Carnaval (fotografia de Patrícia Moreira) |
Heraldo
Palmeira
De novo fevereiro. Que este ano caiu em março, cujo primeiro dia
realmente útil será quase no meio do mês. Uma segunda-feira, caricata como toda
segunda-feira que promete ser dia de começos e recomeços. Data em que,
espera-se, já tenham ocorrido todos os gritos e cortejos de Carnaval
pós-Carnaval. Quando, acredita-se, as pessoas vão enfim voltar à normalidade
cotidiana, ao trabalho, às infelicidades costumeiras – aquelas que a folia
promete dissipar, mas vira jura que só dura o tempo de a fantasia rasgar.
Tenho a sorte de assistir a muita coisa do alto, de um décimo
quarto andar que se debruça sobre um dos polos do frevo da cidade. E desço para
o chão da festa quando dá vontade – e ela vem todo dia, implacável –, para
encontrar amigos, ser feliz, festejar o que já veio e o que a gente pensa que
ainda vem.
Antes de tudo, a cada dia, pouco depois do almoço, a penitência de
aturar a tal “passagem de som”. Sempre incômoda, repetitiva, enfadonha. Apenas
o retrato da incompetência dos nossos técnicos de som, embora se achem os
semideuses da festa!
Afinal, ao fim e ao cabo, depois de infindáveis “buuum, puum, tum,
tum, tááá, tssss” da bateria, escalas e arpejos sem qualquer sentido de baixo,
de guitarra – que jamais serão utilizados em qualquer das músicas que serão
tocadas logo mais –, chega a vez dos cantores, precedidos por aquele “oi, oi,
sssom, sssom, êi, êi, um, dois, três... mil...” numa altura infernal. Deveriam
ir todos à pqp.
Esses “profissionais” passam as tardes azucrinando a paciência de
quem está ao redor e, na hora dos shows, o som é sempre aquela coisa horrorosa:
não se ouve cada instrumento como seria justo aos músicos, as vozes dos
cantores sempre estão enterradas na barafunda sonora e predominam os graves
exagerados que brotam dos subwoofers. Paredes vibram, ouvidos sofrem e tudo cai
no ralo de um lugar comum: desaprendemos a gostar da beleza do som.
Isso tudo passado a limpo e tirados os noves fora, nada, e depois
que a autoridade de plantão entrega a chave da cidade a alguém que nunca se
propôs a ser fechadura, o primeiro apito anuncia a música intensa, chama para o
começo do jogo da sedução, da ilusão de que tudo será bom, de que tudo é
possível e permitido, de que a gente quer e vai se acabar de felicidade.
A primeira batida do tambor é a marca do tempo que move uma
navegação sem rumo, que começa a correr e avançar sobre a avenida da ilusão
como se não houvesse amanhã. Onde tudo vira a maior das brincadeiras, na troça
ou à vera.
O coração que havia disparado em busca do próprio ritmo bate agora
no compasso que a gente não escolhe. Ou entra nele ou sobra, ou vira massa ou
não serve para a manobra. Um grande cordão que se mexe de um lado para o outro
nos pontos cardeais da folia, imprecisos como tudo que tira o Norte, os pés do
chão, como tudo que alucina.
A música agora é apenas um bum
bum paticumbum prugurundum de tambores e pés batendo, uma energia tribal
empurrando para um êxtase animado a muitas coisas, pensamentos e palavras, atos
e omissões. Sem culpa ou máxima culpa. Na base do cada um por si e Deus por
todos.
Embarcar nessa viagem significa ir deixando para trás, a cada
passo na folia, as lembranças de um samba ensaiado o ano inteiro para um solo
que não haverá, os retalhos de cetim que restarão imprestáveis e vão cansar de correr
ao sabor do vento de um lado para outro, sobre o piso que parecia palco para
todas as fantasias. Até serem recolhidos pelos garis.
Já serão lixo, não mais estarão enfeitando o chão da praça que
recebeu todos aqueles pés que deram passos em falso o ano inteiro, a vida toda
e acreditam de novo no milagre que não se completa, porque a terça-feira gorda
sempre acaba e amanhece em cinzas, na tristeza da quarta-feira que convida à
conversão, a uma mudança de vida, abrindo uma Quaresma inteira para quem
resolver se penitenciar numa vida de jejuns além dos muitos que já são
cotidianos. Coisas da fé. E segue o cortejo.
Vai chegando
aquele momento que a gente não quer que chegue – talvez porque já se sabe, de
antemão, que alegria é coisa que dá e passa: a hora dolorosa de desconectar a
folia do coração e o coração da folia que se esvai.
Apreensiva
A presa lasciva
A presa da vida
É riso da vida
Eis lá rei davi
Ei-la rei da vida
Ela ri da vida
Samba, suor
e cerveja embaralham corpos em estado de torpor atravessando os dias do reinado
de sua excelência, a folia. Um jogo de cartas marcadas ou de arriscar a sorte
para quem aposta alto tudo, acreditando no vermelho 27 da roleta da alegria. O
risco do risco.
Faz parte do
jogo tirar uma carta da manga, atirar um olhar de lança na dança de quem
poderia ser amor. Ser um beduíno com olhar de mercador, caça se achando caçador.
Ou sentir saudade aguda dos olhos tentadores que nunca verão o desejo brotado
numa fração de segundo.
Você pode fazer quase tudo
Contanto que você possua
mas não seja possuído
Você pode comer quase tudo
Contanto que deixe um pouquinho
um pouquinho de fome
Você pode beber quase tudo
Contanto que deixe um pouquinho
um pouquinho pro santo
Não
custa ter esperança, ouvir a voz do coração, acreditar no amor de arlequins, pierrôs
e colombinas, não chorar a lágrima doída dos palhaços, não borrar a maquiagem.
Tentar a proteção de máscaras, perucas e adornos que criam as outras faces que
nos livram de encarar a vida face a face por um hiato de alegria.
São as trapaças da sorte
São as graças da paixão
Uma certeza me nasce
E abole todo o meu zelo
Quando me vi face a face
Fitava o meu pesadelo
Estava cego o apelo
Estava solto o impasse
No meio daquela zorra
Perdendo no desempate
Girando feito piorra
Até que a mágoa escorra
Até que a raiva desate
O Carnaval
não tem apito final, estrila apenas um silvo temporário que interrompe a festa até
o ano que vem. Como uma onda de maré que se molda ao ritmo das quatro estações
do ano. Que era furor e virou calmaria até voltar a ser furor. Sorte haver a lua,
há quem garanta que ela regula as marés e inspira sonhos.
Daqui de cima revejo, agora em silêncio e vazia, a mesma rua que
era multidão. Mais uma Quarta-Feira de Cinzas modorrenta, apenas cães vadios
têm ânimo para farejar alguma sobra de qualquer coisa que ficou.
Quarta-feira de Cinzas (fotografia de Heraldo Palmeira) |
Está aberta
oficialmente aquela parte chata do ano entre o Carnaval e o Natal – que traz o
ano-novo, as férias de verão. E o próximo Carnaval. Onde tudo começa de novo.
Quanto riso, oh, quanta alegria!
Mais de mil palhaços no salão
Arlequim está chorando
Pelo amor da Colombina
No meio da multidão
Foi bom te ver outra vez
Tá fazendo um ano
Foi no Carnaval que passou
Eu sou aquele Pierrô
Que te abraçou e te beijou, meu
amor
Na mesma máscara negra
Que esconde o teu rosto
Eu quero matar a saudade
Vou beijar-te agora
Não me leve a mal
Hoje é Carnaval
É preciso zelar
aquele beijo. Seguir sem o som do tambor – até ele precisa de repouso. Encontrar
o ritmo sem música. Guardar o que sobrou da fantasia que deixou tudo lindo, sedutor
como os amores de Carnaval que explodem, seguem tortuosos e morrem dentro do
tríduo. E, às vezes, quase com crueldade, nunca param de desfilar na saudade
mais bem guardada, mais querida, seguem atormentando o coração por uma vida
inteira.
É como um sonho, uma reza
Um ato de solidão
A energia dos doidos
Motor da imaginação
Não me peça que eu mate
O moleque que mora comigo
Ele é feito de barro
É meu lado bandido
É meu lado palhaço
É meu lado doído
E o palhaço quem é?
Trechos de:
Carnaval (Horácio Paiva)
O mal é o que
sai da boca do homem (Pepeu Gomes-Baby Consuelo)
Face a face (Sueli Costa-Cacaso)
Leque moleque (Alceu Valença-Carlos Fernando)
Máscara negra (Zé Keti-Pereira Mattos)
Inspirações incidentais:
Bum bum
paticumbum prugurundum (Beto Sem
Braço-Aluísio Machado)
Retalhos de
cetim (Benito di Paula)
Chão da Praça (Moraes Moreira-Fausto Nilo)
Samba, suor e
cerveja (Caetano Veloso)
Carnaval perdeu a magia e vendo a letra da máscara negra volto no tempo !
ResponderExcluirA alegria natural dos velhos tempos em que Pierrot roubava um beijo da colombina !
Um texto perfeito para o Carnaval atual
E no saudosismo eu vou ficando 🎉
Lea,
ExcluirSim, já não temos mais os carnavais românticos, até porque os tempos mudaram. Ha uma folia enorme, as cidades se enchem, as pessoas em busca de suas felicidades. E a gente sente saudade. É normal.
Uma interessante crônica sobre o carnaval elaborada por Palmeira, que nos faz refletir entre a folia e a perturbação do sossego de quem quer e precisa descansar, um dos direitos do cidadão quanto à paz e a ordem, civilidade e respeito ao próximo.
ResponderExcluirAs festas de Momo têm o condão de neutralizar as regras, as normas, as leis, em benefício de uma suposta alegria, haja vista que o carnaval também tem sido a quebra de estatísticas anuais sobre estupros, violência, assaltos, agressões e bebedeiras, ocasionando que esses frequentadores, vítimas da festa profana, deixem de considerá-la alegre, mas lamentável!
Uma espécie de catarse popular, onde o povo mostra a sua verdadeira face para os outros e para si mesmo, sendo exatamente como é fora deste período carnavalesco, e onde a fantasia usada é como ele pretende ser no seu cotidiano mas, a sua frustração diante da realidade determina que o folião aproveite os dias definidos à permissividade para ser ele mesmo.
As atitudes contrárias às mulheres, à honestidade, ao convívio em paz com outros participantes, mascaram-se, escondam-se, através do carnaval que, ilusoriamente, permite exageros e devassidões.
Meu aplauso a mais este ótimo trabalho de Palmeira, que nos faz perceber o carnaval conforme as formas que a festa apresenta à sua definição e conceito, interpretação e compreensão, em face de ser a alegria de um povo sem futuro, sem ter uma nação desenvolvida e feliz, sem perspectivas sequer de esperança, a ponto que se pode afirmar textualmente que não temos mais solução como país!
Logo, a realidade brasileira não está nos meses onde não há carnaval, mas justamente quando as festas momescas retornam a cada início de ano, obrigando-nos a despir das fantasias daquilo que não somos, em razão de convenções e obrigações, e amordaçando também o grito de “vale tudo” exercido plenamente no carnaval, e cuja intenção é podermos ampliar por mais dias, que não são designados à festa popular, justamente porque esta é a nossa realidade e vontade, de se viver em uma nação oba,oba!
Evidente que não contra o carnaval mas, me preocupa em demasia, o desvirtuamento da alegria popular para protestos políticos, sendo o objetivo primordial a quebra de barreiras morais e éticas ainda existentes, mesmo que em resquícios.
Saúde, muita SAÚDE, Palmeira.
Bendl,
ExcluirObrigado pelo comentário. E vamos por partes:
O Carnaval é um dos momentos do ano que eu mais gosto, caio no meio e a perturbação a que me refiro é apenas o resultado da falta de competência técnica da grande maioria dos nossos técnicos de som - essa é uma área com que tenho afinidade.
Os excessos ocorrem em todos os segmentos, basta a gente entrar numa estrada e ver o comportamento de muitos. Por sorte, o "meu" Carnaval é totalmente tranquilo, a cada ano merecemos o visível profissionalismo dos nossos homens e mulheres da segurança pública e dos primeiros socorros. Naquele mundaréu de gente que a foto de abertura do texto revela, acredite, nenhuma ocorrência de qualquer natureza nos seis dias que tivemos o baticum ali naquele bulevar.
O que percebo é que o Carnaval é uma das últimas válvulas de escape que nossa população lança mão para tentar melhorar o cenário cotidiano, acreditar num futuro e que pode haver solução.
Não nos assustemos tanto com os exageros que ocorrem, eles são inerentes à natureza humana. Como sempre foi, cada um tem suas medidas e dançar conforme a música também pode ser uma arte. Como dizia a canção popular, "O importante é ser fevereiro e ter Carnaval pra gente sambar". Sáude para todos nós, Bendl!
Olá Heraldo,
ResponderExcluirEsse ano
Fevereiro caiu em Março.
E entre os sons mal cuidados e a folia desenfreada você ficou triste.
Não fique. Algum carnaval busca suas origens nos blocos pequenos dos pequenos bairros.
Ao mesmo tempo concordo e discordo de você porque não sou de pular carnaval, não gosto de alegrias programadas. "Alegria dá e passa, o risco do risco". Mas meu corpo não resiste a uma batucada, um Olodum tocando no estômago. Ele fica com vida própria e se mexe como uma minhoca na areia quente. Até arrepio e me imagino entre Colombinas, Pastorinhas, Negas do cabelo duro e as que dos carecas gostam mais. Entre cetins e confetes. Tudo, tudo é fantasia!
Mas as segundas sempre caem na segunda. Não importa quando. E é hora de arrumar a casa e celebrar "o encontro com os amigos, o ser feliz e festejar o que já veio e o que a gente pensa que ainda vem..." Guardar amores nem vividos, zelar o beijo e costurar os retalhos de cetim num patchwork descabido.
Você escreve bem demais, cara! Mesmo triste.Mesmo o carnaval sendo, bem no fundo, uma festa triste.
Até muito mais.
Ana,
ExcluirGosto muito do Carnaval e, talvez por isso, eu nunca fique livre da melancolia que ele também me traz. Ora, a gente vai se programando bem antes e, quando começa, percebo o movimento como uma contagem regressiva, da alegria plena para o ponto zero, a tristeza do último acorde da última música, o vozerio que sobra e que vai se esvaindo pelas ruas, cruzamentos e outras ruas mais adiante e cada vez mais distantes, levando os foliões de volta às suas casas – já refletindo os primeiros raios do sol na purpurina onipresente – e à realidade.
Aquele mundaréu de gente que se vê na foto de abertura do texto coroa décadas de um Carnaval cujas origens são blocos pequenos aqui do pequeno bairro, que saíam em cortejos pelas ruas que também eram nossas, das nossas famílias. Era o esquente para a folia noturna nos clubes, onde arlequins, pierrôs, colombinas, pastorinhas, palhaços, negas do cabelo duro, carecas e cabeludos rodavam no salão ao som das orquestras. Com cetim, confete, serpentina, jatos d’água, bolhas de sabão. Máscaras, tintas e mogangas de toda sorte. Até detalhes de corpos que passavam o ano escondidos aguardando a hora de se libertar. Sim, tudo era uma deliciosa e ingênua fantasia, até mesmo no tssi, tsssi, tssssi que saia dos tubos dourados de Rodouro e embebia lenços de tum tum tum eufórico - o grande legado da Rhodia para o reinado de Momo.
Tempos em que a quarta-feira, sem chance de qualquer prorrogação da festa, tinha o gosto de cabo de guarda-chuva das segundas.
É este filme que começa a passar na minha cabeça quando soa o primeiro acorde, e vai me entristecendo exatamente porque sei que ele logo vai terminar e onde termina. A indesejada contagem regressiva que vai diminuindo meu ritmo. Inclusive porque, como você, sei muito bem que o Carnaval é uma festa triste. Apesar da gritaria e da alegria.
Eu não escrevo nada, apenas rascunho o que me chega não sei de onde. Se você me chamar de antena, eu já agradeço muito. Até muito mais. Câmbio.
Mestre Heraldo,
ResponderExcluirNão sou folião - desço para o play quando dá vontade - mas sou a favor da da música, da sátira e da diversão carnavalescas.Como só vai atrás do trio elétrico quem quer, qual é o problema da galera se esbaldar, da moçada brincar e namorar, da criançada se fantasiar, de se festejar e bebericar no sambódromo, no sítio, na praia, na avenida, no bloco, na banda, no Galo, no Sargento Pimenta, no subúrbio, nas cidadezinhas do interior onde o povo tem o maior orgulho do seu Carnaval sem patrocínios? Me escapa.
Não, “não nos peçam para matar os moleques que moram conosco"
Peço licença para fazer um acréscimo à sua bela trilha sonora com um hit do último carnaval que brinquei até cair antes de botar o pé na estrada. Trata-se de uma das mais emblemáticas canções da minha juventude que conversa sobre política e pegação, mistura lamento e alegria, saudade e deboche e muita esperança no refrão:
https://www.youtube.com/watch?v=rsiAN__ii7E
Abração
Caríssimo,
ResponderExcluirNão sei onde foi que você se perdeu do meu baticum. Afinal, em momento algum eu vi qualquer problema em "a galera se esbaldar, d amoçada brincar e namorar...".
Eu defendo tudo isso, caio no meio até onde me cabe. Aquele mundaréu de gente se junta aqui na esquina de casa e eu acho é pouco. E quando o cansaço chega, se não tiver no tom de me trazer pra casa, puxo uma cadeira de qualquer dos bares que ficam ali (todos de amigos) e me junto à um molho de gente que também quer prosear vendo o bombo cantar e o povo pular. Registre-se, estamos em casa, opinamos sobre a organização da bagunça e até os camelôs a gente trata pelo nome. Nada mais moleque vivo!
Esse hino de Sérgio Sampaio que faltou na minha trilha do texto é visceral, genial como ele. Só não contava com ele mesmo, um pessimista profissional, um obssessivo pela morte que chegava ao ponto de se interessar pela decomposição do corpo e pelo papel dos vermes nesse processo. Realmente, o meu Carnaval não está autorizado a sequer lembrar de tanta tristeza. Abração.