retrato do Marquês de Sade - Mary Evans (sec. XIX) |
Wilson Baptista Junior
Ainda que
possa chocar alguns de meus leitores mais pudicos, devo confessar constrangido que
venho mantendo, e já há algum tempo, um perverso relacionamento sadomasoquista.
Não sei o
que me impulsionou a revelá-lo ao mundo agora. Talvez o peso da consciência?
Talvez alguma revolta íntima de algum oprimido sentimento bom que ainda
subsiste em mim? Quem poderá medir as escuras profundezas da consciência
humana?
Quando penso
nisso me revolto, juro me comportar para nunca mais cair nesse abismo, às vezes
consigo arduamente manter a resolução por muito tempo. Mas de repente o impulso
inominável, tão forte que chega a me causar dor física, me domina, e deixo de
resistir, ainda que chorando por dentro.
Quando isso
acontece, nos horários mais inesperados, muitas vezes em pleno horário de
trabalho, largo tudo, pego o meu carro e dirijo desesperadamente até um
edifício num bairro chique de minha cidade. Que, por motivos óbvios, não
revelarei aqui.
Entro no
saguão do edifício, procurando não ser visto, mas muitas vezes não consigo
evitar passar pela vergonha de ser reconhecido pelo porteiro, que me cumprimenta
e me deixa seguir com um sorriso equívoco, de quem sabe bem o que vim procurar.
Chegando lá
em cima, depois de ainda hesitar um pouco, toco a campainha, e sou recebido com
um beijo pela minha dominatrix. Uma mulher bonita, de aspecto inocente, cabelos
negros, tez pálida, olhos castanhos, cuja aparência delicada em nada sugere as
profundezas do horror em que me fará mergulhar dali a pouco.
Enquanto ela
se retira discretamente para vestir as roupas que a tradição consagrou para a
ocasião, sou levado por uma moça gentil até uma espreguiçadeira, onde sou preso
enquanto ela me pergunta se quero escutar um pouco de música.
Enquanto
tento me acalmar embalado pelo som da orquestra, me assusto ao ver que a mesma
moça traz, discreta e silenciosamente, uma bandeja cheia de instrumentos de
tortura dos mais diversos tipos e a coloca ao lado da espreguiçadeira.
Antes que eu
tenha tempo de me levantar e fugir, volta a protagonista, agora mascarada, toda
protegida, enluvada de látex. E me pergunta se quero começar por uma picada de
droga. Envergonhado, aceito, e relaxo o braço para a picada.
E ela, ainda
com o mesmo ar inocente, em vez do braço inesperadamente crava uma e outra vez a
agulha numa das minhas regiões mais sensíveis. A dor é excruciante. E, antes
que eu tenha tempo de gritar, enfia-me na boca uma mordaça de borracha e metal.
Tendo-me
ali, enfim, à sua mercê, drogado e incapaz de gritar, escolhe calmamente algum
dos instrumentos para iniciar a sessão de tortura.
Tem de tudo
ali; lâminas afiadíssimas, tenazes, puas, ferros de esquentar. E, quando não
está satisfeita, recorre a muitos outros instrumentos maléficos que basta ela
pedir e lhe são pressurosamente entregues pela ajudante, cujas feições gentis
se transformam na expressão ávida da aprendiz de feiticeira já prelibando o dia
em que ela também chegue ao papel de cruel dominatrix.
O terror
faz-me perder a noção do tempo. Parece uma eternidade. E, pior, é ela quem
decide quando parar. Pode ser meia hora, uma hora, às vezes mais ainda. A
intensidade e a duração da tortura variam conforme a vontade e os impulsos
dela. Eu sou apenas o escravo submisso. Não adiantam nem as famosas “palavras
de segurança” usadas pelos praticantes do sadomasoquismo para parar quando a coisa fica perigosa demais.
Se, apesar
da mordaça, consigo emitir algum abafado urro de dor, ela simplesmente ri (um
sorriso que aparece nos olhos, já que a boca está escondida pela máscara,
tripudia me chamando de fraco, e continua a tortura até ficar satisfeita.
Afinal, as
pernas bambas, meio tonto, sou libertado da cadeira. E quando me levanto,
procurando os meus óculos (que ela conservou reféns durante todo esse tempo)
ela retira a máscara, sorri, e voltando à sua enganadoramente agradável primeira
personalidade me pede gentilmente que não deixe de voltar.
Respiro
fundo, faço das tripas coração para sorrir também, e com uma profunda sensação
de alívio misturado com uma ponta de vergonha me despeço com um beijo da prima
da Ana, minha dentista...
Muito bom !! Eu me diverti com seu texto
ResponderExcluirMinha filha vai gostar deste relacionamento com vc
E pensar que ela deve fazer sofrer tantas pessoas medrosas
Mas vamos mostrar a ela a nossa gratidão pois é bom ter um lindo sorriso !!
Um abraço com carinho e afeto
Léa, prima da Ana e mãe da nossa dentista, que bom que você gostou!
ExcluirBrincadeiras à parte, ela é uma excelente dentista, não é a toa que toda a família e tanta gente mais corre para ela.
Um abraço do Mano
1) Parabéns Mano, excelente artigo. Nota mil !
ResponderExcluir2) Confesso, recentemente passei por procedimentos semelhantes.
3) Lembrei que, certa feita, uma dentista antiga vendo-me contorcer de dor física e emocional em sua cadeira, exclamou: "Ué, faz aí as coisas que vc sabe: meditação, mantras etc".
4) Descobri então que nestes casos uma boa oração é a Anestesia...
5) Boa semana para todos (as)...
Obrigado, Mestre Antonio! Você tem toda razão, a Anestesia às vezes é mesmo a melhor resposta para nossas orações... Os que a inventaram certamente ganharam algumas léguas no seu caminho.
ExcluirUm abraço do Mano
Bah, Wilson, que fiasco!
ResponderExcluirToda esta história porque vais ao dentista??!!
Falando sério, mas a tua narrativa onde aumenta o suspense a cada parágrafo é para esperarmos algo terrível, uma confissão tácita de episódios escandalosos, um segredo do Mano finalmente descoberto, e dito por ele mesmo!
Pô, mas dentista, meu??!!
E, ainda por cima, uma bela mulher??!!
E denominas ficar de boca aberta para a sua beleza como "sadomasoquismo"??!!
Mas que barbaridade!
Brincadeiras à parte, demonstraste ser um exímio escritor de enredos de suspense, e dos bons, daqueles que nos prendem à atenção do início ao fim.
Agora, a tua narrativa foi uma espécie de "pegadinha", levando-nos a crer que estavas te dirigindo para um encontro escalofobético, no mínimo!
Gostei, Wilson, divertida narrativa, crescendo as nossas expectativas quanto ao final da experiência sadomasoquista, minha nossa!
Quem dera que eu tivesse uma dentista que fosse minha prima ou da Marli ... quem dera.
Eu iria a cada dois dias revisar a "mobília", como se diz, e ficar de boca aberta admirando a sua beleza e dizendo hahahahahahahaha!
Pouco se me daria o zumbido da máquina torturante, que seria neutralizado pela aproximação da bela, e eu fixando meus olhos no rosto bonito, mesmo que fosse cruel!
Imagina, nós nesta idade, e junto a uma moça radiante, de grande beleza ... mas até injeção na cabeça, meu!
Valeu, Mano.
Texto divertido, elegante, refinado, e com um final surpreendente, apesar do fiasco confessado, hehehehehehehehe!
Um forte abraço.
Saúde, muita SAÚDE, extensivo aos teus amados.
Amigo Chicão, que pena que Rolante seja tão longe de Belzonte, senão tenho certeza de que serias também paciente da nossa dentista, e estarias muito satisfeito, e não só pelos motivos que colocaste em teu comentário...
ExcluirE quanto ao "fiasco", bom, tenho certeza que a Ana fica bem mais feliz sabendo que se trata de uma ida à dentista do que do final que imaginavas :) Fico contente que a "pegadinha" tenha sido bem sucedida. Não sabia se ia conseguir prender a atenção dos leitores até o final.
Obrigado pelos elogios, sinal de que gostaste, um abraço do Mano, e espero que tua força de vontade te mantenha firme na dieta que nos contaste no teu último post, para que possamos contar por muitos anos ainda com teus posts e comentários.
O Sr. WILSON BAPTISTA JUNIOR, com esta crônica " Meu relacionamento sadomasoquista", muito bem escrito, nos pregou uma "peça" com final Feliz.
ResponderExcluirQue imaginação e criação de suspense, quase até o fim, para então abrir o jogo e contar-nos que a questão toda era de "tratamento dentário com os excelentes Cirurgiães-Dentistas atuais, com sua maravilhosa técnica, especialmente o início com cremes e anestesias quase mágicas.
Confesso que também suo frio em tratamento dentário, e no passado suava mais ainda, e como o ilustre Autor Sr. WILSON BAPTISTA JUNIOR mais pela imaginação do que pela realidade. Esses maravilhosos inventores da Anestesia deveriam ter estátuas em praças públicas por uma questão de Justiça.
E como escreveu acima nossa Colega Sra. LEA MELLO SILVA o Benefício- Custo de um lindo sorriso é quase Infinito.
Parabéns a nossos Escritores de Imaginação quase Infinita.
Parabéns a nossos Cirurgiãe-Dentistas, de Técnica quase perfeitas.
Abração.
Amigo Bortolotto, que me encabula com sua fina cortesia insistindo em nos chamar de senhor e senhora mesmo quando já nos julgamos, pela agradável convivência aqui e no blog do nosso amigo Carlos, com licença de chama-lo de amigo, fico feliz com que a "peça" tenha sido do seu agrado, agradeço seus elogios, e concordo em gênero, número e grau com que deveríamos ter em praça pública as estátuas dos diversos benfeitores que foram descobrindo e aperfeiçoando a Anestesia, que tive que experimentar, mais vezes do que gostaria, em situações algo mais preocupantes além dos os tratamentos dentários.
ExcluirObrigado e um abraço do Mano.
Wilson,
ResponderExcluirEm uma palavra: um texto genial! RI ALTO ao ler o título em cima do marquês e segui animado, curioso para descobrir para que desfecho hilário a narrativa nos levaria. Mas confesso que, apesar de temer as agulhas e aquelas brocas barulhentas que fazem buracos nos nossos dentes - pesadelo! - e embora tenha lido atentamente procurando por pistas, você construiu o seu "relacionamento sadomasoquista" tão inteligentemente, que só matei a charada na última palavra do último parágrafo!
O grande desafio desse post foi descrever algo que, ao mesmo tempo, tanto poderia ser um "encontro escalofobético" (rsrs) quanto uma sofrida visita à dentista da família. Só que as duas situações - estar anestesiado em uma cadeira odontológica ou algemado na cabeceira de uma cama sado - teriam, em tese, apenas duas coisas em comum: a dor e o desconforto de perder o controle dos nossos enredos. Complicado!
No entanto você conseguiu driblar inteiramente as dificuldades brincando com a imaginação dos seus leitores ao mencionar, por exemplo, “as roupas que a tradição consagrou para a ocasião”, uma descrição na qual cabem tanto a bata dos mafiosos de branco quanto o macacão de couro preto e botas de cano alto (rsrs) Tudo bem que faltou o chicote mas o sorriso "equívoco" do porteiro, a espreguiçadeira, a tal bandeja de instrumentos de tortura, as máscaras e mordaças, a ajudante voyeur "já prelibando o papel de cruel dominatrix" e a bela dona da festa "decidindo quando parar" a sessão de tortura foram mais do que suficientes para segurar o mistério até o fim (rsrs)
Parabéns e abração
Moacir,
Excluirconfesso que, embora inegavelmente inspirado pela experiência recente de uma extração e quatro transplantes dentários simultâneos, o post não deixou também de ser um exercício na escrita de suspense, que fico muito feliz de saber pelos comentários que não deixou de fazer efeito.
Foi muito divertido, apesar dos pesares, ir imaginando e estruturando o post durante as sessões de tortura (posso chamá-las assim em público sem ficar com a consciência pesada porque mais de uma vez já brinquei com isso com a nossa excelente dentista, embora ela com certeza não tenha imaginado que viesse a figurar no blog). Saber que alguém com a sua familiaridade com as pretinhas e com os problemas das "traduções" ficou preso na incerteza até o final é uma grande recompensa.
Obrigado e um abraço do Mano.
Maninho do céu!!! Dei boas gargalhadas lendo este texto misterioso e maravilhoso! Vc é um talento escondido neste blog... pode começar a escrever um livro! Te dou todo o apoio e sugiro começar por um suspense! Rsrsrs.
ResponderExcluirFui lendo e devorando suas palavras e doida pra saber o desfecho. Obrigada por suas belas palavras se referindo a mim. Fiquei lisonjeada e encabulada! E saber que sou a protagonista de todo este seu “sofrimento” qdo estou tratando de vc...desculpe , mas ainda não aprendi a fazer mágica. Vc seria o primeiro a receber um tratamento num passe de mágica. Parabéns por seu texto delicioso e envolvente! Bjs de sua dentista “preferida”🤪
Thaïs, nossa dentista de fé e amiga querida de longa data, que bom que você gostou do post, que mantive em surpresa para você ler aqui. Pode ficar tranquila que, quanto à dor, há uma boa dose de "licença poética" no escrito, para fazer com que ele ficasse mais envolvente. E sabe que eu não deixo de voltar :)
ExcluirObrigado pelos elogios e um beijo do Mano