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30/03/2019

Sem nunca se terem visto

imagem Amazon


Moacir Pimentel
O cartaz à porta do post pertence a um filme que marcou a nossa juventude: Nunca te Vi, Sempre te Amei. É difícil, convenhamos, escrever sobre um filme no qual Anne Bancroft, Anthony Hopkins e Judy Dench dotam de carne e alma os protagonistas de uma história tocante e sedutora com o sabor dos biscoitos da infância, quando tudo era perfeito, delicado e confortável, com o cheiro dos sebos e de seus livros empoeirados, com o encanto do velho mundo e o mistério das emoções dos personagens, com a alegria da vida e o travo dos seus pedaços amargos, com o som dos diálogos e do silêncio de belas cartas.
Mas pergunto: como poderia qualquer filme com Anne Bancroft e Anthony Hopkins e Judy Dench dar errado? Pelamordedeus! O prezado Anthony - aqueeeele Hanibal canibal - está impecável como o contido Frank Doel, o gerente da Marks & Co, uma livraria localizada em Londres, onde todos os endereços começam pelo número. Daí o seu título original: 84, Rua Charing Cross. Ele é o companheiro ideal para a exuberante e inesquecível Helene, cometida por Anne Bancroft, que aliás nasceu para interpretar a dualidade de intelecto/coração da escritora/leitora voraz que em vão procurava por edições baratas dos grandes títulos da literatura inglesa nas livrarias de Nova York.
Devo confessar que ao assistir à performance da atriz eu simpatizei ainda mais com a protagonista que, aqui entre nós e baixinho, é um pouco áspera demais para o meu gosto no livro. A atriz soube deixar a persona mais divertida, mais moleca, mais carismática e empática, com o sorriso acolhedor de uma mulher de fácil amizade e convívio, desde a juventude até a meia idade, se voltando para a câmara e falando para os espectadores enquanto que, na verdade, se dirige a um cara que ela nunca vira, mas que, de alguma forma, sempre amara.
O certo é que Anne Bancroft dá à sua Helene coração e espírito e alegria contagiantes e não hesita em cruzar a linha vermelha do politica e burramente correto enquanto Anthony Hopkins, todo restrição e modéstia, carrega com valentia a alma romântica de Frank Doel. Aliás esse Frank de Anthony Hopkins tem vários gestos do Doutor Hannibal Lecter de O Silêncio dos Inocentes. Pudera! Anthony Hopkins é sempre ele mesmo – seja fazendo um assassino, um mordomo, um ricaço ou um funcionário de uma livraria da Rua Charing Cross.
Mas o fantástico é que, nessa sua ininterrupta e extraordinária representação de si mesmo, ele consegue nos dar excelentes atuações e está absolutamente perfeito como o inglês sério, sisudo, convencional, cinzento, como eram os ilhéus na imaginação das jovens intelectuais americanas da década de 40. Não há como não gostar dessa figura tão imaculadamente britânica, que se encanta com a compradora compulsiva de seus velhos livros do outro lado do Atlântico.
Já a maravilhosa Judi Dench não é deixada para trás, como a sábia e contida e amável Nora, a esposa irlandesa de Frank, que tudo intui, tudo vê, tudo sabe mas nada diz e, ainda assim, cumpre com galhardia a difícil tarefa de estar lá para justificar a paisagem emocional da vida de seu marido, e faz isso modesta mas completamente nas mais ínfimas cenas.
Por mais leve que seja o enredo desse filme, seus personagens conseguem se comunicar com as pessoas: o entusiasmo e a  impulsividade da moça, sua espontaneidade, sua capacidade de ser emocionalmente livre e disponível para várias nuances de sentimento e, equilibrando a trama, o bom senso de Nora e as tranquilidade e correção das reações de Frank, são o sal do filme e dotam-no com a textura da vida real.
imagem Columbia Pictures Corporation

Helene Hanff nasceu em 1916, na Filadélfia, filha de uma família judaico/cristã de fãs do teatro. Ela viveu suas primeiras décadas contra o pano de fundo da crescente ambição feminista, sonhando em se tornar uma dramaturga.
“Eu escrevia excelentes diálogos, mas não conseguia inventar uma história nem para salvar meu pescoço”.
No final da década de 1940, a vida de Helene Hanff era uma rotina tão sombria quanto as perspectivas de sua carreira. Aos trinta e três anos, ela mal conseguia se manter teclando roteiros para programas de televisão. O seu problema mais premente era não ter dinheiro suficiente para comprar os livros que sua alma faminta de ratinha de biblioteca exigia. Essa situação financeira precária é uma constante nas cartas da moça que trabalhava “em casa, sem calefação, e usando suéteres puídos pelas traças” com um cinzeiro transbordante do lado do cotovelo e a garrafa de gin nunca fora do alcance das mãos.
Quando a história tem início, ela era uma mulher solteira com amigos íntimos mas sem um parceiro na vida, uma exigente e emancipada jovem de temperamento mercurial, uma amante da vida, dos cigarros e dos drinks, um fio desencapado, um clássico pavio curto incapaz de aceitar um não como resposta quando se tratava de ter os livros de seus sonhos.
Brilhante e espirituosa e apaixonada pela literatura inglesa, jamais conheci, na vida ou nos filmes uma leitora mais voraz. A moça era como uma esponja que absorvia todas as palavras, ou melhor, era como um sino: quando as pretinhas de um autor atingiam-na, ela simplesmente badalava! (rsrs)
Frank Doel era um lorde, aquele camarada certinho, de vida bem planejada, um pai de família, um homem metódico e avesso às confidências e demonstrações de afeto, que não saía da realidade nem a passeio. Na livraria Marks & Co ele tivera o seu primeiro e único emprego e administrava o negócio eficientemente, como comprador dos estoques da loja, gerente dos pedidos e entregas pelo correio e gestor de uma pequena equipe comprometida com um serviço de qualidade impecável.
Frank ficara viúvo no final da Segunda Guerra com uma filha pequena para criar e, dois anos depois, se casara com Nora, uma boa garota irlandesa que, além de o amar devotadamente e de lhe dar uma segunda filha, era uma mãe amorosa para a primeira.
imagem Columbia Pictures Corporation

Todas as noites marido e mulher jantavam em silêncio, sem muita conversa, depois dele dar uma primeira garfada cuidadosamente e elogiar o prato da vez. Sempre com as mesmas palavras – “muito bom, muito gostoso!” – e antes de começar a engraxar os sapatos e deixar a garrafa para o leite matinal na calçada do apartamento geminado de subúrbio onde viviam. Para driblar o tédio, o casal ia dançar à beira do rio Tâmisa.
Nesse contexto matrimonial um romance para valer do outro lado da cerca - ou do Atlântico! - não teria sido possível. Apesar de Helene ser nitroglicerina pura – é que as senhoras inteligentes são via de regra apaixonantes – para esse cidadão impecável ela não significava perigo, nem cultivá-la oferecia riscos à pacata e serena rotina conjugal, por causa da atlântica distância. Quem sabe a Helene não tenha sido “a pimenta nesse chocolate”? Um sonho impossível para Frank chamar de seu?
Ok. Tem gente que pensa que essa foto do jantar é tensa, que o Frank evita fazer contato visual com a esposa e que ela o olha um tanto amargamente”. Apesar dessa suposta “tensão”, no filme, o tempo todo, há uma sensação discreta, porém clara, de carinho entre os dois. O fato é que Frank e Nora possuíam um compromisso inquebrantável ainda que o pacto fosse vivido em um casamento feliz mas... silencioso. Qualquer outra mulher chegaria atrasada nessa foto.
Nora simplesmente não era uma entusiasta da leitura enquanto que o amor pela literatura inglesa demonstrado pela escritora americana combinava perfeitamente com o vasto conhecimento que o alfarrabista tinha sobre os livros que a moça desejava. Ou seja, a “química literária” de Helene e Frank foi retumbante e é claro que a paixão da moça pelas pretinhas despertou o interesse do livreiro e que suas cartas calorosas e muito engraçadas realmente o encantaram e divertiram. Mas ele passou a atender a cliente impecavelmente. E nada mais?
Bem... a ficha técnica de 84, Charing Cross Road jura de pés juntos que o filme é uma história real narrada através de uma correspondência comercial de livros de segunda mão que se transformou em amizade. Se fosse só ISSO ninguém teria assistido esse filme! Nele o que cativa é a sutileza das entrelinhas e dos entreditos, os sentimentos apenas insinuados pelas expressões faciais do elenco de gigantes, o sentido de seus olhares depois de ler uma carta, o significado oculto daquilo que fica apenas implícito nos textos das cartas e dos livros, o que não é dito no diálogo dos personagens que, aos poucos, vão ganhando vidas para chamar de suas e nos envolvendo nelas.
É claro que esses dois se cortejavam sutilmente nas pretinhas, teclavam em um região fronteiriça do flerte, se “paqueravam” com uma elegância e uma inocência que ficaram para trás no século passado. Note que até mesmo a expressão “paquerar” está fora de moda: hoje os jovens quando não estão “se azarando”, estão se “dando mole”(rsrs)
Também não é o caso de se cogitar se o link entre Helene e Frank teria sido amor ou amizade.Tudo bem que os cérebros humanos têm necessidade de organizar e a rotular coisas, pessoas e sentimentos. Mas pergunto: por que tudo tem que ser isso OU aquilo? Por que, de vez em quando, as coisas não podem ser isso E aquilo? Se bem que não percebo de que forma essa “simpatia quase amor” literária, fosse ela isso ou aquilo, poderia modificar o verdadeiro sentido dessa história simples, desse fiapinho de história que Helene Hannf transformou em um livrinho de memórias de cem páginas que se lê em poucas horas embora ele reúna vinte anos de correspondência entre a leitora e o livreiro.
Talvez um dos recados do filme seja que existem muitos tipos de amizade e muitos tipos de amor que não cabem em figurinos apertados. O poster que inaugura o artigo afirma que a heroína é apaixonada “por um lugar que desconhece, um estilo de vida que jamais experimentou e um homem que nunca viu”. Outra pergunta é : será que esses afetos à distância são possíveis? Essa amizade amorosa à distância era de verdade?
Pessoalmente eu não acredito em amor - @#$%&@! – sem contatos de primeiro grau (rsrs) Que me desculpem os poetas mas a compatibilidade física é fundamental: peles, cheiros, sabores. Se o mocinho virtual não tiver “pegada” e/ou se a mocinha epistolar padecer de mau hálito, não vai rolar na real. Mas embora eu seja de opinião que o amor para valer não suporta a distância, sobre essa questão a grande Cecília Meireles discorda veementemente de mim e muito bem argumenta nos versos do poema de nome Mensagem a um Desconhecido, abro as aspas:
Teu bom pensamento longínquo me emociona.
Tu, que apenas me leste,
acreditaste em mim, e me entendeste profundamente.
Isso me consola dos que me viram,
a quem mostrei toda a minha alma,
e continuaram ignorantes de tudo que sou,
como se nunca me tivessem encontrado.
Fecho as aspas. É que o tal do “amor” tem uma natureza empírica, ou seja, ele significa coisas diferentes para pessoas diferentes, em diversos graus e maneiras de realização. Seja lá como forem, os amores têm que ser vividos para serem explicados. Para a sabedoria popular “quem ama, cuida”, para o Bendl “o amor é simples”, para os poetas os amores eternos podem durar uma só noite, para a maioria dos casais o amor é compartilhar cada momento da vida, para outros ele só pode ser vivido em completa liberdade. 
Para mim estão valendo, sejam de amor ou de amizade, os relacionamentos saudáveis e positivos, desde que nos façam bem, nos tornem mais felizes, nos tragam novas e positivas emoções e tenham como base respeito e lealdade.
A bem da verdade, a Helene e o Frank, jamais confessaram um ao outro nas suas cartas que se amavam. Para quê tentar classificar, preto no branco, o encantamento, a chama, a infatuation que evidentemente sentiam um pelo outro se eram conscientes de que, fossem qual fossem tais sentimentos não teriam nem meia chance de se aprofundar?
Sim, esses dois se gostaram de um jeito antigo e não expresso necessariamente em palavras que as pessoas de hoje não compreendem. Durante décadas essa mulher solteira e esse homem casado - e pai de duas filhas - sem magoar ninguém, enriqueceram as existências um do outro e se fizeram muito bem.
A premissa do livro e do filme é que, através de cartas selecionadas, Helene foi capaz de reconstruir a história do vínculo profundo forjado entre ela e o livreiro. Ou seja, a chave dessa história e o seu poder emotivo moram na linguagem das cartas, na expressão pessoal dos personagens, na comunicação dos dois amigos.
Nora, a boa esposa de Frank admite que algum silêncio havia e/ou algum significado se perdia nas conversas matrimoniais. Em contraste, a linguagem e os significados que forjaram o vínculo entre Frank e Helene nas cartas, foram a cola que manteve a amizade por tantos anos, tão poderosa que Helene tinha medo de encontrar Frank e seus amigos pessoalmente e os desapontar e perder a credibilidade e o encanto textual. Por meio da ilusão literária e da sua capacidade de escrever, Helene se conectou com Frank em alguma esquina remota de sua alma funda de uma maneira que outros, como Nora, não conseguiam.
Talvez Freud explique porque o homem adulto, em vez de amadurecer por inteiro, retém na imaginação a ludicidade do menino e, na alma, algo do espírito aventureiro do jovem. Complicado! E aqui somos colocados pelo filme diante de outra velha questão: dizem os especialistas que o casamento é o túmulo dos revolucionários e das grandes paixões. Será?
Sucede que realmente é uma tarefa hercúlea essa conciliação da sexualidade com a domesticidade, de encontrar as especiarias capazes de acrescentar novos sabores ao amor institucional. Pois todos nós precisamos fundamentalmente de duas coisas antagônicas: de segurança emocional e de aventura e empolgação. Como encontrar em uma só pessoa a base, o significado, a família, a continuidade, sem abrir mão do romance tão gratificante emocional e sexualmente? Como introduzir o risco na vital segurança e o mistério na bendita intimidade?
Quem caminha ao lado de santas(os) milagreiras(os) capazes de provocar nos seus parceiros, pela estrada afora, interesse, entusiasmo, suspense e desejo ao mesmo tempo que aconchego e estabilidade, tem muita sorte. Poucos felizardos conseguem harmonizar compromisso e excitação, responsabilidade e brincadeira.
Para os românticos a intensidade vale mais que a estabilidade e para os realistas a permanência e a confiabilidade e a tranquilidade valem mais que a paixão. Mas seja lá qual for o caminho escolhido há que não esquecer que as relações amorosas são construídas sobre dois alicerces: entrega e autonomia, união e distanciamento. Segurança não significa absorção e a rotina não pode asfixiar. O impulso para o outro, isso que chamam de “erotismo”, brota de um necessário espaço entre os companheiros. Cada qual precisa ter seus próprios trabalhos, interesses, projetos, amigos, para que a “conversa” continue rolando.
Já ouvi de muita gente boa que a Helene deveria ter tomado um avião para Londres para conferir a “química das peles” e que se danasse o mundo. Mas depois de terem implodido um bom casamento o que eles fariam com a culpa? Essa história é sobre como as pessoas podem viver vidas dignas, confortáveis, bem abotoadas, produtivas e ainda assim encontrar uma doce e inocente fuga da rotina através de livros e letras.
O relacionamento desses dois era algo limítrofe de um flerte, palavras restritas ao papel, e, no entanto, era real e lhes fazia bem porque compartilham a mesma paixão pela palavra escrita. Eu sinceramente acho que, diante das suas circunstâncias, sem magoar ninguém e sem abrir mão da real nem do sonho, Frank Doel foi um camarada muito competente.
Quer saber? Aposto que Helene e Frank bem que sonharam conversar separados apenas por uma mesa e unidos pelo vinho bom, acreditando no hálito, no modular da voz, no mais fugidio dos olhares... Mas que maravilha que eles puderam estabelecer pelo menos essa bela conversa apesar de não estarem cara a cara, ampliando seus territórios e a possibilidade de aprendizado e de expressão.
Nesse filme nada é tenso e nele prevalece não exatamente uma “química” mas um senso de humor agradável, uma harmonia fina, uma intimidade intelectual entre Anne Bancroft e Anthony Hopkins, enquanto eles desenham com tintas claras os sentimentos sinceros de Helene e Frank, o quanto eles ansiavam pelas respostas um do outro, mesmo que a “tensão” fosse platônica, o romance fosse um vago e mal esboçado sonho e ambos perfeitamente cônscios da inviabilidade de um relacionamento mais estreito.
Mas nada disso os esmoreceu, embora seja possível adivinhar um certo lamento no subtexto das cartas. O filme nos mostra cabalmente como somos capazes de construir a imagem de alguém através das suas palavras que, sem dúvida, possuem um enorme poder.
Então... digamos que o filme narra sim uma pequena e etérea e platônica história de amor entre a escritora e o alfarrabista. Porém Nunca te Vi, Sempre te Amei, é muito mais que isso. É sobre como as pessoas se ajudam nos tempos difíceis com pequenos atos de bondade desde antes do mundo começar a ser pensado, é um script feito com profundo afeto e respeito – o espectador percebe isso com facilidade - pela história real que conta, pelos personagens que de fato a viveram, pelos livros, pela literatura. Pelas pessoas, de maneira ampla, geral e irrestrita. Pela vida.
Outro aspecto dessa história que chama a atenção é a tenacidade profissional de Helene, diferenciando-a da maioria das mulheres do seu tempo.
“Eu não acho que tinha escolha. Se escrever é a única coisa que você quer fazer e a única coisa que você gosta de fazer, então você escreve.”
Quanto mais eu leio o livro e vejo o filme e ouço a voz de Helene, com aquele tom que ela definia como “barítono de gim” mas que é atribuível aos seus incontáveis cigarros diários, mais entendo que a sua paixão pelos livros e pela sua profissão dá vida e calor a cada uma de suas palavras.
“Todos os meus scripts têm origens artísticas - balé, sala de concertos, ópera - e todos os suspeitos e cadáveres são muito cultos. Talvez eu escreva um roteiro sobre o negócio de livros raros e usados em sua homenagem. Você quer ser o assassino ou o cadáver?” (rsrs)
A correspondência de Helene com Frank decerto nos leva a percorrer a trilha peculiar de uma mulher sensível e inteligente através da literatura inglesa. Ao longo do caminho, no entanto, nossa diversão ao compartilhar sua educação literária é aprofundada pela narrativa humana que suas cartas tecem.
As cartas nos narram, sim, a aquisição de uma quantidade extraordinária de livros usados que vão desde os Diálogos Socráticos aos clássicos do século XIX, como Orgulho e Preconceito. Porém mais do que simplesmente uma troca de livros e valores, as missivas entre Helene e Frank nos descortinam que a diferença cultural e a distância geográfica não podem impedir que as amizades se desenvolvam.
Com certeza, é muita falta de noção ou excesso de solidão acreditar nos milhões de “amigos do Face” mas, por outro lado, nem sempre as relações são verdadeiras apenas por serem presenciais e nem sempre conhecemos pessoalmente todos os nossos verdadeiros amigos. Esse filme nos mostra como é possível construir laços afetivos através das pretinhas.
Possuidora de um senso de humor ímpar Helene vai, aos poucos, arrefecendo o conservadorismo dos de além mar e deixando Frank Doel à vontade para falar de seus projetos, do seu trabalho e do pessoal da livraria, de suas viagens e visitas às mansões seculares no campo inglês em busca de livros e também, é claro, sobre a família e a política. Um grande carinho e mais, uma intimidade real, vai surgindo entre os dois.
O prezado Frank Doel é um vendedor consumado e um profundo conhecedor da vasta gama de livros disponíveis na Marks & Co, demonstrando uma grande sensibilidade ao localizar possíveis trabalhos de interesse para a Helene. Ele compartilha o entusiasmo da moça pelos livros e é graças a essa sua óbvia reverência que ele se torna rapidamente o companheiro literário dos sonhos de Helene, uma espécie de cavaleiro andante.
A sua reserva eficiente e educada suaviza a correspondência e a sua importância na história não pode ser subestimada. Demonstrando paciência, gentileza e compreensão da cliente e da mulher ele faz brotar na moça uma espécie de dependência intelectual dele, um sentimento que ela não experimenta nas relações com seus outros amigos.
Esse enredo, que foi escrito quando as cartas já eram, infelizmente, uma arte em extinção, era um candidato a bestseller para lá de improvável. Portanto, o retumbante sucesso no cinema do minúsculo romance epistolar que Helene escreveu enquanto estava “deprimida por demais até para ir ao cinema”, a todos surpreendeu.
Trata-se de um filme, é claro, sobre livros e para corações alfabetizados mas à medida em que vamos conhecendo Helene e através dela Frank e sua esposa Nora, suas duas meninas, os funcionários da livraria, seus vizinhos e demais amigos, percebemos que os livros desejados, localizados, enviados e recebidos são os veículos para muito mais: amizade, afeição, generosidade, sabedoria e, em uma nota mais profunda, para a “conversa”, a comunicação humana. Em outras palavras, para todas as melhores coisas que se pode compartilhar nessa vida.
Sim, é triste que Helene e Frank nunca tenham se encontrado. Não era para ser ou, como dizem os árabes, não era “maktub!”; se por culpa do destino ou escolha deles você decidirá na continuação da conversa.


26/03/2019

Meu relacionamento sadomasoquista

retrato do Marquês de Sade - Mary Evans (sec. XIX)


Wilson Baptista Junior 
Ainda que possa chocar alguns de meus leitores mais pudicos, devo confessar constrangido que venho mantendo, e já há algum tempo, um perverso relacionamento sadomasoquista.
Não sei o que me impulsionou a revelá-lo ao mundo agora. Talvez o peso da consciência? Talvez alguma revolta íntima de algum oprimido sentimento bom que ainda subsiste em mim? Quem poderá medir as escuras profundezas da consciência humana?
Quando penso nisso me revolto, juro me comportar para nunca mais cair nesse abismo, às vezes consigo arduamente manter a resolução por muito tempo. Mas de repente o impulso inominável, tão forte que chega a me causar dor física, me domina, e deixo de resistir, ainda que chorando por dentro.
Quando isso acontece, nos horários mais inesperados, muitas vezes em pleno horário de trabalho, largo tudo, pego o meu carro e dirijo desesperadamente até um edifício num bairro chique de minha cidade. Que, por motivos óbvios, não revelarei aqui.
Entro no saguão do edifício, procurando não ser visto, mas muitas vezes não consigo evitar passar pela vergonha de ser reconhecido pelo porteiro, que me cumprimenta e me deixa seguir com um sorriso equívoco, de quem sabe bem o que vim procurar.
Chegando lá em cima, depois de ainda hesitar um pouco, toco a campainha, e sou recebido com um beijo pela minha dominatrix. Uma mulher bonita, de aspecto inocente, cabelos negros, tez pálida, olhos castanhos, cuja aparência delicada em nada sugere as profundezas do horror em que me fará mergulhar dali a pouco.
Enquanto ela se retira discretamente para vestir as roupas que a tradição consagrou para a ocasião, sou levado por uma moça gentil até uma espreguiçadeira, onde sou preso enquanto ela me pergunta se quero escutar um pouco de música.
Enquanto tento me acalmar embalado pelo som da orquestra, me assusto ao ver que a mesma moça traz, discreta e silenciosamente, uma bandeja cheia de instrumentos de tortura dos mais diversos tipos e a coloca ao lado da espreguiçadeira.
Antes que eu tenha tempo de me levantar e fugir, volta a protagonista, agora mascarada, toda protegida, enluvada de látex. E me pergunta se quero começar por uma picada de droga. Envergonhado, aceito, e relaxo o braço para a picada.
E ela, ainda com o mesmo ar inocente, em vez do braço inesperadamente crava uma e outra vez a agulha numa das minhas regiões mais sensíveis. A dor é excruciante. E, antes que eu tenha tempo de gritar, enfia-me na boca uma mordaça de borracha e metal.
Tendo-me ali, enfim, à sua mercê, drogado e incapaz de gritar, escolhe calmamente algum dos instrumentos para iniciar a sessão de tortura.
Tem de tudo ali; lâminas afiadíssimas, tenazes, puas, ferros de esquentar. E, quando não está satisfeita, recorre a muitos outros instrumentos maléficos que basta ela pedir e lhe são pressurosamente entregues pela ajudante, cujas feições gentis se transformam na expressão ávida da aprendiz de feiticeira já prelibando o dia em que ela também chegue ao papel de cruel dominatrix.
O terror faz-me perder a noção do tempo. Parece uma eternidade. E, pior, é ela quem decide quando parar. Pode ser meia hora, uma hora, às vezes mais ainda. A intensidade e a duração da tortura variam conforme a vontade e os impulsos dela. Eu sou apenas o escravo submisso. Não adiantam nem as famosas “palavras de segurança” usadas pelos praticantes do sadomasoquismo para parar quando a coisa fica perigosa demais.
Se, apesar da mordaça, consigo emitir algum abafado urro de dor, ela simplesmente ri (um sorriso que aparece nos olhos, já que a boca está escondida pela máscara, tripudia me chamando de fraco, e continua a tortura até ficar satisfeita.
Afinal, as pernas bambas, meio tonto, sou libertado da cadeira. E quando me levanto, procurando os meus óculos (que ela conservou reféns durante todo esse tempo) ela retira a máscara, sorri, e voltando à sua enganadoramente agradável primeira personalidade me pede gentilmente que não deixe de voltar.
Respiro fundo, faço das tripas coração para sorrir também, e com uma profunda sensação de alívio misturado com uma ponta de vergonha me despeço com um beijo da prima da Ana, minha dentista...

22/03/2019

Essa estrada





Ana Nunes
Eu não sei nada
nada nada dessa estrada.
Não reconheço essa terra batida
vermelha de confundir os olhos
nem essas margens barranqueiras
de capim protegidas
de flores azuis miudas
escapadas do seu verde cinza.
Não sei nada dessa estrada
nem para onde vai
e nem de onde me trouxe.
Se vim andando nos passos trôpegos
ou em carroça atrelada
ou em rangido de carro de boi
de chifres estranhos e rabo comprido.
Diga para mim menina linda
de cabelos e olhos pretos
que não sei nada dessa estrada
nada, nada
se ela sobe  ou desce
ou se vira para um lado
ou se vira para o outro.
Conte-me com seu olhar triste
para onde ela vai
se tem destino
ou se se perdeu no seu caminho.
Se tem um rio de percalço
ou sombra de árvore amiga
se contorna pedras grandes e antigas
se se perde longe no horizonte.
Não sei nada dessa estrada
nada, nada
quem por aqui passou
se sou a última caminhante
ou se no aguardo de outras gentes.
Se atravessa estreita pelo vale
ou se alarga na campina
se encontra bichos calmos
em pastos verdejantes
ou se continua deserta
no tracejado meio torto.
Não sei nada, nada
dessa estrada.
Se tem vento sorrateiro
que pinta de marrom sua paisagem
e se espera a chuva
para lavar tudo de verde
e se faz lama na terra batida
para guardar imagens de pés calcados.
Vou ficar por aqui um pouco
emprestando pedacinhos da sua solidão
menina linda de cabelos e olhos pretos
para você me falar dessa estrada
de que não sei nada
nada, nada dessa estrada

18/03/2019

De livros e distâncias


imagem www.amazon.com

Moacir Pimentel
Quando o Editor do Blog me sugeriu que escrevesse sobre o filme 84, Charing Cross Road – um roteiro adaptado do livro homônimo da escritora Helene Hannf – e que teve no Brasil o título de Nunca te Vi, Sempre te Amei, confesso que fiquei em dúvida. Não é fácil definir porque esse filme é bom: se é por causa do roteiro, da atuação, da direção, dos contrastes entre duas cidades e culturas diversas nas quais ele rola e/ou da “tensão” entre as personalidades tão diferentes dos seus protagonistas.
Mas eu me diverti tanto rascunhando essa resenha que ela se prolongará, quando o filme acabar, pelas belezas de Londres, a cidade dos sonhos da autora americana, descrita por ela tanto nas páginas de 84, Charing Cross Road quanto no seu segundo livro, de nome A Duquesa de Bloomsbury, que eu terminei lendo para me sentir menos órfão da Helene quando o filme acabou. A pergunta é: você assistiu esse filme?
Se sua resposta for “sim”, entenderá porque ele merece muita conversa. Se for “não” e se você gosta de livros, se acredita que eles revelam muito sobre o mundo e aqueles que o habitam, não deixe de ver. Se você admira os atores do elenco – Anthony Hopkins, Anne Bancroft e Judi Dench - assista-o! Se você tem respeito pela palavra escrita e afeto pela leitura, não perca esse filme. Se você gosta de uma boa história não tem como não apreciar 84 Charing Cross Road.
É claro que, como os bonequinhos de O Globo, há quem aplauda o filme de pé e quem adormeça durante a segunda cena, pois trata-se de um “romance epistolar”. Isso mesmo: o enredo é sobre uma troca de cartas. Só que graças à sua escrita fácil, concisa e elegante, tais cartas afetuosamente elaboradas ao longo de mais de vinte anos refletem os anseios, sonhos, sentimentos, necessidades, alegrias e tristezas de duas pessoas que se conheciam intimamente sem nunca terem se encontrado.
Naturalmente que uma história sobre a amizade estreita e real, porém a longa distância, entre dois bibliófilos entusiasmados - a escritora Helene Hannf de Nova York e o alfarrabista londrino Frank Doel - só poderia resultar em um filme lento e relaxante. Tudo bem que, na nossa era pós moderna de sexo fácil nas relações da vida real e de sexo constante nas telas, um filme que narra uma looooonga correspondência durante a qual um sentimento platônico se desenvolveu gradualmente entre duas pessoas que nunca se encontram pessoalmente, é mesmo...”bizarro”, como diz a juventude (rsrs)
Mas se você está pensando que nenhum tema poderia ser menos excitante e/ou cinematográfico do que cartas, permita que lhe diga que, por um milagre da escrita, da atuação e da direção, essa trama literária foi transformada em um enredo bonito enquanto as trocas de teclas entre os dois protagonistas gradualmente se tornam mais pessoais, embora se saiba, desde sempre, que isso não está realmente nos levando para nenhum tipo de “ação”, para nada além de uma troca de ideias e pensamentos, e que o relacionamento quase romântico que se segue nunca se desenvolverá além do estado epistolar (rsrs) Mas não importa.
Porque os personagens são desconcertantes e calorosamente reais - mesmo em se considerando que a autora tenha tomado algumas liberdades poéticas na elaboração do seu mito pessoal – e o roteiro é astuto o suficiente para nos revelar, ao fim e ao cabo, o sentido verdadeiro da correspondência.
Já ouvi de muita gente boa que o filme é por demais “livresco” com o que, suponho, queiram dizer que é chato e cansativo. Mas afinal, o que há de errado com Dona Literatura? Com uma história de amor na qual os quase amantes não se encontram? Com uma protagonista diferente de todas que já conhecemos, uma romântica borbulhante e cáustica que amou sua Nova York adotada, a sua Inglaterra literária sonhada e, acima de tudo, as palavras? Qual é o problema com livros, esses refúgios especiais contra as pressões diárias que sofremos?
Talvez “84” seja um filme para “velhinhos em formação”, para quem gosta de velhas livrarias empoeiradas, de sebos e do atendimento e da cortesia impecáveis que os funcionários da livraria londrina Marks & Co demonstravam a Helene Hanff mesmo ela estando do outro lado do Atlântico.
fotografias Moacir Pimentel

Tais casas onde moram livros e gente que gosta deles têm um charme pitoresco e nelas experimentamos a total cumplicidade de seus habitantes no crime delicioso que é gostar de bobices como livros antigos, livros bonitos, livros usados e lidos não se sabe por quantas pessoas. É disso que se trata!
Esse filme tenta nos fazer entender o que é um livro de segunda mão, explorando os sentimentos do livreiro e da sua cliente, um em Londres e a outra em Nova York, nos fazendo participar da caça, da perseguição e do prazer da captura de belos e raros exemplares, etapas que nunca podem ser exatamente planejadas e/ou previstas, e compartilhar a comunhão que se segue à posse do livro desejado com todos aqueles que leram as suas páginas antes de nós.
Bem sei que nem todos apreciam, como eu, a literatura epistolar, a leitura das cartas alheias, muitas vezes íntimas, trocadas por personalidades de tempos e lugares tão diversos dos nossos. São páginas que nos dão a oportunidade de transitar por histórias de amor e amizade, de nos inteirar de relações profissionais, de participar de viagens fabulosas e de experiências singulares, de desbravar territórios intermediários entre o documento e a ficção, entre a literatura e a história, só que no ritmo pausado das conversas, testemunhando lances de humor e momentos de lirismo.

Já li cartas fantásticas como, por exemplo, as do escritor Ernest Hemingway para suas mulheres e amigos, as de Vincent van Gogh para seu irmão Theo e vice versa, as das pintoras Frida Kahlo e Georgia O’Keefe para seus amantes Diego Rivera e Alfred Stieglitz, as dos escritores James Joyce e Machado de Assis, as dos poetas John Keats e Fernando Pessoa etc, etc, etc. Fiquei viciado (rsrs)

Porém esse filme trata das cartas trocadas por pessoas reais e comuns, desconhecidas, de suas pretinhas entre as datas e assinaturas, divertidas, pungentes, sinceras ao descrever tanto seu amor pelos livros quanto o seu dia a dia. De como, entre outubro de 1949 e dezembro de 1968, o alfarrabista Frank Doel forneceu à roteirista Helene Hannf os autores do seu encanto e os raros livros que ela amava mais que tudo na vida. É comovente pensar que a seis mil e quinhentos quilômetros de distância um do outro o casal de amigos perseverou e se correspondeu sem intervalos durante todos esses anos.

É justamente pela sua simplicidade que essa correspondência seduz e gera interesse. Quem leu o livro percebe que o filme consegue a proeza de ser absolutamente leal, sem se tornar maçante ou de forma alguma entediante, às cartas trocadas por esses dois, que tanto se parecem com qualquer um de nós que os lemos e/ou assistimos, alternando os parágrafos de suas cartas e os trechos literários recitados com seus diálogos cotidianos.

A narração através de imagens dessa longa amizade é simples e seu brilho mora no desempenho inspirado e cheio de nuances dos atores e nos seus ambientes, sejam as ruas agitadas de Nova York e da bela Londres ou a pacífica livraria ou as mansões empoeiradas, onde Frank vai à caça de livros antigos.
Na França, 84, Charing Cross Road manteve seu título original em inglês, em Portugal foi exibido como A Carta do Adeus e nos países de língua espanhola se chamou La Carta Final. Seu nome brasileiro de Nunca Te Vi, Sempre Te Amei não é, penso eu, uma tradução incorreta, embora apenas parcial, da parte positiva da palavra escrita na relação do casal de amigos do século passado e, se pararmos para pensar mais detidamente, nas interações no atual mundo virtual e digital, no éter, essa recente ampliação do território que nos faz tão nós mesmos: o contato com o outro.
Esse “outro” que, diferentemente daquilo que cogitou Descartes no seu subjetivismo de pré-moderno –” Penso, logo existo”! - também nos molda, constrói e amplia e inventa. Ou seja: Você me pensa, logo existo! Deletar esse “você” aí, o tão falado “outro” é um eficaz caminho de autoanulação. Não fora por Frank e Helene terem dado o ar das graças deles nas caixas de correio um do outro, uma parte muito importante e rica das vidas de ambos não teria acontecido. E daí?
Daí que nós não saberíamos o quanto ambos apreciavam alguns de nossos autores prediletos, nem perceberíamos que Helene e Frank não se corresponderam para mudar as próprias vidas, que já estavam completas, mas foram se transformando pela força das próprias palavras cheias de calor porque não sabiam ser secos, ser pela metade, mas tentavam “ser por inteiro”- como ensina o maior poeta lusitano - em cada pequena coisa que faziam, inclusive em uma simples carta.
O certo é que, sem algazarra, os personagens crescem diante de nossos olhos graças às pequenas cartas que se escreviam e aos grandes livros que devoravam e tudo isso, neles e em nós, sulca terra fértil, forma novos mundos, qualquer coisa que a luz não conhecia até então. Por isso esse filme é fantástico.
Eu assisti Nunca te Vi, Sempre te Amei pela primeira vez em 1987. Naquele ano foram lançados dois filmes que narravam histórias de homens casados e mulheres solteiras. 84, Charing Cross Road era um deles. E o outro? Quanta diferença! Foi um sucesso retumbante e era sobre uma agressiva e liberada e loura executiva – a Glenn Close - que tem uma noite de tórrido sexo com um sujeito bem casado e devotado à belíssima esposa – o Michael Douglas - que, no entanto, sozinho na cidade e depois de tomar umas e outras, resolveu experimentar mais ação, se dando ao luxo da adrenalina de uma “inofensiva” caça primitiva. Só que deu tudo errado porque a moça gostou muuuuito e gamou e pirou e tentou se matar, sequestrou, invadiu, tentou assassinar todo o elenco e chegou a fazer um strogonoff do coelho de estimação da família às voltas com uma doentia... Atração Fatal!
Bombou e é claro que eu gostei – e se já não o fosse teria me convertido em um marido fiel (rsrs) - mas não me lembro mais dos nomes de nenhum dos personagens. Porque Atração Fatal é diversão na veia enquanto que “84” é aprendizado. Apesar do grande Bandeira nos ensinar que “os corpos se entendem muito melhor do que as almas”, aquilo que o filme nos s-o-l-e-t-r-a e desenha é que mesmo que nunca se encontrem pessoalmente, os humanos conseguem, através da escrita e da leitura, saber como os outros são por dentro.
Ninguém duvida que essas duas almas se entendiam, embora a Helene tenha chegado no número 84 da Rua Charing Cross tarde demais para o Frank. Esse é um filme de mosaico delicado no qual os sentimentos são mascarados pelo humor -cáustico dela e sutil dele - enquanto que a poesia e a filosofia são verbalizadas caudalosamente e tudo isso se passa apenas nas idas e vindas de missivas entre a Inglaterra e os EUA.
Nos seus noventa minutos não há qualquer pitada de pirotecnia e de efeitos especiais, nenhuma perseguição seguida de assassinato, nada de pegas de carros, de troca de tiros ou de explosões de qualquer espécie, não tem mistério a ser desvendado ou crime a ser solucionado, não rola nem um segundo de paixão, de traição, de ciúme, inexiste o clássico triângulo amoroso e não acontece nenhuma tragédia. Sexo, então, é igual a zero! Não tem hard rock, drogas, catástrofes, pânico, epidemia, violência, traumas de infância. Nada disso! Não parece muito promissor, não é mesmo? (rsrs)
Na telona as mudanças ocorrem apenas com a passagem natural do tempo na vida dos personagens, sem heróis nem vilões, sem mocinhos nem bandidos, sem suspense nem depressão, apenas duas pessoas vivendo as suas vidas e envelhecendo e cuidando uma da outra.
E, no entanto, o filme funciona e o público se identifica com os seus anti-heróis, que o atravessam calmamente dentro da livraria londrina empoeirada e/ou dos seus pequenos apartamentos, com breves incursões nas casas e vidas abafadas dos coadjuvantes. Talvez porque os personagens sejam, de fato, muito humanos e, portanto, muito parecidos nas suas vidinhas de nada com aqueles que os assistem no escurinho do cinema ou no conforto do sofá. Mesmo assim a descoberta do microcosmo da vida privada de cada um deles é uma experiência interessante.
É fascinante desvendar essa impetuosa, independente e batalhadora americana que escreve de uma forma eloquente, vivaz, apaixonada, quase furiosa, para um sereno, tranquilo e cinzento senhor londrino que, por sua vez, responde às cartas da moça de um jeito profissional, comercial e cortês enquanto lhe envia os seus sonhos de consumo: livros velhos! É divertido testemunhar a Helene transformando em uma aquarela multicor a cinzentice do alfarrabista.
imagens pininterest.com / youtube

Esse enredo é um exemplo de como o cinema pode explorar o movimento das almas, as marés dos personagens através de suas atividades e preocupações cotidianas em diferentes momentos da vida. O filme não persegue a glória e foge do drama e em vez disso leva o espectador para o prazer tranquilo da comunicação humana e, assim como acontece quando uma boa conversa acaba, fica-se com saudade quando rolam os créditos.
À falta de grandes acontecimentos, Nunca Te Vi Sempre Te Amei conversa sobre literatura e alguns fatos minúsculos e muitas coisas pequenas e mostra tudo isso com uma sensibilidade a toda prova, em um trabalho cativante que muito nos faz pensar, ainda mais hoje, nessa era virtual de trocas digitais, do que fez quando foi lançado, há trinta anos atrás.
Não, 84 Charing Cross Road não é Indiana Jones ou Casablanca, mas isso não quer dizer que essa história não nos ofereça aventura e/ou encantamento: o filme tem qualidades excepcionais. Ele poderia ser definido como o melhor já realizado sobre os livros e a leitura. Não que haja muita concorrência nessa categoria (rsrs) pois a sensação silenciosa de se perder em um livro é algo difícil de traduzir no cinema.
Mas “84” conseguiu subir os degraus da fama e fez furor como prosa, peça de teatro, seriado nas telinhas e filme nas telonas e foi capaz de pegar leitores e espectadores pelo pé ao descrever sensações e emoções, escondidas atrás da inteligência de uma trama que, a rigor, não seria capaz de dar origem sequer a uma crônica. Exatamente como a vida da maioria das pessoas.
Confesso que enquanto revia o filme para poder rascunhar esse artigo, de saída me senti muito idoso (rsrs) Lembrei das cartas que escrevi para a minha então namorada e para minha saudosa mãe, lá da Ásia, nos últimos anos da década de 70 e nos primeiros da seguinte como se as tivesse enviado há séculos atrás. Note que embora o enredo desse filme tenha começado há pouco mais de meio século, ele trata de coisas muito esquisitas, muito antigas, quase pré-históricas, já superadas pela tecnologia de hoje: livros e cartas e romantismo. Coisas de velho!
É claro que o filme adquiriu novos sentidos depois do advento da era digital, na qual muitos questionam o futuro dos livros reais face à concorrência dos eletrônicos. Em tempos digitais, ninguém mais quer saber de discos, de filmes, de livros, de bobices físicas, que só ocupam espaço e juntam poeira. Está tudo na “nuvem”.
Quem precisa colocar uma carta no Correio para uma livraria, encomendando um livro? Fala sério! Hoje terminamos comprando versões digitais para ler no computador mais próximo. O problema é que não dá para trocar figurinhas e virar amigo de infância dos funcionários da Estante Virtual (rsrs) Porém e paradoxalmente, as pessoas continuam se correspondendo. De fato, talvez hoje elas se escrevam, embora taquigraficamente, ainda mais do que em 1949, quando Helene Hanff datilografou a primeira das centenas de cartas para o seu livreiro inglês.
imagem www.bellmorelibrary.org


Note que, em um mundo de plugados, a palavra “carta” passa a descrever a maior parte do que postamos através de zzzzzzapps, mensagens de texto, postagens no Facebook, e-mails etc. Praticamente todos hoje em dia trocam teclas. O filme da década de 80, consequentemente, perdeu um pouco de seu glamour, pelo contraste com a vida virtual que agora conhecemos.
Porém, antes da internet, e antes das passagens aéreas se tornarem acessíveis a boa parte das pessoas, havia sim o romance epistolar, o amor que se alimentava, durante longo tempo, meramente de palavras escritas a mão em epístolas cuidadosamente redigidas em blocos de papel de carta, que desapareceram das papelarias por total desuso.
Ou seja, quando vimos o filme pela primeira vez, esses amores antigos e escritos eram ainda credíveis, pois geralmente não se transformavam logo em contatos de primeiro grau já que a distância o impedia. Fala-se muito, hoje, em romances que se desenvolveram através de contatos pela internet. Conheço os personagens de alguns desses amores que podem ser descritos como “transatlânticos”. Mas isso, hoje, não importa tanto, porque a internet e as viagens reduziram as distâncias. Assim, o romance epistolar pela internet logo se transforma em um namoro normal, presencial, ou termina. 
Não acho que o virtual substitua ou iguale-se ao concreto, nem que o amor e a amizade idealizados substituam os afetos construídos e consolidados na real. Mas o fato é que o virtual já é real entre nós, já se fez concretude e portanto acredito que sentimentos verdadeiros possam brotar em quaisquer paisagens exigindo sempre as mesmas coisas para se fortalecerem: afinidades, compreensão e divergências, o território no qual o respeito mútuo é praticado.
Tudo bem que a web não é um mar de rosas e nessas paragens nem tudo é crível e benéfico e civilizado, mas fazer o quê? O espírito humano se projeta em todas as coisas que o homem faz, cheias das vulnerabilidades e das deformidades que o atormentam e/ou o deliciam. Se não fosse a internet, seria outra a paisagem que ensejaria o mesmo efeito final: as consequências, para o bem e para o mal, da interação humana.
Porém... se menos gente vai hoje às agências dos Correios e mais gente tem à sua disposição a rede mundial para trocar mensagens, por mais convenientes que elas sejam, não chegam aos pés de uma boa carta à moda antiga. E o fato é que podem mudar os meios e a linguagem mas os livros e as cartas vão existir sempre porque a comunicação sempre foi o fundamento de todas as relações humanas. Fazer contato é da nossa natureza!
A nossa espécie simplesmente tem a bendita mania de dar trela para estranhos. Bem que tentamos nos bastar mas não conseguimos: sempre precisamos e precisaremos de gente, gostamos de gente, quanto mais estranha for ou quanto menos estranhos nos fizer sentir que somos, melhor! É apenas humana essa fome de conhecer pessoas e as paisagens delas, esse apetite de entender as nossas próprias imagens, a fissura de ver, tocar, cheirar e comer da vida um quase tudo.
O homem é a espécie mais bem sucedida na Terra, evolutivamente, por causa justamente da sua natureza social. Simplesmente herdamos essas habilidades de comunicação e cooperação, as qualidades mais importantes para a sobrevivência em nosso passado evolutivo. Nenhum outro ser vivo sobre a Terra tem a capacidade de se conectar, de colaborar de maneira tão refinada quanto os humanos.
Essa mente humana “social” é cientificamente defendida, inclusive, pela descoberta dos tais “neurônios espelhos” que permitem aos bichos homens experimentar a empatia e identificar-se com outros humanos. É por isso que lemos romances, vamos ao teatro, assistimos filmes, acompanhamos seriados, escrevemos cartas, rascunhamos posts e comentários e postamos no “Face” (rsrs)
Enquanto houver humanos nesse mundo estranhos começarão novas conversas, se conhecerão e então novas relações positivas e/ou negativas surgirão dependendo do tempo, da interação e da comunicação, que desempenha um papel vital na vida humana, não apenas facilitando o processo de compartilhamento de informações em todos os campos do conhecimento, mas também ajudando-nos a desenvolver relacionamentos com pessoas de todas as latitudes, a expressar nossas ideias e sentimentos e, ao mesmo tempo, a entender a emoção e os pensamentos alheios.
Portanto uma das mensagens de Nunca Te Vi, Sempre Te Amei é que a importância da comunicação não pode ser subestimada e que o seu aprendizado é essencial para melhorar e alargar as nossas vidas. Esse filme é sobre como pessoas que nunca poderemos encontrar - como Charles Dickens e Tolstoi e Guimarães Rosa e Machado de Assis e Helene Hanff - podem enriquecer nossas vidas.
Na era da Internet, esta história tem uma voz particularmente significativa porque o amor à palavra escrita é intrínseco ao tecido da narrativa. Foi esse amor, capturado tão agudamente nas cartas que Helene e Frank trocaram, aquilo que tocou os corações de milhões em todo o mundo. Como dizia Helene:
“E, pelo menos nesse momento, eu não trocaria as centenas de livros que li pelos poucos que eu conheço quase de cor”.
Continuaremos a conversar sobre a lenta aquisição da coleção de livros usados da escritora e essa “correspondência comercial” cheia de vida, humor e humanidade que rolou desde a austeridade do pós-guerra até o auge dos Swinging Sixties – viva o rock ‘n’ roll ! – no próximo capítulo da resenha.