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Moacir Pimentel
O cartaz à porta do post pertence a um filme que marcou a nossa
juventude: Nunca te Vi, Sempre te Amei. É
difícil, convenhamos, escrever sobre um filme no qual Anne Bancroft, Anthony
Hopkins e Judy Dench dotam de carne e alma os protagonistas de uma história
tocante e sedutora com o sabor dos biscoitos da infância, quando tudo era
perfeito, delicado e confortável, com o cheiro dos sebos e de seus livros
empoeirados, com o encanto do velho mundo e o mistério das emoções dos
personagens, com a alegria da vida e o travo dos seus pedaços amargos, com o
som dos diálogos e do silêncio de belas cartas.
Mas pergunto: como poderia qualquer filme com Anne Bancroft e Anthony
Hopkins e Judy Dench dar errado? Pelamordedeus! O prezado Anthony - aqueeeele Hanibal canibal - está impecável como o contido
Frank Doel, o gerente da Marks & Co, uma livraria localizada em Londres,
onde todos os endereços começam pelo número. Daí o seu título original: 84, Rua
Charing Cross. Ele é o companheiro ideal para a exuberante e inesquecível
Helene, cometida por Anne Bancroft, que aliás nasceu para interpretar a
dualidade de intelecto/coração da escritora/leitora
voraz que em vão procurava por edições baratas dos grandes títulos da
literatura inglesa nas livrarias de Nova York.
Devo confessar que ao assistir à performance da atriz eu simpatizei
ainda mais com a protagonista que, aqui entre nós e baixinho, é um pouco áspera
demais para o meu gosto no livro. A atriz soube deixar a persona mais
divertida, mais moleca, mais carismática e empática, com o sorriso acolhedor de
uma mulher de fácil amizade e convívio, desde a juventude até a meia idade, se
voltando para a câmara e falando para os espectadores enquanto que, na verdade,
se dirige a um cara que ela nunca vira, mas que, de alguma forma, sempre amara.
O certo é que Anne Bancroft dá à sua Helene coração e espírito e alegria
contagiantes e não hesita em cruzar a linha vermelha do politica e burramente
correto enquanto Anthony Hopkins, todo restrição e modéstia, carrega com
valentia a alma romântica de Frank Doel. Aliás esse Frank de Anthony Hopkins
tem vários gestos do Doutor Hannibal Lecter de O Silêncio dos Inocentes. Pudera! Anthony Hopkins é sempre ele
mesmo – seja fazendo um assassino, um mordomo, um ricaço ou um funcionário de
uma livraria da Rua Charing Cross.
Mas o fantástico é que, nessa sua ininterrupta e extraordinária
representação de si mesmo, ele consegue nos dar excelentes atuações e está
absolutamente perfeito como o inglês sério, sisudo, convencional, cinzento,
como eram os ilhéus na imaginação das jovens intelectuais americanas da década
de 40. Não há como não gostar dessa figura tão imaculadamente britânica, que se
encanta com a compradora compulsiva de seus velhos livros do outro lado do
Atlântico.
Já a maravilhosa Judi Dench não é deixada para trás, como a sábia e
contida e amável Nora, a esposa irlandesa de Frank, que tudo intui, tudo vê,
tudo sabe mas nada diz e, ainda assim, cumpre com galhardia a difícil tarefa de
estar lá para justificar a paisagem emocional da vida de seu marido, e faz isso
modesta mas completamente nas mais ínfimas cenas.
Por mais leve que seja o enredo desse filme, seus personagens conseguem
se comunicar com as pessoas: o entusiasmo e a impulsividade da moça, sua espontaneidade, sua
capacidade de ser emocionalmente livre e disponível para várias nuances de
sentimento e, equilibrando a trama, o bom senso de Nora e as tranquilidade e correção
das reações de Frank, são o sal do filme e dotam-no com a textura da vida real.
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Helene Hanff nasceu em 1916, na Filadélfia, filha de uma família
judaico/cristã de fãs do teatro. Ela viveu suas primeiras décadas contra o pano
de fundo da crescente ambição feminista, sonhando em se tornar uma dramaturga.
“Eu escrevia excelentes diálogos, mas não conseguia inventar uma
história nem para salvar meu pescoço”.
No final da década de 1940, a vida de Helene Hanff era uma rotina tão
sombria quanto as perspectivas de sua carreira. Aos trinta e três anos, ela mal
conseguia se manter teclando roteiros para programas de televisão. O seu
problema mais premente era não ter dinheiro suficiente para comprar os livros
que sua alma faminta de ratinha de biblioteca exigia. Essa situação financeira precária é uma constante nas cartas da moça que
trabalhava “em casa, sem calefação, e
usando suéteres puídos pelas traças” com um cinzeiro transbordante do lado
do cotovelo e a garrafa de gin nunca fora do alcance das mãos.
Quando a história tem início, ela era uma mulher solteira com amigos
íntimos mas sem um parceiro na vida, uma exigente e emancipada jovem de
temperamento mercurial, uma amante da vida, dos cigarros e dos drinks, um fio
desencapado, um clássico pavio curto incapaz de aceitar um não como resposta
quando se tratava de ter os livros de seus sonhos.
Brilhante e espirituosa e apaixonada pela literatura inglesa, jamais
conheci, na vida ou nos filmes uma leitora mais voraz. A moça era como uma
esponja que absorvia todas as palavras, ou melhor, era como um sino: quando as pretinhas
de um autor atingiam-na, ela simplesmente badalava! (rsrs)
Já Frank Doel era um lorde, aquele camarada certinho, de vida bem planejada, um pai de
família, um homem metódico e avesso às confidências e demonstrações de
afeto, que não saía da realidade nem a passeio. Na
livraria Marks & Co ele tivera o seu primeiro e único emprego e
administrava o negócio eficientemente, como comprador dos estoques da loja,
gerente dos pedidos e entregas pelo correio e gestor de uma pequena equipe
comprometida com um serviço de qualidade impecável.
Frank ficara viúvo no final da Segunda Guerra
com uma filha pequena para criar e, dois anos depois, se casara com Nora, uma
boa garota irlandesa que, além de o amar devotadamente e de lhe dar uma segunda
filha, era uma mãe amorosa para a primeira.
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Todas as noites marido e mulher jantavam em silêncio, sem
muita conversa, depois dele dar uma primeira garfada cuidadosamente e elogiar o
prato da vez. Sempre com as mesmas palavras – “muito bom, muito gostoso!” – e antes de começar a engraxar os
sapatos e deixar a garrafa para o leite matinal na calçada do apartamento
geminado de subúrbio onde viviam. Para driblar o tédio, o casal ia dançar à
beira do rio Tâmisa.
Nesse contexto matrimonial um romance para valer do outro
lado da cerca - ou do Atlântico! - não teria sido possível. Apesar de Helene
ser nitroglicerina pura – é que as senhoras inteligentes são via de regra
apaixonantes – para esse cidadão impecável ela não significava perigo, nem
cultivá-la oferecia riscos à pacata e serena rotina conjugal, por causa da
atlântica distância. Quem sabe a Helene não tenha sido “a pimenta nesse
chocolate”? Um sonho impossível para Frank chamar de seu?
Ok. Tem gente que pensa que essa foto do jantar é tensa, “que o Frank evita fazer contato visual com a esposa e que ela o olha um
tanto amargamente”. Apesar dessa suposta “tensão”, no
filme, o tempo todo, há uma sensação discreta, porém clara, de carinho entre os
dois. O fato é que Frank e Nora possuíam um
compromisso inquebrantável ainda que o pacto fosse vivido em um casamento feliz
mas... silencioso. Qualquer outra mulher chegaria atrasada nessa foto.
Nora simplesmente não era uma entusiasta da leitura enquanto que o amor
pela literatura inglesa demonstrado pela escritora americana combinava
perfeitamente com o vasto conhecimento que o alfarrabista tinha sobre os livros
que a moça desejava. Ou seja, a “química literária” de Helene e Frank foi
retumbante e é claro que a paixão da moça pelas pretinhas despertou o interesse
do livreiro e que suas cartas calorosas e muito engraçadas realmente o
encantaram e divertiram. Mas ele passou a atender a cliente impecavelmente. E
nada mais?
Bem... a ficha técnica de 84, Charing Cross Road jura de pés juntos que o
filme é uma história real narrada através de uma correspondência comercial de
livros de segunda mão que se transformou em amizade. Se fosse só ISSO ninguém teria assistido esse filme! Nele o que
cativa é a sutileza das entrelinhas e dos entreditos,
os sentimentos apenas insinuados pelas expressões faciais do elenco de gigantes,
o sentido de seus olhares depois de ler uma carta, o significado oculto daquilo
que fica apenas implícito nos textos das cartas e dos livros, o que não é dito
no diálogo dos personagens que, aos poucos, vão ganhando vidas para chamar de
suas e nos envolvendo nelas.
É claro que esses dois se cortejavam sutilmente nas
pretinhas, teclavam em um região fronteiriça do flerte, se “paqueravam” com uma elegância e uma inocência que ficaram para
trás no século passado. Note que até mesmo a expressão “paquerar” está fora de moda: hoje os jovens quando não estão “se azarando”, estão se “dando mole”(rsrs)
Também não é o caso de se cogitar se o link entre Helene e
Frank teria sido amor ou amizade.Tudo bem que os cérebros
humanos têm necessidade de organizar e a rotular coisas, pessoas e sentimentos.
Mas pergunto: por que tudo tem que ser isso OU aquilo?
Por que, de vez em quando, as coisas não podem ser isso E aquilo? Se bem que não
percebo de que forma essa “simpatia quase amor” literária, fosse ela isso ou
aquilo, poderia modificar o
verdadeiro sentido dessa história simples, desse fiapinho de história que Helene Hannf transformou em um
livrinho de memórias de cem páginas que se lê em poucas horas embora ele reúna
vinte anos de correspondência entre a leitora e o livreiro.
Talvez um dos recados do filme seja que existem muitos tipos de amizade
e muitos tipos de amor que não cabem em figurinos apertados. O poster que
inaugura o artigo afirma que a heroína é apaixonada “por um lugar que desconhece, um estilo de vida que jamais experimentou
e um homem que nunca viu”. Outra pergunta é : será que esses afetos à distância são possíveis? Essa amizade
amorosa à distância era de verdade?
Pessoalmente eu não acredito em amor - @#$%&@! – sem
contatos de primeiro grau (rsrs) Que me desculpem os poetas mas a
compatibilidade física é fundamental: peles, cheiros, sabores. Se o mocinho
virtual não tiver “pegada” e/ou se a mocinha epistolar padecer de mau hálito,
não vai rolar na real. Mas embora eu seja de opinião que o amor para valer não
suporta a distância, sobre essa questão a grande Cecília
Meireles discorda veementemente de mim e muito bem argumenta nos versos do
poema de nome Mensagem a um
Desconhecido, abro as aspas:
Teu bom pensamento longínquo me emociona.
Tu, que apenas me leste,
acreditaste em mim, e me entendeste profundamente.
Isso me consola dos que me viram,
Isso me consola dos que me viram,
a quem mostrei toda a minha alma,
e continuaram ignorantes de tudo que sou,
como
se nunca me tivessem encontrado.
Fecho as aspas. É que o tal do “amor”
tem uma natureza empírica, ou seja, ele significa coisas diferentes para
pessoas diferentes, em diversos graus e maneiras de realização. Seja lá como forem, os amores têm que
ser vividos para serem explicados. Para a sabedoria popular “quem ama, cuida”, para o Bendl “o amor é simples”, para os poetas os amores
eternos podem durar uma só noite, para a maioria dos casais o amor é compartilhar
cada momento da vida, para outros ele só pode ser vivido em completa liberdade.
Para mim estão valendo, sejam de amor ou de amizade, os relacionamentos
saudáveis e positivos, desde que nos façam bem, nos tornem mais felizes, nos
tragam novas e positivas emoções e tenham como base respeito e lealdade.
A bem da verdade, a Helene e o Frank, jamais confessaram um
ao outro nas suas cartas que se amavam. Para quê tentar classificar, preto no
branco, o encantamento, a chama, a infatuation
que evidentemente sentiam um pelo outro se eram conscientes de que, fossem qual
fossem tais sentimentos não teriam nem meia chance de se aprofundar?
Sim, esses dois se gostaram de um jeito antigo e não
expresso necessariamente em palavras que as pessoas de hoje não compreendem.
Durante décadas essa mulher solteira e esse homem casado - e pai de duas filhas
- sem magoar ninguém, enriqueceram as existências um do outro e se fizeram
muito bem.
A premissa do livro e do filme é que,
através de cartas selecionadas, Helene foi capaz de reconstruir a história do
vínculo profundo forjado entre ela e o livreiro. Ou seja, a chave dessa
história e o seu poder emotivo moram na linguagem das cartas, na expressão
pessoal dos personagens, na comunicação dos dois amigos.
Nora, a boa esposa de Frank admite que algum silêncio havia e/ou algum significado
se perdia nas conversas matrimoniais. Em contraste, a linguagem e os
significados que forjaram o vínculo entre Frank e Helene nas cartas, foram a
cola que manteve a amizade por tantos anos, tão poderosa que Helene tinha medo
de encontrar Frank e seus amigos pessoalmente e os desapontar e perder a
credibilidade e o encanto textual. Por meio da ilusão literária e da sua
capacidade de escrever, Helene se conectou com Frank em alguma esquina remota
de sua alma funda de uma maneira que outros, como Nora, não conseguiam.
Talvez Freud explique porque o homem adulto, em vez de
amadurecer por inteiro, retém na imaginação a ludicidade do menino e, na alma,
algo do espírito aventureiro do jovem. Complicado! E aqui somos colocados pelo filme diante de outra velha questão: dizem
os especialistas que o casamento é o túmulo dos revolucionários e das grandes
paixões. Será?
Sucede que realmente é uma tarefa hercúlea essa conciliação da
sexualidade com a domesticidade, de encontrar as especiarias capazes de
acrescentar novos sabores ao amor institucional. Pois
todos nós precisamos fundamentalmente de duas coisas antagônicas: de segurança
emocional e de aventura e empolgação. Como
encontrar em uma só pessoa a base, o significado, a família, a continuidade,
sem abrir mão do romance tão gratificante emocional e sexualmente? Como
introduzir o risco na vital segurança e o mistério na bendita intimidade?
Quem caminha ao lado de santas(os) milagreiras(os) capazes
de provocar nos seus parceiros, pela estrada afora, interesse, entusiasmo,
suspense e desejo ao mesmo tempo que aconchego e estabilidade, tem muita sorte.
Poucos felizardos conseguem harmonizar compromisso e excitação,
responsabilidade e brincadeira.
Para os românticos a intensidade vale mais que a
estabilidade e para os realistas a permanência e a confiabilidade e a tranquilidade
valem mais que a paixão. Mas seja lá qual for o caminho escolhido há que não
esquecer que as relações amorosas são construídas sobre dois alicerces: entrega
e autonomia, união e distanciamento. Segurança não significa absorção e a
rotina não pode asfixiar. O impulso para o outro, isso que chamam de “erotismo”,
brota de um necessário espaço entre os companheiros. Cada qual precisa ter seus
próprios trabalhos, interesses, projetos, amigos, para que a “conversa”
continue rolando.
Já ouvi de muita gente boa que a Helene deveria ter tomado
um avião para Londres para conferir a “química das peles” e que se danasse o mundo.
Mas depois de terem implodido um bom casamento o que eles fariam com a culpa?
Essa história é sobre como as pessoas podem viver vidas dignas, confortáveis,
bem abotoadas, produtivas e ainda assim encontrar uma doce e inocente fuga da
rotina através de livros e letras.
O relacionamento desses dois era algo limítrofe de um flerte, palavras
restritas ao papel, e, no entanto, era real e lhes fazia bem porque
compartilham a mesma paixão pela palavra escrita. Eu sinceramente acho que,
diante das suas circunstâncias, sem magoar ninguém e sem abrir mão da real nem
do sonho, Frank Doel foi um camarada muito competente.
Quer saber? Aposto que Helene e Frank bem que sonharam conversar
separados apenas por uma mesa e unidos pelo vinho bom, acreditando no hálito,
no modular da voz, no mais fugidio dos olhares... Mas que maravilha que eles
puderam estabelecer pelo menos essa bela conversa apesar de não estarem cara a
cara, ampliando seus territórios e a possibilidade de aprendizado e de
expressão.
Nesse filme nada é tenso e nele prevalece não exatamente uma “química”
mas um senso de humor agradável, uma harmonia fina, uma intimidade intelectual
entre Anne Bancroft e Anthony Hopkins, enquanto eles desenham com tintas claras
os sentimentos sinceros de Helene e Frank, o quanto eles ansiavam pelas respostas
um do outro, mesmo que a “tensão” fosse platônica, o romance fosse um vago e
mal esboçado sonho e ambos perfeitamente cônscios da inviabilidade de um
relacionamento mais estreito.
Mas nada disso os esmoreceu, embora seja possível adivinhar um certo
lamento no subtexto das cartas. O filme nos mostra cabalmente como somos
capazes de construir a imagem de alguém através das suas palavras que, sem
dúvida, possuem um enorme poder.
Então... digamos que o filme narra sim uma pequena e etérea e platônica
história de amor entre a escritora e o alfarrabista. Porém Nunca te Vi,
Sempre te Amei, é muito mais que isso. É sobre como as pessoas se ajudam
nos tempos difíceis com pequenos atos de bondade desde antes do mundo começar a
ser pensado, é um script feito com profundo afeto e respeito – o espectador
percebe isso com facilidade - pela história real que conta, pelos personagens
que de fato a viveram, pelos livros, pela literatura. Pelas pessoas, de maneira
ampla, geral e irrestrita. Pela vida.
Outro aspecto dessa história que chama a atenção é a tenacidade
profissional de Helene, diferenciando-a da maioria das mulheres do seu tempo.
“Eu não acho que tinha escolha. Se escrever é a única coisa que você
quer fazer e a única coisa que você gosta de fazer, então você escreve.”
Quanto mais eu leio o livro e vejo o filme e ouço a voz de Helene, com
aquele tom que ela definia como “barítono
de gim” mas que é atribuível aos seus incontáveis cigarros diários, mais
entendo que a sua paixão pelos livros e pela sua profissão dá vida e calor a
cada uma de suas palavras.
“Todos os meus scripts têm origens artísticas - balé, sala de concertos,
ópera - e todos os suspeitos e cadáveres são muito cultos. Talvez eu escreva um
roteiro sobre o negócio de livros raros e usados em sua homenagem. Você quer
ser o assassino ou o cadáver?” (rsrs)
A correspondência de Helene com Frank decerto nos leva a percorrer a
trilha peculiar de uma mulher sensível e inteligente através da literatura
inglesa. Ao longo do caminho, no entanto, nossa diversão ao compartilhar sua
educação literária é aprofundada pela narrativa humana que suas cartas tecem.
As cartas nos narram, sim, a aquisição de uma quantidade extraordinária
de livros usados que vão desde os Diálogos
Socráticos aos clássicos do século XIX, como Orgulho e Preconceito. Porém mais do que simplesmente uma troca de
livros e valores, as missivas entre Helene e Frank nos descortinam que a
diferença cultural e a distância geográfica não podem impedir que as amizades
se desenvolvam.
Com certeza, é muita falta de noção ou excesso de solidão acreditar nos milhões
de “amigos do Face” mas, por outro lado, nem sempre as relações são verdadeiras
apenas por serem presenciais e nem sempre conhecemos pessoalmente todos os
nossos verdadeiros amigos. Esse filme nos mostra como é possível construir laços
afetivos através das pretinhas.
Possuidora de um senso de humor ímpar Helene vai, aos poucos, arrefecendo
o conservadorismo dos de além mar e deixando Frank Doel à vontade para falar de
seus projetos, do seu trabalho e do pessoal da livraria, de suas viagens e
visitas às mansões seculares no campo inglês em busca de livros e também, é
claro, sobre a família e a política. Um grande carinho e mais, uma intimidade
real, vai surgindo entre os dois.
O prezado Frank Doel é um vendedor consumado e um profundo conhecedor da
vasta gama de livros disponíveis na Marks & Co, demonstrando uma grande
sensibilidade ao localizar possíveis trabalhos de interesse para a Helene. Ele
compartilha o entusiasmo da moça pelos livros e é graças a essa sua óbvia
reverência que ele se torna rapidamente o companheiro literário dos sonhos de
Helene, uma espécie de cavaleiro andante.
A sua reserva eficiente e educada suaviza a correspondência e a sua
importância na história não pode ser subestimada. Demonstrando paciência,
gentileza e compreensão da cliente e da mulher ele faz brotar na moça uma
espécie de dependência intelectual dele, um sentimento que ela não experimenta
nas relações com seus outros amigos.
Esse enredo, que foi escrito quando as cartas já eram, infelizmente, uma
arte em extinção, era um candidato a bestseller para lá de improvável.
Portanto, o retumbante sucesso no cinema do minúsculo romance epistolar que
Helene escreveu enquanto estava “deprimida
por demais até para ir ao cinema”, a todos surpreendeu.
Trata-se de um filme, é claro,
sobre livros e para corações alfabetizados mas à medida em que vamos conhecendo
Helene e através dela Frank e sua esposa Nora, suas duas meninas, os
funcionários da livraria, seus vizinhos e demais amigos, percebemos que os
livros desejados, localizados, enviados e recebidos são os veículos para muito
mais: amizade, afeição, generosidade, sabedoria e, em
uma nota mais profunda, para a “conversa”, a comunicação humana. Em outras
palavras, para todas as melhores coisas que se pode compartilhar nessa vida.
Sim, é triste que Helene e Frank nunca tenham se encontrado. Não era para ser ou, como dizem os árabes, não era “maktub!”; se por culpa do destino ou
escolha deles você decidirá na continuação da conversa.