse comportamento “humano” do bicho devia ser mais evidente antigamente quando os próprios humanos andavam cobertos de peles (rsrs)
Mas não se pode ler a ficção sem questionar os por quês dessa veneração dos nossos primos ancestrais pelo urso em vez de pelo leão da caverna, tão mais feroz e poderoso, ou pelo mamute, o maior dos mamíferos. A única hipótese que me vem à mente capaz de explicar um suposto culto ritualístico de grande antiguidade centrado no animal é simples: por causa do hábito de hibernação dos prezados ursos.
Escapava ao neandertal que, depois de comer loucamente durante os verões, os ursos simplesmente tirassem o time de campo, dormindo por meses a fio sem beber e comer durante os invernos. Como poderiam os primos entender que nesse período o metabolismo dos bichos operava bem mais devagar e que a queima da gordura estocada nos seus corpos liberava a água e as poucas calorias de que eles necessitavam para sobreviver? O homem neandertal sabia que se permanecesse em uma caverna, como um urso, sem se alimentar durante todo um inverno, com certeza, seria um sujeito bem morto na próxima primavera. Logo se o urso não morria então só podia ser um “deus”.
Na minha modesta opinião, o “culto do urso” se é que existiu, foi baseado no mito ancestral da ressurreição, na crença de que o urso “morria” enquanto hibernava a cada inverno e então era “ressuscitado” a cada primavera. O urso da caverna era um símbolo de morte e ressurreição e de sê-lo o bicho virou o tema adequado para os rituais fúnebres neandertais: como Ursus conhecia o caminho foi transformado em guia ideal para o Além.
Nada de novo! Não deveria ser surpreendente que qualquer religião, ancestral, antiga ou nova, tente resolver o problema da morte. Tenha sido neandertal ou não nos seus primórdios, os cultos do urso são concepções tipicamente humanas do mundo e foram praticados na Gália Céltica e depois na Bretanha e em muitas religiões étnicas da Eurásia do Norte muitos milênios depois e até recentemente por quase todos os povos primitivos do Ártico, em rituais mágicos de caça relacionados com o urso polar.
Com certeza a religiosidade com a qual a escritora Jean Auel dotou suas criaturas neandertais é proveniente da sua poderosa imaginação pois não são conclusivas as evidências arqueológicas desse culto, ou por outra, ainda não há provas irrefutáveis de que nossos primos adoravam o urso das cavernas. Mas, de fato, os antropólogos não excluem a possibilidade de que muitas de nossas crenças, mitologias e rituais sejam um legado pré-histórico. A opinião de que o homem paleolítico já tinha uma religião complexa, com rituais sagrados, pode ser encontrada em muitos trabalhos de referência e bem assim a tese de que os neandertais foram muito provavelmente os precursores das experiências religiosas xamânicas.
Note que, em última análise, como espécie, os ursos das cavernas foram extintos. Parecem ter sucumbido aos efeitos da perda de seu habitat, as cavernas, para os humanos primitivos que também as usavam como abrigo. Inevitavelmente uma espécie teria que ceder. Os ursos da caverna perderam a guerra.
Uma das estranhezas do romance - que depois Dona Ciência provou ser fato! - é o filho de “mistos espíritos” que a heroína teve ainda adolescente de um membro do clã dos neandertais, o malvado Broud. Note que a sequenciação do genoma do Homo neanderthalensis só foi concluída em 2010, trinta anos após a publicação do livro, provando o que fósseis com características intermediárias entre humanos e neandertais já haviam sugerido: que os neandertais “conheceram”, no sentido bíblico, algumas garotas mais modernas, que houve sim cruzamento e acasalamento entre os sapiens sapiens e os sapiens neanderthalensis.
Hoje estudos de DNA detalham que a história de amor entre os primos faz parte do que a espécie humana é hoje: os europeus atuais têm entre um e quatro por cento de DNA neandertal e, nos asiáticos esse percentual chega a ser mais elevado sugerindo que a extinção dos neandertais tenha ocorrido mais tarde do que se pensa e na Ásia.
Os estudos genéticos que decodificaram o genoma do neandertal também revelaram algumas pistas sobre o que exterminou nossos primos igualmente inteligentes. Eles mostram que uma das diferenças mais fundamentais entre o Homo sapiens e os neandertais foi o desenvolvimento neurológico. Os cérebros neandertais se concentravam no processamento visual sem a capacidade de gerenciar grandes grupos e relacionamentos complexos. Pensa-se que a população global neandertal nunca foi superior a quinze mil indivíduos.
Eles não viajavam para longe de casa, não se afastavam dos seus pequenos clãs geograficamente dispersos. Além disso Dona Lenda jura de pés juntos que quando as migrações humanas saíram da África, para cada quatro dos nossos havia um deles.
O fato é que Dona Genética demonstrou cabalmente que nos pequenos e fragmentados clãs neandertais as “fogueiras” tornaram-se para lá de consanguíneas, o que resultou em endogamia e em descendentes masculinos inférteis e/ou explicaria, até certo ponto, os cruzamentos com seres humanos modernos. Que, por outro lado, viviam em grandes grupos sociais dinâmicos, se especializavam e desenvolviam o que os neandertais não podiam, devido às dificuldades e vidas curtas: a cultura.
Como a história das interações entre as culturas humanas é repleta de agressão e guerra até recentemente a crença científica estabelecida era de que os humanos foram responsáveis pela extinção dos neandertais logo após a chegada dos Cro-Magnons. A triste e jamais provada conclusão foi que, competindo com os neandertais por recursos escassos no mundo desafiador da Era do Gelo, nós fomos melhores e portanto os vencemos e destruímos.
Já não se pode afirmar, cientificamente, que a humanidade fez com os neandertais o que milhares de anos depois as culturas dominantes fizeram com tantos povos primitivos. Com certeza a natureza humana tem um lado sombrio mas as atuais evidências arqueológicas e genéticas em vez de uma conversa bélica sugerem que os primos devem sim ter perdido espaço na caça e na coleta para os humanos modernos por quem, no entanto, em vez de dizimados podem simplesmente ter sido muito lentamente assimilados.
Note que há um outro lado em nossa natureza, não menos voraz, mas talvez menos sinistro. Lembra da franquia Guerra nas Estrelas? Do mundo dos primatas nós somos como aqueles personagens Borgs, cujo lema era “Resistir é inútil” (rsrs) - Simplesmente assimilamos, não apenas o conhecimento, mas sociedades inteiras.
Portanto em vez de comprar a versão de que exterminamos cruelmente os neandertais, prefiro acreditar que quando se depararam com os primos tão fortes mas tão pouco numerosos amontoados em cavernas, nossos intrépidos ancestrais em vez de encarar se mudaram para perto deles, passaram a “azarar” as mulheres dos vizinhos, fizeram um monte de bebês e os tornaram parte da família (rsrs) Ou seja, com o tempo nós os consumimos, em um sentido muito real, os diluímos e os incorporamos, até que eles não mais se distinguiam de nós.
Não sou tão ingênuo a ponto de imaginar que essa assimilação foi completamente pacífica ou voluntária e não se sabe como rolou exatamente a mistura mas que ela aconteceu não restam quaisquer dúvidas. Porém apesar de ainda não terem encontrado nenhum fóssil de guerreiros neandertais empalados por lanças em um campo de batalha, apesar de não existir registro ósseo de mulheres e crianças com crânios arrebentados e os peitos perfurados, não se pode descartar totalmente a hipótese de uma guerra fratricida que teria durado vinte mil anos. Sim porque o verniz da nossa civilização ainda hoje é fino e os nossos lobos predadores moram à flor da pele e não restam dúvidas quanto aos sangrentos genes primordiais das nossas feras.
Digamos que o livro O Clã do Urso da Caverna despertou a minha curiosidade arqueológica amadora (rsrs) e me iluminou no sentido de que os bichos homens são uma espécie híbrida, seres de retalhos, estórias contadas em volta de fogueiras. Não apenas preservamos a identidade genética de nossos antepassados, mas também as lendas sobre eles. É o que fez Jean Auel, é o que fazemos nós, é o que estou fazendo agora. É da natureza humana (rsrs)
E embora a escritora tenha feito sua protagonista viver páginas inteiras de tórrido romance com seu galã Cro- Magnon e empregado muita licença poética ao atribuir à moça muitas invenções da humanidade, o romance é uma interessante leitura.
Admito que é um evidente exagero que a Ayla tenha sido capaz de promover a domesticação pioneira dos animais – uma égua, um lobo e (quase) um leão - montar a cavalo, inventar a agulha, o propulsor da lança, o “travois” – apoio de galhos para arrastar cargas -, o sutiã, um chá anticoncepcional e os pontos cirúrgicos (rsrs) Não, ela não inventou o sabão – foi alguém que o casal de amantes conheceu pela estrada - mas provavelmente passou a fazê-lo melhor e perfumado e hidratante (rsrs)
Suponho que a autora tenha exagerado nos feitos da sua heroína para condensar em um só personagem os avanços devidos à espécie os quais ela precisou abordar, para que a narrativa fizesse sentido.
É certamente divertido conferir como a escritora conduz Ayla da sociedade repressora neandertal por outras culturas e tribos humanas mais igualitárias nas quais as mulheres caçam, muitas são líderes, xamãs e artesãs respeitadas. Porém enquanto teclo essas pretinhas sou forçado a reconhecer que a escritora ousou sugerir lá atrás hipóteses fantasiosas – para não dizer doidas de pedra! - que hoje e graças às novas informações arqueológicas disponibilizadas em ritmo contínuo a cada semana e aos avanços nos estudos da genética, da paleoclimatologia, da paleobotânica e da antropologia, sabemos serem verdades.
As novas teorias da evolução e da expansão humana, bem como das interações homem moderno / neandertal  convergem para situações que a autora abordou de forma pungente em suas novelas. Foi interessante entender, anos depois, que as histórias contadas ao mundo pelos ossos de neandertais inspiraram vários personagens de Jean M. Auel, como é o caso do visionário xamã Creb, que leva seus leitores a desenvolver uma simpatia quase amizade pelos arcaicos neandertais (rsrs)
Muita gente boa da minha geração, os “velhinhos em formação” de hoje, devem aos escritos de Jean M. Auel a compreensão que têm da Pré-História. Temos inclusive um casal de amigos que batizou a sua primogênita de Ayla, em homenagem à bela mulher que caçava e curava e lutava contra o patriarcado do Clã neandertal para, em seguida, defender as qualidades do povo que a criara diante dos preconceitos do seu próprio povo, empurrando para frente os limites de todas as tribos com as quais conviveu, contribuindo para a evolução da raça humana.
O que a leitura dessa ficção me tornou claro é que, do ponto de vista antropológico, o Paleolítico Médio europeu foi caracterizado pelo Homo neanderthalensis que viveu em tempos nos quais a paisagem, o clima e as condições de vida mudaram drasticamente. Essas mudanças ambientais podem ter contribuído para as características anatômicas especiais dos primos. Certamente, a necessidade de se adaptar a um habitat em constante mudança forçou-o a desenvolver habilidades socioculturais que estavam intimamente relacionadas à evolução progressiva da inteligência.
As habilidades intelectuais e técnicas do homem de Neandertal mais tardio e do Homo sapiens inicial obviamente não diferiam muito. Não há evidência paleontológica da diferença fundamental entre as mentes neanderthalensis e sapiens como as descreveu a escritora. Teoricamente, pelo menos, o falecido Homo neanderthalensis era sim capaz de desenvolver um sistema de símbolos ou de pensar em termos abstratos, ou de falar fluentemente.
Alguns estudiosos vêm argumentando há décadas que a busca desenfreada por traços únicos humanos na evolução diminui o esforço mais útil de identificar transições menores e reconhecer diferenças de grau e não de tipo. Eles também advertem que a prática de definir características exclusivamente humanas é influenciada por juízos de valor sobre o que é importante para nós no presente. Compreender a história evolutiva dos seres humanos é uma tarefa hercúlea na qual se usarmos o zoom em nossa árvore genealógica perderemos a riqueza do modo panorâmico.
Dessa perspectiva estreita, é muito fácil ver a evolução do Homo sapiens como distinta da evolução de outras criaturas. Deixando de lado a crença na singularidade de nosso comportamento, quem sabe não sejamos capazes de abstrair como nossa tendência de nos ver como algo especial nos afasta do resto de nossa família primata e, de fato, de toda a evolução. Talvez seja preciso entender que somos e seremos muito menos importantes do que julgamos ser, repensar essa relação fraturada com o resto da natureza, superar nosso antropocentrismo e reconhecer a imprecisão das distinções.
Mas como evoluímos... Isso já é outra conversa


21/02/2020

Papai, onde estão as linhas?

Do outro lado do lago - fotografia WBJ


Wilson Baptista Junior
Alguns dias atrás estávamos almoçando com um novo conhecido, um engenheiro argentino que estava em Belo Horizonte para fazer um trabalho. Conversando de viagens, e a certa altura ele contou que se admirava de ter conhecido aldeias na Itália onde os moradores não tinham contato com os moradores de aldeias vizinhas, nos vales seguintes, era como se o seu mundo estivesse contido naquele horizonte fechado pelas montanhas.
E eu lhe disse que tinha visto coisa parecida, mas nem precisava ir tão longe, isso já foi muito comum; o meu bisavô paterno, o velho Mestre Augusto, carpinteiro de Santa Luzia, o mais longe que tinha ido de sua casa foi numa viagem até Ouro Preto, coisa de umas dezesseis ou dezoito léguas, como se dizia no seu tempo, e assim mesmo apenas porque, sendo considerado um dos homens de mais confiança de sua cidade, foi escolhido para escoltar um preso até a cadeia de Ouro Preto. Se não fosse por isso provavelmente nunca teria viajado tanto.
E comentávamos que do outro lado das serras mineiras, ou dos vales italianos, naquele outro mundo desconhecido, as pessoas que não se conheciam eram as mesmas, a terra era a mesma, os rios corriam do mesmo jeito, o sol se punha à tarde e se levantava de manhã, e os pássaros voavam no mesmo céu de um lado para outro.
E me lembrei de ter ouvido uma história, contada ou inventada não sei por quem, do menininho que voltou da escola onde a professora tinha dado uma aula de geografia e o pai lhe mostrou uma revista com uma fotografia tirada por um astronauta, dizendo: “Veja aqui os lugares que você estudou”. E o menininho perguntou: “Mas Papai, onde estão as linhas?” e o pai perguntou “Que linhas, meu filho?” e o menininho respondeu “Aquelas linhas, Papai, que separam os países...”
fotografia NASA

Não sei como o pai acabou explicando para ele que aquelas linhas estão na cabeça e no coração dos homens, foram postas lá através do tempo e dos desentendimentos e dos medos e das ambições que conduziram a história desse mundo que nasceu sem elas.
Na fotografia que abre este post vemos dois pedaços de deserto, um da cada lado de um grande lago, que têm a mesma areia, as mesmas pedras, o mesmo céu, mas são separados por uma das linhas invisíveis mais tristes e mais raivosas entre tantas. Eu tirei a fotografia pisando a areia do Deserto da Judeia, e as colinas do outro lado do lago, que é o Mar Morto, formado pelas águas do Jordão, são as colinas de Golan. Foi daquele lado de lá que um dia três reis magos vieram seguindo uma estrela para saudar um menino que havia nascido do lado de cá e que mais tarde foi batizado nas águas do mesmo rio que forma o lago que divide os dois pedaços do deserto.
Será que algum dia essas linhas mundo a fora deixarão de separar à força as cabeças e os corações que vivem de cada lado delas? Será que algum dia poderemos fazer a mesma pergunta do menininho?
Eu gostaria tanto de pensar que sim...


17/02/2020

Desamor


 
Sem teto em Paris (fotografia Eric Fournier, licença https://creativecommons.org/licenses/by-sa/2.5/deed.en)
Heraldo Palmeira
O vento lá fora geme
Colhendo estrelas mortas
O homem foi descendo sem pressa a rua solitária como ele. Era tarde da noite. O som dos próprios passos quebrava o silêncio das calçadas e esquinas. Seu vulto oscilava pelos pontos de luz e escuridão entre os postes da iluminação pública. As placas e vitrines das lojas estavam às escuras, uma ou outra ainda acesa aguardando o tempo programado para o desligamento automático.
Olhou para os lados por obrigação, não havia o que temer. O pior já tinha acontecido.
Havia só um mendigo sentado lá adiante, envolto em trapos quase pretos, entrincheirado no ponto mais escuro da calçada em que se instalara, e que se aproximava imóvel pelo movimento dos passos do homem que descia sem pressa a rua solitária. Mais um pouco, estariam próximos na penumbra.
Era um coração vazio em movimento e o vazio em um coração sem movimento. Era um encontro de dois desencontros, nada mais que duas misérias cruzadas sem motivo pelo acaso, por nada.
O homem finalmente chegou ao raio de ação da presença imprestável do mendigo. Imóvel, o um resmungou de lá algo impossível de traduzir. Impassível, o outro apenas passou em silêncio, escutando sem ouvir, sem olhar para trás. E seguiu para encontrar-se com a própria solidão.
Uma motocicleta barulhenta e veloz criou um clima de frio na espinha, alterou o humor do mendigo. Ele gritou coisas ininteligíveis num dueto surrealista com o alarde do motor, que passou e logo sumiu sem deixar vestígios.
O homem sem pressa chegou em casa, abriu uma bebida e espalhou o corpo na poltrona. Preferiu a penumbra, apenas o rastro de uma pouca luz que entrava pela janela lavando o pedaço de um móvel e derramado no chão como uma poça d’água.
Na rua uma poça d'água
Espelho da minha mágoa
Transporta o céu para o chão
Tal qual o chão da minha vida
A minh'alma comovida
O meu pobre coração
A brisa bamboleava bêbada levando a fumaça do cigarro para lá e para cá, talvez um sopro de incenso mortal sobre aquela tristeza.
O homem finalmente se dera conta de que o amor guardado tantos anos havia se arrastado para o fim. Morrera como nascera, como um riacho que corre, se agiganta, vira rio caudaloso e se afoga naquela tanta água que já não cabe no leito.
Estava feito, não restava mais nada a fazer. Ele não sabia como se olhar no espelho depois que não se viu, como num espelho, no rosto em que sempre enxergou sua cara-metade estampada.
Se fosse resolver
Iria te dizer
Foi minha agonia
Se eu tentasse entender
Por mais que eu me esforçasse
Eu não conseguiria
E aqui no coração
Eu sei que vou morrer
Um pouco a cada dia
E a amargura e o tempo
Vão deixar meu corpo
Minha alma vazia
Como se não fosse tão longe
Como se a vida fosse um perigo
Como se houvesse faca no ar
Não havia culpas e nem deu tempo para desculpas. Nem palavra houve para ouvir. Até os olhares haviam se perdido. Morrera porque não conseguira mais viver depois de conjugado o verbo murchar.
Evaporou para fugir da cerimônia do fim – a dor da despedida seria mortal –, como se fosse possível morrer sem funeral, um fevereiro sem Carnaval. Sentiu a fantasia rasgar na avenida enquanto o desfile de tudo atravessava a melodia que tocou tanto, e tanto doeu lembrar.
Uma motocicleta passou veloz estrondeando tudo lá na rua. Desta vez, a sensação de frio na espinha foi menor. Imaginou que o mendigo gritara irritado repetindo o dueto barulhento de antes. Ficou na dúvida se era o mesmo idiota se divertindo ao perturbar o sossego dos outros, ou apenas mais um desses idiotas urbanos de pouca serventia.
Abriu mais uma bebida, inebriou a dor. Havia um mar de segredos que foram guardados para ninguém saber o que só eles sabiam. Passaram a vida driblando o mundo, porque não podiam jogar aberto. E perderam o jogo!
Não, não mais se encontrariam, não havia mais nada para reencontrar. Restou a lembrança de um olhar distante, vazio, cabisbaixo, o silêncio do não sorrir, do nada a dizer. Era triste, era riacho seco, mato esturricado, era o fim.
Era a velha dúvida que até gerou canção, se é o trem que passa ou passou quem ficou na estação. Era o medo de ir embora, mesmo sabendo que já não havia lugar para ficar.
Era a ressaca do amor empobrecido, mendigo sem forças para implorar. Era o amor maltrapilho, no avesso. Desamor. Quase invisível, evaporando na fumaça bêbada ao sabor da brisa, esvaindo bamboleante para aqui e para li. Um incenso queimado, uma tristeza consumada no resto de cheiro, na penumbra impregnada, a fresta da janela como rastro de uma pouca luz. O chão alagado sem água.
Olhou para o céu sem graça, poucas estrelas, todas miúdas! Ficou com a impressão de que tudo ao redor estava triste, que o vento gemia, que as estrelas estavam mortas. Não encontrou poesia.
Olhou mais uma vez o telefone, aquela última esperança de quem tem certeza que vai ganhar uma loteria acumulada. Mais um pouco, a madrugada quase no fim, o Sol rompendo a barra da noite, o escuro sumindo, a aposta perdida, o bilhete no lixo. Papel velho. Nada a fazer. A manhã prestes a surgir, pronta para apagar os restos que tentaram sobrar da última noite.
É pau, é pedra
É o fim do caminho
É um caco de vidro
É a vida
É a noite, é a morte
É o mistério profundo
É o vento ventando
É o fim da ladeira
É o fundo do poço
No rosto o desgosto
É o fim do caminho
Ajeitou o corpo na poltrona – conseguiu apenas tirar os sapatos com os próprios pés e acredita ter ouvido o som deles caindo no assoalho –, o sono estava vencendo o desamor e o cansaço estendidos. A cascata de luz secara do chão.
Ficou com uma quase certeza de que pensou no homem mendigo, ferido, obscuro em sua dor revestida por trapos quase pretos, que gemia seu sofrimento pelo amor que se foi sem ter dormido, sem fechar a porta, sem dar bom-dia! E sem ninguém perceber, o que era mais dolorido.
-> Para todos os amores que vão se perdendo e morrem sem ter vivido e sem ninguém perceber a iminência da morte.

Trechos de:
Via Láctea (Horácio Paiva)
A deusa da minha rua (Newton Teixeira-Jorge Faraj)
Agonia (Mongol)
Léo e Bia (Oswaldo Montenegro)
Águas de março (Tom Jobim)