-----------------------------------------------------------------------------------------------------------------

28/05/2019

A Esquina dos Poetas

fotografia Moacir Pimentel



Moacir Pimentel

A escritora Helene Hanff sonhava empreender uma viagem “literária” através do Reino Unido. A pergunta é: qual seria o roteiro? Não é fácil definir a “Inglaterra literária” que ela tanto procurava. Provavelmente um dos lugares mais férteis da história literária da humanidade, é quase impossível listar todos os autores e todas as obras - de ficção ou não - nascidas nessa terra bretã de gigantes. Gente séria, a galera do National Geographic sugere que na ilha das brumas e adjacências existem mais de quinhentas localidades “literárias” que, ou foram a terra natal dos escritores, ou os inspiraram ou serviram de cenário para aquilo que escreveram.
De Beowulf às peças shakespearianas, dos poemas de Robert Burns escritos nos primeiros anos do século XVIII às obras de Irvine Welsh sobre o submundo de Edimburgo no emblemático livro Trainspotting – que virou o filme de nome Sem Limites - pense em uma Inglaterra literada!
Por onde começar a peregrinação das pretinhas? Pela cidade de Stratford-upon-Avon, que inaugura o post, onde nasceu e viveu e morreu o grande William Shakespeare? Por Edimburgo, lá na mais pitoresca das fronteiras do reino, o local de nascimento de Robert Louis Stevenson, Arthur Conan Doyle e Muriel Spark? Por Birmingham em cujos arredores Tolkien, na virada dos séculos XIX e XX, passou as infância e juventude se inspirando nos belos campos circundantes para criar as terras idílicas habitadas pelos hobbits da série do Senhor dos Anéis?
Ou seria melhor fazer uma imersão na costa da Cornualha que inspirou os romances da escritora Daphne du Maurier como Rebeca e O Bode Expiatório e Jamaica Inn e, inclusive, o conto Os Pássaros – que muitos dizem ter ela plagiado do livro de mesmo nome do Frank Baker – mas que seja lá como foi, tornou-se uma paisagem perfeitamente capturada na adaptação cinematográfica do lendário diretor Alfred Hitchcock?

Quem sabe passando por Torquay, outra localização costeira, dessa vez em Devon, que foi uma das fontes de onde bebeu  Agatha Christie para criar as queridas Miss Marple e Tuppence? Ou seria melhor fazer uma escala na pequenina aldeia de Haworth que só não é esquecida na deliciosamente remota paisagem de Yorkshire porque foi ali que irmãs Brontë rascunharam romances clássicos como o Morro dos Ventos Uivantes da Emily, a Jane Eyre da Charlotte e a misteriosa, jovem e bonita Inquilina de Wildfell Hall da Anne, só que sob o pseudônimo de Acton Bell?

Visitando as terrinhas natais de poetas românticos do século XVII, como John Ruskin, Samuel Coleridge e William Wordsworth, cuja casa ainda se pode visitar em Cockermouth? Descobrindo as dezenas de livrarias da pequena cidade galesa de Hay-on-Wye? Conhecendo a bela Kent, escondida no sudeste da Inglaterra, visitada por Charles Dickens regularmente em meados do século XIX e onde – dizem! – ele teria escrito A Casa Soturna e David Copperfield? Homenageando Bath onde Jane Austen morou e inventou as suas Razão e Sensibilidade e os seus Orgulho e Preconceito? Ou tropeçando em Oxford, a cada dois passos, com uma faculdade, taverna ou biblioteca assombrada pelo fantasma de um grande escritor?
Perambular pelas salas de leitura sossegadas da British Library, em Londres, que coleciona manuscritos que datam de quatro mil anos e que hoje é a segunda maior do vasto mudo, só perdendo para a Biblioteca do Congresso Americano.
Nela há que conhecer a Biblioteca do Rei e a Galeria Sir John Ritblat: a primeira uma torre de vidro de seis andares no meio do prédio, contendo dezenas de milhares de livros, volumes, panfletos, manuscritos e mapas coletados pelo Rei George III e a última, à direita da entrada principal, uma exposição gratuita e deslumbrante, que exibe os manuscritos originais - muitos com anotações manuscritas dos autores! - incluindo a Magna Carta, uma Bíblia de Gutenberg, as cópias originais de Beowulf, das Lendas da Cantuária, das Aventuras de Alice no País das Maravilhas, da Senhora Dalloway e é claro, do Primeiro Fólio de Shakespeare.
Não, eu não faria escalas turísticas nos museus de John Keats, de Charles Dickens ou de Sherlock Holmes mas, sim, eu passaria uma das frequentes chuvas londrinas ou fugiria da neblina, na Esquina dos Poetas, uma espécie de “Quem é Quem” da literatura inglesa, escondida bem ali na Abadia de Westminster que, por sua vez, mora tão discretamente atrás do orgulhoso Big Ben que muitas vezes passa batida e ignorada pelas hordas de turistas correndo para andar na roda gigante do outro lado do rio.
fotografia Moacir Pimentel

A Esquina dos Poetas é um recanto sombrio da imponente construção que não foi originalmente planejado/destinado como tumba para os grandes escritores, dramaturgos e poetas ingleses. O primeiro poeta a ser sepultado no local foi Geoffrey Chaucer, não por ter escrito em verso e prosa The Canterbury Tales - Os Contos da Cantuária – mas por ter sido Secretário de Obras do Palácio de Westminster. O fato dele ter sido autor da estupenda coleção de histórias que, inspirada no Decamerão de Boccaccio, consolidou o idioma inglês como língua literária em substituição ao latim e ao francês, era simplesmente irrelevante à época.
No entanto, durante o florescimento da literatura inglesa no século XVI, mais de cento e cinquenta anos depois, um túmulo mais elaborado foi erguido para Chaucer na Abadia e, em 1599, Edmund Spenser foi enterrado nas proximidades. Essas duas tumbas foram os primórdios de uma tradição que se intensificou ao longo dos séculos seguintes e resultou na atual Esquina dos Poetas.
Além de Chaucer e Spenser, nessa encruzilhada dormem seus sonos eternos os poetas John Dryden, Alfred Lord Tennyson, Robert Browning e John Masefield e os escritores William Camden, Dr. Samuel Johnson, Richard Brinsley Sheridan, Rudyard Kipling e Thomas Hardy.
Porém em Westminster outros grandes poetas e escritores também são homenageados apenas com memoriais. É o caso dos poetas John Milton, William Wordsworth, Thomas Gray, John Keats ao lado de Percy Bysshe Shelley, Robert Burns, William Blake, TS Eliot e Gerard Manley Hopkins. Como também de escritores como Samuel Butler, Jane Austen, Oliver Goldsmith, Sir Walter Scott, John Ruskin, Charlotte, Emily e Anne Brontë, Henry James e Sir John Betjeman, o poeta laureado.
O túmulo de Charles Dickens atrai multidões de visitantes não apenas em reconhecimento pelo talento de suas pretinhas mas pela defesa que ele sempre fez dos socialmente privados e excluídos e da abolição do tráfico de escravos. E até o maior escritor inglês, William Shakespeare, que foi sepultado em 1616 em sua cidade natal de Stratford-upon-Avon, ganhou em Westminster um monumento para chamar de seu com uma bela estátua, em 1740.
fotografia Moacir Pimentel

Outra adição tardia foi Lord Byron, cujo estilo de vida causava escândalo, embora sua poesia fosse muito admirada.
Devo confessar, porém, que esse passeio literário sepulcral, no atacado, não é a minha caminhada literária favorita e duvido que tenha sido aquela da autora das cartas que lemos nesse livro/filme, nos quais ela tentava explicar ao livreiro Frank Doel porque não apreciava a ficção nem os textos e/ou poesias “selecionados”:
Aliás e a respeito do livro de nome A Poesia Completa e a Prosa “Selecionada” de John Donne e a Poesia Completa de William Blake, você poderia me dizer o que esses dois rapazes têm em comum, além do fato de ambos serem ingleses?” (rsrs)
Convenhamos que o grande William Blake foi um ilustrador muito melhor – pelo menos para o poema Paraíso Perdido de John Milton - do que poeta.
William Blake - Ilustração para O Paraíso Perdido de Milton /  London (poema)

Aliás, a figura misteriosa e complicada de Blake está mais presente na história literária de Londres no Parque de Peckham Rye, onde há cerca de dois séculos e meio o artista romântico afirmou ter tido um dos seus primeiros encontros celestiais. Isso mesmo. Aos dez anos de idade, enquanto fazia uma de suas caminhadas regulares pelos então campos de Peckham Rye, a valentes quilômetros do centro da cidade, eis que de repente ele olhou para o alto e viu um frondoso carvalho carregado de anjos de asas brilhantes.
Não, o garoto não ficou assustado com os visitantes angélicos, nada disso. Em vez, correu para casa para compartilhar, todo contente, a sua experiência com os pais. Como aquela não fora a primeira visão celestial do pequeno William - ele já tinha visto o Profeta Ezequiel debaixo da cama quando tinha quatro anos de idade - seus genitores perceberam que tinham nas mãos um filho muito imaginativo e o mandaram para a escola de arte onde o pirralho aprendeu a desenhar (rsrs) Hoje, na região há um enorme mural com uma árvore de anjos azuis registrando o local do encontro sobrenatural do poeta/ilustrador.
A escritora Helene Hannf nos conta que visitou a Catedral, mas o encontro dessa senhora ou de quem quer que seja com a literatura inglesa ou de qualquer outra nacionalidade, é um acontecimento lento que rola por toda uma vida. Logo, a Abadia de Westminster pode até ser um GPS mas não é uma tradução fiel da literatura e da história inglesas, não é o pano de fundo ideal das Lendas Arturianas dos séculos V e VI, das Aventuras de Robin Hood no século XII, das Viagens de Gulliver no XVIII.
Aqueles túmulos e placas nada nos contam sobre tantas obras cujo cenário é Londres como é o caso de um dos meus favoritos: o clássico e gótico romance de 1886 de nome O Estranho Caso do Dr. Jekyll e do Sr. Hyde no qual o escocês Robert Louis Stevenson narra a história de Utterson, um advogado que acompanha os horrores cometidos em série por um misterioso criminoso na Londres do final do século XIX.
O clima sombrio da capital inglesa contorna a história e dá o tom de mistério, pois mesmo durante o dia a névoa deixa a cidade escura, transformando os transeuntes em vultos. O contexto histórico do país também é transcrito na trama: o avanço nas pesquisas e experimentos científicos, o êxodo rural devido à Revolução Industrial, os contrastes econômicos, o centro urbano em estado de caos, a fumaça, a poluição e aumento dos índices de criminalidade, motivo pelo qual foi criada a Scotland Yard.
Pode-se afirmar que, em meio a essa conjuntura, o lado tenebroso da sociedade vitoriana e a dualidade do homem foram discutidas na obra prima de Stevenson, que foca na personalidade dividida do respeitável Dr. Jekyll e do seu alter ego, o violento Sr. Hyde.
Essa duplicidade é ecoada, inclusive, nos mapas antigos da cidade. Localizada no West End, logo à saída da Oxford Street, a Praça Cavendish era para os vitorianos uma refinada e rica cidadela da medicina, onde moravam o Dr. Jekyll e seu amigo Dr. Lanyon. Só quem deixa para trás a praça e, em seguida, vagueia pelo Soho que serve de cenário para o comportamento imoral do Sr. Hyde, entende porque as duas áreas foram deliberadamente contrastadas na história.
A Abadia não nos revela que o Drácula do irlandês Bram Stoker vem à cidade para seduzir Mina Harker, lá não ficamos sabendo da Guerra dos Mundos de H. G. Wells nem qual foi o Pecado de Liza de Somerset Maugham e muito menos das conversas que Arthur Conan Doyle inventou para os seus Sherlock e Watson. Nessa esquina de Westminster não se tem qualquer vislumbre do Napoleão de Notting Hill de G. K. Chesterton, dos Filhos e Amantes - inclusive o da Lady Chatterley! - inventados por de D. H. Lawrence nem se percebe qualquer vestígio do 1984 de George Orwell.
Para tanto é melhor visitar o prédio da BBC. Sim, porque George Orwell, cujo nome verdadeiro era Eric Blair, trabalhou para a BBC de 1941 a 1943 e teve um relacionamento ambivalente com a empresa. Enquanto ele admirava sua missão e seu propósito, achava a atmosfera à sua volta burocrática e sufocante, descrevendo seu dia a dia na BBC como "algo a meio caminho entre uma escola de meninas e um asilo para lunáticos"!
No entanto, é claro que a BBC influenciou definitivamente dois dos seus livros: A Revolução dos Bichos e 1984, que ele escreveu logo depois de deixar a gigantesca coorporação. A experiência também sublinhou o seu compromisso com o jornalismo claro e verdadeiro como lemos já na introdução da Revolução e em uma das paredes da BBC:
“Se a liberdade significa qualquer coisa, significa o direito de dizer às pessoas o que elas não querem ouvir”
Não, a Abadia de Westminster não nos contará que um dos primeiros arranha-céus da cidade, o histórico prédio Art Deco de nome The House of Senate - A Casa do Senado - que hoje é o lar da biblioteca da Universidade de Londres, serviu de modelo para George Orwell inventasse na sua novela distópica 1984, o Ministério da Verdade onde o protagonista Winston Smith passa seus dias úteis como membro do Partido, suportando uma existência sob a vigilância totalitária do Big Brother.
Os túmulos da Esquina dos Poetas nada nos dizem do Admirável Mundo Novo de Aldous Huxley nem ali se fica conhecendo os mercados coloridos, as galerias, restaurantes e lojas vintage de Brick Lane, o livro da Monica Ali, que tomou emprestado o nome dessa rua arquetípica e vibrante localizada no East End de Londres para narrar a vida da jovem Nazneen, a indiana que chega à cidade após um casamento arranjado.
No interior sombrio da Catedral não se tem ideia que o cruzamento da Finchley Road com a West End Lane, em Camden, é o cenário para um episódio crucial no romance  A Mulher de Branco de Wilkie Collins. Nem se descobre que a comida do Rules - o restaurante mais antigo de Londres – é imperdível e que a casa tem um de seus salões dedicado ao romancista Graham Greene, porque ele usou as cadeiras de couro, os retratos emoldurados, os painéis de madeira e o tapete vermelho e dourado como pano de fundo para dois encontros dramáticos do casal de adúlteros Bendrix e Sarah em sua novela Fim de Caso.
A Abadia não nos mostra outro edifício literário, a Estação Vitória, um local que já era para lá de movimentado em 1895 quando se tornou  o cenário para as obscuras origens de Jack Worthing na peça "The Importance of Being Earnest" de Oscar Wilde , cujo título em português pode ser lido como A Importância de Ser Honesto ou de ser Prudente ou de ser Ernesto já que o autor fez aí um trocadilho com o nome de um personagem, o Ernest, e o adjetivo earnest, que por terem  o mesmo som  no inglês criam no original, recheado de humor e ironia, uma série de situações cômicas e é um pecado se perder piadas na tradução.
A estação hoje abriga a versão britânica do Orient Express que, sem deixar de ser livro – o romance policial Assassinato no Expresso Oriente escrito por Agatha Christie e protagonizado pelo detetive belga Hercule Poirot – é também o trem famoso que ainda faz o trajeto de Londres para Veneza.
Na realidade, se sai da Estação Vitória de manhã cedo em outro belo comboio antigo, um Pullman britânico restaurado primorosamente. É só em Calais que o belíssimo Orient Express dá o ar da graça dele. A bordo come-se mais do que se deveria, dorme-se com todo o conforto e se chega a Veneza na hora do chá do segundo dia. Sim, é um show mas e daí? É dos bons e nessa vida, muito de quando em vez, faz bem à alma apertar o botão do dane- se (rsrs)
Bem, penso que Helene Hanff começou o seu poasseio “literário” pelo lugar certo: A Rua Charing Cross. Mas essa será outra conversa...

  

24/05/2019

O fantasma

imagem Hotéis Zarpo - www.zarpo.com


Heraldo Palmeira
A imagem de abandono não lembra em nada o glamour que dominou seus ambientes suntuosos. Eu mesmo perdi a conta das vezes em que me hospedei ali, em viagens profissionais. Sempre gostei de andares mais altos e ali eles não faltavam, eram vinte e nove pavimentos.
A vista era sempre deslumbrante, só havia apartamentos de frente, resultado do engenhoso projeto arquitetônico em meia-lua onde corredores, elevadores e escadas ficavam na parte dos fundos de cada piso.
O prédio imponente virou atração turística desde a inauguração, quarenta anos antes, e símbolo de requinte para a cidade. Não foram poucas as celebridades, autoridades e milionários que marcaram época em suas dependências. Et pour cause, mulheres lindas.
Os restaurantes refinados, especialmente o da cobertura, apartamentos enormes, serviço à altura da tradição do nome da família hoteleira completavam a sensação de algo especial no ar. Talvez o luxo e a efervescência cultural que saltavam aos olhos de quem cruzava o lobby suntuoso.
É doloroso testemunhar algo que aparenta estar acima do tempo sucumbir ao passar dos anos, sem que se perceba o exato momento em que o charme se tornou duvidoso e deu lugar à decadência.
Uma torneira que não para de pingar a noite inteira, instalando uma cantoria que martela o silêncio do sono. Outra que, aberta, faz jorrar do chuveiro uma torrente contaminada pela ferrugem do encanamento obsoleto. Uma cortina rasgada, envergonhada por não mais conter a invasão da luz externa. O sistema de refrigeração que produz mais barulho do que uma temperatura suave. A velha caldeira que garante um banho de espasmos de desarmonia entre água gelada ou fervente.
Sim o hotel soberano é agora um arremedo do que foi, repete a triste história vivida por seus irmãos que um dia também reinaram em outras grandes cidades como símbolos de uma era. Talvez tenha sido vítima de um sentimento narcísico, incapaz de enfrentar o envelhecimento com sabedoria, de cuidar da própria saúde.
O enorme tapete vermelho que se pronunciava já na calçada deu lugar à sujeira dos moradores de rua que se multiplicam, sem solenidade, diante da entrada agora lacrada e das pichações que cobrem a fachada.
O ambiente ficou pesado, contaminando o comércio que ainda resiste na vizinhança imediata de uma galeria popular. Todos temem que os quase trezentos apartamentos sejam tomados de assalto pelos mendigos e oportunistas. Quem sabe, eles guardem o desejo de usufruir do que sobrou do luxo que jamais teriam acesso, e aceitem viver como avatares de um tempo agora repleto de fantasmas.
Muito provavelmente haveria disputa pela suíte presidencial que ocupa meio andar, debruçada sobre o magnífico parque encravado do outro lado da avenida. Ou pelas quatro suítes de governador – como o pessoal do hotel costumava chamar as outras quatro que completam o mesmo piso.
O discurso ensaiado informa que as atividades foram suspensas em razão das condições momentâneas do mercado na cidade, resultado da crise econômica. Soa como o choro sufocado de uma mulher que passou a vida fascinando a todos e, agora, diante do espelho, finge não enxergar nos traços disformes da beleza fugidia a ação devastadora e irrecuperável do tempo.
Na verdade, especialistas apontam perspectivas praticamente nulas de reabertura e os números frios da realidade revelam dívidas trabalhistas e fiscais de grande monta. Sem contar que as instalações estão completamente defasadas e uma recuperação é improvável diante dos custos que envolveria.
Parece que o único tesouro que ainda resta é a mobília classuda, em estilo retrô, motivo de cobiça de outros hoteleiros, embora não haja, por enquanto, qualquer negociação a respeito.
Quem passa na grande avenida se depara com o gigante abandonado, escuro, como um retrato perdendo suas cores. Agora, apenas um túmulo suntuoso de uma época, que guarda a memória de tantos hóspedes, frequentadores e empregados.
Ainda é possível fechar os olhos e ouvir a saudação dos quase amigos do check-in: “Seja bem-vindo ao Othon Palace BH”. Doce ilusão que se dissipa num piscar de olhos, tragada pela falência cruel, pela imundície na calçada e pelo rugido urbano ao redor.



21/05/2019

Devaneios

aquarela Ana Nunes



Ana Nunes
Gira tempo
Catavento
Cavalos alados
Carrossel vazio
Roda estrela
Roda lua
Girassóis
Rabo de gato
Ninho vazio
Pena de passarinho

Balanço sem corda
Acorda no vento
Que já sem tempo
Não pode voar
Corrupio
Cirandar

Leva o vento a poeira
Sem rumo
Sem sorte
Roda o pião até a morte

Gira mundo
Gira fundo
Que não para de girar


17/05/2019

A Mona Lisa espanhola

Gioconda - cópia do Museu do Prado restaurada (imagem wikimedia)

Moacir Pimentel
Apresento-lhes outra Mona Lisa, praticamente desconhecida, que mora no Museu do Prado em Madri. Até recentemente, não se dava a menor bola para essa cópia da Mona Lisa - uma das dezenas feitas ao longo dos séculos – até que os técnicos do Prado fizeram sobre ela uma descoberta notável.
A primeira referência documental feita à pintura consta de um inventário de 1666 na Galleria del Mediodia do Alcázar em Madri. Não se sabe quando o retrato passou a fazer parte da Coleção Real Espanhola, embora ele já estivesse na Espanha nos primeiros anos do século XVII. Desde a fundação do Prado, em 1819, a cópia faz parte do seu acervo, pendurada nas suas paredes ao lado de obras-primas de artistas italianos como Rafael e Andrea del Sarto.
A pintura foi catalogada no acervo do museu espanhol sem muita algazarra, como uma cópia anônima da Mona Lisa de fundo negro retinto e coberta por uma camada de verniz escuro que lhe conferia um brilho amarelado e anulava a sua vitalidade, datada do primeiro quarto do século XVI.
Jamais houve qualquer sugestão de que essa maravilha pudesse ter sido pintada por Leonardo, embora dela existisse uma litografia, o que é incomum para uma cópia anônima. A obra era atribuída aos alunos favoritos de Leonardo, Salai ou Francesco Melzi, embora tivesse sido cogitada a hipótese da pintura ser de autoria de um dos alunos espanhóis de Leonardo, Fernando Yáñez de la Almedina ou Hernando de los Llanos, tanto porque afinal de contas a pintura terminara na Espanha quanto por não ser uma cópia italiana típica devido à sua execução cuidadosa e bem acabada, bem como ao demasiado uso de materiais como o lápis lazuli e a laca vermelha.
Até que o Museu do Louvre, faz alguns anos, decidiu fazer uma exposição sobre Leonardo da Vinci intitulada A Última Obra Prima de Leonardo: Santana. E só porque os franceses não quiseram mover a sua Mona Lisa original da casinha de vidro à prova de balas dela para um lugar menos seguro, pediram aos do Prado para levantar a ficha da cópia, pois a queriam emprestada para usar como chamariz na entrada da galeria da exposição. Foi só aí que os peritos espanhóis se deram ao trabalho de estudar a sua própria Mona Lisa.
Descobriram então que o fundo original da pintura tinha sido obscurecido por uma camada de tinta preta, uma prática muito comum no século XVII. Por sorte, uma camada de verniz protegera o que estava por baixo. Assim, uma vez removido o pretume, apareceu o mesmo fundo toscano da pintura de Leonardo, oferecendo uma tentadora prévia do que poderia ser descoberto ao longo de uma restauração de respeito.
Leonardo da Vinci - Mona Lisa / autor desconhecido - Mona Lisa do Prado (imagens wikimedia)

Acontece que a Mona Lisa espanhola não era apenas uma cópia de quinhentos anos da mais badalada obra de Leonardo. Os técnicos do Prado descobriram que ela fora pintada por um dos alunos de Leonardo enquanto o seu mestre pintava a original.
Isso mesmo. Simultaneamente!
As duas obras de arte foram minuciosamente estudadas através de técnicas modernas - raios-X, espectroscopia de infra-vermelho e imagens digitais de alta resolução - e foi provado que ambas compartilharam, durante seus processos criativos, várias e idênticas correções, reforçando a conclusão de que foram executadas simultaneamente por da Vinci e por outro alguém que tentava duplicar todas as suas magistrais pinceladas, enquanto ele produzia sua famosa senhora de sorriso enigmático.
Como assim?
Bem, para começo de conversa, comparações científicas das duas Monas juntas – elas se conheceram pessoalmente quando foram exibidas lado a lado no Museu do Louvre em 2012 - juraram de pés juntos que, por causa de suas perspectivas ligeiramente diferentes, quando as duas Giocondas são contempladas lado a lado criam um efeito 3-D, geram uma sensação de visão tridimensional e formam a primeira imagem estereoscópica da história mundial, um efeito que teria sido criado acidentalmente.
Os especialistas também passaram a acreditar que as montanhas no fundo da pintura foram pintadas em uma terceira tela separada que foi colocada como um pano de fundo atrás da mulher que posava. Isso não é diferente do que se fazia, por exemplo, nos estúdios de fotografia e sets de cinemas do último século antes que a computação mudasse tudo.
Sucede que os técnicos notaram que nessas pinturas notavelmente semelhantes, o cenário de fundo é aproximadamente dez por cento maior na versão menos familiar do trabalho. Essa diferença de perspectiva entre as duas pinturas – a paisagem de fundo ligeiramente ampliada na tela do Prado - deixou os especialistas madrilenhos de orelhas em pé e muito desconfiados de que dois artistas diversos pintaram as duas Mona Lisas ao mesmo tempo e lado a lado e que, ao pintar o fundo, da Vinci estava poucos passos atrás do outro pintor. Daí o fundo ampliado da Mona Lisa do Prado.
Portanto, as conclusões científicas sobre essa cópia da senhora florentina nos autorizam a visualizar Leonardo em seu ateliê em Florença pintando Lisa Gherardini enquanto um aluno, junto ao cavalete do mestre, copiava o seu processo criativo passo a passo, em todas as suas etapas, do esboço primordial à derradeira pincelada.
A chave dessa descoberta foram os “pentimenti”, ou seja, o desenho subjacente que era o mesmo por baixo de ambas as pinturas. Também são idênticas as mudanças realizadas nele, embora com estilos diferentes.
O fato é que os raios modernosos descobriram que as figuras são praticamente iguais em dimensão, forma e pose e que ambas sofreram desvios do desenho original no contorno da cintura, na posição dos dedos, na boca, no véu e nos cabelos e até mesmo ajustes menores nas bochechas e no pescoço. Ambos os pintores alteraram o tamanho da cabeça, diminuíram o peito e abaixaram os decotes das suas respectivas Mona Lisas. E, mais importante, apesar das alterações terem sido idênticas, as linhas não foram, o traço e a paleta eram diversas.
A jovem senhora do Prado tem um ar de graciosa melancolia: a modelagem e os tons de carne de seu rosto, e a mão direita em particular, são finamente pintados, embora sem o sfumato tão característico do trabalho de Leonardo. O termo pode ser traduzido por esfumado - de fumaça - e define a transição gradual e quase imperceptível entre áreas de cores diversas dispensando os contornos nítidos. A habilidade de suavizar as bordas duras, principalmente nos retratos, era considerada como a assinatura de Leonardo.
Já o cuidado e a clareza leonardescos com os quais a transparência do tecido é renderizada, acentuando o vermelho vibrante das mangas e os detalhes mínimos na parte superior do corpete, sugerem que tais detalhes estão hoje invisíveis na Mona Lisa original. Outros elementos da pintura foram lindamente representados, talvez não exatamente no padrão de Leonardo, mas com uma atenção ao detalhe digna de outro mestre.
Partes da cópia do Prado, como as mãos, por exemplo, são geniais mas no geral a Mona Lisa espanhola não é uma pintura tão fina ou esfumada quanto as de da Vinci. O motivo pelo qual essa maravilhosa cópia foi feita continua a ser uma interrogação.
O fato é que um mero copista não poderia ter feito tais correções porque sem uma potente visão de raio-X nunca teria percebido as mudanças cobertas pelas tintas definitivas da superfície da pintura.
A Mona Lisa do Prado é importante pelo que revela sobre a verdadeira Mona Lisa, escurecida e envelhecida pelo tempo. Muitos são de opinião que a Gioconda de Madri parece mais jovem e vibrante só porque o brilho da obra-prima de Leonardo foi apagada por camadas de verniz lascado e pela poeira dos séculos.
Na verdade essa cópia, ao nos revelar uma mulher muito mais jovem além de nos oferecer detalhes que estão obscurecidos na obra de arte original, nos faz imaginar que revelações poderia fazer ao mundo a Mona Lisa francesa se também fosse restaurada. Não tem como não ficar curioso.
Será que como a sua irmã do Prado a Mona Lisa do Louvre já teve sombrancelhas e elas desapareceram ao longo do tempo? Afinal Vasari as descreveu:
“As sobrancelhas, não poderiam ser mais naturais pois mostram a maneira pela qual os pelos brotam da carne, aqui mais fechados e ali mais escassos, e curvados de acordo com os poros da pele.”
A cópia restaurada e brilhante muito nos ilumina sobre o processo criativo do gênio do Renascimento, sobre os seus métodos e pensamentos, sobre como rolava o trabalho no seu estúdio e nos oferece uma melhor compreensão do trabalho original, particularmente na paisagem e detalhes do rosto e das mãos.
Tecnologias recentes têm possibilitado que muitas pinturas importantes nos sejam mostradas assim, pelo ângulo do seu esboço primordial, das suas primeiras tentativas - ajustadas e retrabalhadas - sob a imagem final. Às vezes o trabalho inicial, por baixo da superfície que conhecemos, assim como acontece com alguns esboços, é ainda mais fascinante do que a própria pintura. É como se os raios nos revelassem algo que só os artistas visualizaram há séculos atrás.
Para mim, no entanto, uma questão importante se não foi esquecida pelo menos foi negligenciada nessa conversa sobre as Monas: quem pintou a do Prado? Quem foi o autor da cópia, quem foi esse artista desconhecido que ao copiar Leonardo não usou a técnica do sfumato mas que, ao contrário da do Louvre, dotou a sua Lisa de sobrancelhas? Seja quem foi, além de um pintor preciso e comprometido com seu ofício era possuidor de um imenso talento. É como se da Vinci tivesse dado a um aluno especial uma aula de pintura.
Pessoalmente estou entre os que duvidam que os mais conhecidos assistentes de da Vinci, Giacomo Salai e Francesco Melzi, pudessem ter pintado tal obra-prima. Segundo Vasari, Leonardo escolhia seus alunos por sua aparência e não pelo seu talento tanto que o próprio da Vinci nos seus cadernos descreveu sim, não as habilidades artísticas, mas os cabelos encaracolados de Salai e também a beleza de Melzi, mesmo na velhice. Tais alunos não eram pintores talentosos e jamais teriam sido capazes de fazer uma cópia tão fascinante quanto a Mona Lisa do Prado.
Sucede que vários exames realizados nas Lisas do Louvre e do Prado revelaram que por baixo das suas tintas, nos seus primórdios, nenhuma das Lisas sorria. Acontece que uma outra imagem de uma Mona Lisa sem o indizível sorriso mora em um esboço precoce que outro grande artista fez dela.
E quem era esse pintor?
Raffaello Sanzio da Urbino que, ao lado de Michelangelo di Lodovico Buonarroti Simoni e de Leonardo di Ser Piero da Vinci forma a tríade de grandes mestres do Alto Renascimento.
Dona História nos garante que - atenção! - em 1504, o jovem Rafael estava mesmo em Florença como aprendiz de Leonardo da Vinci, a quem reverenciou por toda a sua curta vida. Descrito pelo professor como um jovem de extraordinária habilidade artística, sabemos que no estúdio de Leonardo Rafael produziu um pequeno esboço de tinta marrom de uma jovem mulher, provavelmente uma modelo usada por Leonardo para ajudar a treinar seus aprendizes.
Esse retrato é de grande importância na história da Mona Lisa e tanto os historiadores da arte quanto os especialistas em Leonardo estão de acordo que o desenho foi diretamente influenciado pela pintura da Mona Lisa del Giocondo enquanto Leonardo estava realmente trabalhando nela.
Nesse esboço que se chama “Jovem em uma Varanda” Rafael copiou da Mona Lisa a paisagem plana, a ausência de adornos, a pose então vanguardista depois chamada “três quartos”, a cabeça inclinada ligeiramente para a frente, os olhos direcionados para o espectador e a mão direita suavemente pousada sobre a esquerda.
O foco do esboço de Rafael - a jovem modelo! – se parece com a Mona Lisa do Prado. As colunas que enquadram e flanqueiam dramaticamente a jovem desenhada são a única diferença mas não podemos esquecer que as bases das colunas, pelo menos, aparecem tanto na Mona Lisa do Louvre quanto na do Prado e vale salientar que as duas colunas pintadas por Rafael na sua Dama com o Unicórnio aparecem em lugar idêntico na imagem da Mona Lisa de Isleworth. Teria Rafael visto a primeira das Lisas antes dela ser entregue a seu dono?
Raffaello Sanzio - Retrato de uma mulher (esq.) / Retrato de uma dama com um unicórnio (dir.) (wikimedia commons)

Rafael sem quaisquer dúvidas foi fortemente influenciado por Leonardo tanto que usou o esboço como base para a pintura “Senhora com o Unicórnio”, à direita na montagem. Mais uma vez, vemos a mesma composição com os pilares laterais e paisagem plana por trás. A dama na pintura é, supostamente, a nobre Madalena Strozzi ricamente vestida quando de seu noivado, em contraste com a roupa relativamente sem adornos da Mona Lisa.
Em sua obra As Vidas, Giorgio Vasari é particularmente efusivo sobre a forma como o trabalho de Rafael foi influenciado por Leonardo da Vinci. Rafael foi a Florença na primeira década do século XVI com a intenção de estudar os grandes artistas florentinos e aproveitou a oportunidade para observar Leonardo trabalhando, entre outros projetos, o retrato de Lisa Gherardini, a jovem esposa de Francesco del Giocondo.
Vasari relatou como Rafael “ficou maravilhado e espantado” ao ver as obras de Leonardo da Vinci, que superavam todas as suas rivais de todos os outros pintores “nas expressões de homens e mulheres e na graça e movimento de suas figuras”.
O primeiro dos historiadores da arte e biógrafo dos artistas renascentistas literalmente escreveu que a arte de Leonardo agradou a Rafael “mais do que qualquer outra que ele já tinha visto” e que, portanto, “ele se estabeleceu para estudá-lo e procurou com o melhor de seu poder e conhecimento imitar Leonardo” e atestou ainda que, apesar da sua diligência e profundo estudo, Rafael nunca conseguiu superar Leonardo embora “tenha chegado mais perto dele do que qualquer outro pintor, acima de tudo na graça do colorido”.
Como se não bastassem as observações de Vasari, nos seus próprios Cadernos Leonardo deixou registrado que:
“Rafael copiou algumas das minhas obras durante sua permanência em Florença”.
Pergunto: não poderia ser Rafael o copista talentoso anônimo, o verdadeiro autor da Mona Lisa do Prado?
Se Rafael esteve na cena do crime prefiro acreditar que o tenha cometido. Quem pintou a Mona Lisa do Prado tinha talento suficiente para capturar, acima de tudo, o poder e a força clássicos dos rostos e das formas esculpidas pelas sombras de Leonardo. O esboço de Rafael tem as mesmas sombras ao longo do nariz e em torno dos olhos que Leonardo pintava. Mesmo que seja um retrato de outra pessoa e que discorde estranhamente de algumas das características da pintura de Leonardo, o trabalho de Rafael é, estranhamente próximo da aparência da Mona Lisa.
Por que devo imaginar como autor da Mona Lisa do Prado um aluno espanhol desconhecido - totalmente brilhante mas que depois da senhora do Prado nunca mais pintou nada de bom! - se Rafael esteve presente enquanto a Mona Lisa era criada?
Para o papel de copista da Mona Lisa francesa e autor da espanhola voto em Rafael Sanzio pedindo vênia a TODOS os especialistas em arte renascentista (rsrs)
  

14/05/2019

Autorretrato

fotografia - Divulgação (Facebook)


Heraldo Palmeira
O domingo amanheceu comum, aquela coisa preguiçosa de ficar na cama querendo parar o tempo um pouquinho para ele durar mais.
“Deito mais tarde que devo
E acordo antes do que gosto”
Abri os olhos e a primeira sensação de que estava acordado foi lembrar do que me escrevera um amigo generoso, que, relendo poemas da sua juventude, reencontrou Vinícius em “Auto-retrato”. E dali retirou três versos que julgava associados às minhas motivações para escrever.
“Infância: pobre, mas linda
Tão linda que mesmo longe
Continua em mim ainda”
Também cumpro o ritual comum a todos, dar uma olhada inicial nas redes sociais onde estamos irremediavelmente pendurados. E hoje havia uma torrente específica delas, por causa do Dia das Mães. Inclusive essa foto maravilhosa de mãe e filho entregues ao seu amor, que está na abertura.
Gosto de manter um radinho ao lado da cama. Serve também de despertador, ligado numa rádio AM para as notícias dos dias comuns.
Nos fins de semana dou folga, ele amanhece calado e sem nenhum comando para acordar antes de mim e me despertar. Mas, paixão é paixão, ligo para ouvir o mundo, pois os sábados e os domingos se acham, mas são só mais duas peças diárias do cotidiano.
Acredito que os deuses da saudade irremediável estavam em conluio para me sacudir da cama ou me deixar prostrado nela, pois fizeram tocar no radinho uma música singela da infância – aquela que continua em mim –, no exato momento em que abri na telinha do celular uma mensagem talhada para nocautear qualquer coração.
“Minha mãezinha querida
Mãezinha do coração
Te adorarei toda vida
Com grande devoção
É tua esta valsinha
Foste a inspiração
Oh, minha mãe
Minha santa, querida
És o tesouro
Que eu tenho na vida”
A mensagem mostrava a foto de folhas verdes e uma bela flor dentro de um jarro, um gramado muito bem cuidado ao lado de uma peça de granito. Era um jazigo, num desses cemitérios horizontais, sem túmulos, onde parece que a paz fez morada naquele silêncio cortado apenas pelos sussurros do vento.
Logo abaixo da imagem, a frase que marcou como brasa na carne: “Mamãe, tire uma folguinha aí no céu e hoje venha ficar um pouquinho comigo, matar minha saudade”.
Sim – não foi  só você –, eu li e reli a frase sei lá quantas vezes, cada vez com uma sensação diferente: dor, angústia, choro, contorções, posição fetal, desamparo, saudade quase física (talvez a pior de todas, a falta mais intensa porque parece quase presença), calma, suavidade, recompensa por ter sido filho, poesia...
Eu tive a sorte de ver aquela mulher que me tirou de dentro dela e não saiu nunca mais de dentro de mim preparando outra pessoa, a minha irmã. Que está aqui pertinho, como uma extensão daquela mulher matricial, maternal. Que se entregou aos efeitos do tempo para ir ficando tão grande quanto nossa matriz, uma fiel em plena comunhão com sua catedral.
Hoje foi mais um dia para ter certeza de que mães sempre morrem precocemente, não interessa a idade. Hoje foi mais um dia de romaria para o amor que percorre a distância celestial entre o meu coração e o da minha mãe, um caminho sem placas e sem indicações, sem explicações, mas que não desaparece nunca, permanece nítido como um luar do sertão, como estrelas na escuridão.
Hoje foi mais um dia para ter certeza de que posso roubar palavras de um querido amigo e dizer para minha mãe, em devoção, que eu só queria vê-la e olhar seu olhar, seu olhar, seu olhar, minha senhora desaparecida. Eu juro que estaria satisfeito mesmo que ela não dissesse uma palavra. Como aquela santa aparecida que apenas me ouve lá no altar, mas nunca me deixa falando sozinho.
A casa estava em silêncio, todos haviam saído. O café preto e as outras delícias da manhã foram se traduzindo em poções de vida boa. Conheço poucos prazeres como sentir aquele cheiro insuperável, só exalado no exato momento em que a água fervente vai ficando cheia de bossa e de cor depois de passar pelo pó no coador.
Pensei no mistério da vida, nos meus dias que podem ter manhãs amanhecendo ainda no escuro ou já no início da tarde, sempre resultado direto da noite anterior.
Pensei na minha mãe sempre tão suave, e na infância, na poesia que havia nelas. Tempo que fingia parar quando os adultos apagavam velas e lamparinas que iluminavam a casa do interior e eu levantava em seguida, quase flutuando, enquanto todos já dormiam, só para olhar o céu de estrelas e conversar com Deus – só porque minha mãe conversava com Ele.
“Se eu quiser falar com Deus
Tenho que ficar a sós
Tenho que apagar a luz
Tenho que calar a voz
Tenho que encontrar a paz
Tenho que folgar os nós
Dos sapatos, da gravata
Dos desejos, dos receios
Tenho que esquecer a data
Tenho que perder a conta
Tenho que ter mãos vazias
Ter a alma e o corpo nus
Tenho que dizer adeus
Dar as costas, caminhar
Decidido, pela estrada”
Ah, a poesia, esse mistério que nos mantém vivos e fala por nós.
Natal (RN), maio de 2019
Trechos de:

Auto-retrato (Vinícius de Moraes)
Mãezinha querida (Hilton Junqueira-Jaime Vila-José Henrique Lins)
Se eu quiser falar com Deus (Gilberto Gil)