fotografia Moacir Pimentel |
Moacir Pimentel
A escritora Helene Hanff sonhava empreender uma
viagem “literária” através do Reino Unido. A pergunta é: qual seria o roteiro? Não
é fácil definir a “Inglaterra literária”
que ela tanto procurava. Provavelmente um dos lugares mais férteis da história
literária da humanidade, é quase impossível listar todos os autores e todas as
obras - de ficção ou não - nascidas nessa terra bretã de gigantes. Gente séria,
a galera do National Geographic sugere que na ilha das brumas e adjacências
existem mais de quinhentas localidades “literárias” que, ou foram a terra natal
dos escritores, ou os inspiraram ou serviram de cenário para aquilo que
escreveram.
De Beowulf às peças shakespearianas, dos poemas de
Robert Burns escritos nos primeiros anos do século XVIII às obras de Irvine
Welsh sobre o submundo de Edimburgo no emblemático livro Trainspotting – que virou o filme de nome Sem Limites - pense em
uma Inglaterra literada!
Por onde começar a peregrinação das pretinhas? Pela
cidade de Stratford-upon-Avon, que inaugura o post, onde nasceu e viveu e
morreu o grande William Shakespeare? Por Edimburgo, lá na mais pitoresca das
fronteiras do reino, o local de nascimento de Robert Louis Stevenson, Arthur
Conan Doyle e Muriel Spark? Por Birmingham em cujos arredores Tolkien, na
virada dos séculos XIX e XX, passou as infância e juventude se inspirando nos
belos campos circundantes para criar as terras idílicas habitadas pelos hobbits
da série do Senhor dos Anéis?
Ou seria melhor fazer uma imersão na costa da
Cornualha que inspirou os romances da escritora Daphne du Maurier como Rebeca e O Bode Expiatório e Jamaica
Inn e, inclusive, o conto Os Pássaros
– que muitos dizem ter ela plagiado do livro de mesmo nome do Frank Baker – mas
que seja lá como foi, tornou-se uma paisagem perfeitamente capturada na
adaptação cinematográfica do lendário diretor Alfred Hitchcock?
Quem
sabe passando por Torquay, outra localização costeira, dessa vez em Devon, que
foi uma das fontes de onde bebeu Agatha
Christie para criar as queridas Miss Marple e Tuppence? Ou seria melhor fazer
uma escala na pequenina aldeia de Haworth que só não é esquecida na
deliciosamente remota paisagem de Yorkshire porque foi ali que irmãs Brontë
rascunharam romances clássicos como o Morro
dos Ventos Uivantes da Emily, a Jane
Eyre da Charlotte e a misteriosa, jovem e bonita Inquilina de Wildfell Hall da
Anne, só que sob o pseudônimo de Acton Bell?
Visitando as terrinhas natais de poetas românticos
do século XVII, como John Ruskin, Samuel Coleridge e William Wordsworth, cuja
casa ainda se pode visitar em Cockermouth? Descobrindo as dezenas de livrarias
da pequena cidade galesa de Hay-on-Wye? Conhecendo a bela Kent, escondida no
sudeste da Inglaterra, visitada por Charles Dickens regularmente em meados do
século XIX e onde – dizem! – ele teria escrito A Casa Soturna e David
Copperfield? Homenageando Bath onde Jane Austen morou e inventou as suas Razão e Sensibilidade e os seus Orgulho e Preconceito? Ou tropeçando em
Oxford, a cada dois passos, com uma faculdade, taverna ou biblioteca assombrada
pelo fantasma de um grande escritor?
Perambular pelas salas de leitura sossegadas da
British Library, em Londres, que coleciona manuscritos que datam de quatro mil
anos e que hoje é a segunda maior do vasto mudo, só perdendo para a Biblioteca
do Congresso Americano.
Nela há que conhecer a Biblioteca do Rei e a
Galeria Sir John Ritblat: a primeira uma torre de vidro de seis andares no meio
do prédio, contendo dezenas de milhares de livros, volumes, panfletos,
manuscritos e mapas coletados pelo Rei George III e a última, à direita da
entrada principal, uma exposição gratuita e deslumbrante, que exibe os
manuscritos originais - muitos com anotações manuscritas dos autores! -
incluindo a Magna Carta, uma Bíblia de Gutenberg, as cópias originais de Beowulf,
das Lendas da Cantuária, das Aventuras de Alice no País das Maravilhas, da
Senhora Dalloway e é claro, do Primeiro Fólio de Shakespeare.
Não, eu não faria escalas turísticas nos museus de
John Keats, de Charles Dickens ou de Sherlock Holmes mas, sim, eu passaria uma
das frequentes chuvas londrinas ou fugiria da neblina, na Esquina dos Poetas, uma espécie de “Quem é Quem” da literatura inglesa, escondida bem ali na Abadia de
Westminster que, por sua vez, mora tão discretamente atrás do orgulhoso Big Ben
que muitas vezes passa batida e ignorada pelas hordas de turistas correndo para
andar na roda gigante do outro lado do rio.
fotografia Moacir Pimentel |
A Esquina dos
Poetas é um recanto sombrio da imponente construção que não foi
originalmente planejado/destinado como tumba para os grandes escritores,
dramaturgos e poetas ingleses. O primeiro poeta a ser sepultado no local foi
Geoffrey Chaucer, não por ter escrito em verso e prosa The Canterbury Tales - Os Contos da Cantuária
– mas por ter sido Secretário de
Obras do Palácio de Westminster. O fato dele ter sido autor da estupenda coleção de histórias que, inspirada no Decamerão de Boccaccio, consolidou o idioma inglês como língua
literária em substituição ao latim e ao francês, era simplesmente irrelevante à
época.
No entanto, durante o florescimento da literatura
inglesa no século XVI, mais de cento e cinquenta anos depois, um túmulo mais
elaborado foi erguido para Chaucer na Abadia e, em 1599, Edmund Spenser foi
enterrado nas proximidades. Essas duas tumbas foram os primórdios de uma
tradição que se intensificou ao longo dos séculos seguintes e resultou na atual
Esquina dos Poetas.
Além de Chaucer e Spenser, nessa encruzilhada
dormem seus sonos eternos os poetas John Dryden, Alfred Lord Tennyson, Robert
Browning e John Masefield e os escritores William Camden, Dr. Samuel Johnson,
Richard Brinsley Sheridan, Rudyard Kipling e Thomas Hardy.
Porém em Westminster outros grandes poetas e
escritores também são homenageados apenas com memoriais. É o caso dos poetas John Milton, William
Wordsworth, Thomas Gray, John Keats ao lado de Percy Bysshe Shelley, Robert
Burns, William Blake, TS Eliot e Gerard Manley Hopkins. Como também de
escritores como Samuel Butler, Jane Austen, Oliver Goldsmith, Sir Walter Scott,
John Ruskin, Charlotte, Emily e Anne Brontë, Henry James e Sir John Betjeman, o
poeta laureado.
O túmulo de Charles Dickens atrai multidões de
visitantes não apenas em reconhecimento pelo talento de suas pretinhas mas pela
defesa que ele sempre fez dos socialmente privados e excluídos e da abolição do
tráfico de escravos. E até o maior escritor inglês, William Shakespeare, que
foi sepultado em 1616 em sua cidade natal de Stratford-upon-Avon, ganhou em
Westminster um monumento para chamar de seu com uma bela estátua, em 1740.
fotografia Moacir Pimentel |
Outra adição tardia foi Lord Byron, cujo estilo de
vida causava escândalo, embora sua poesia fosse muito admirada.
Devo confessar, porém, que esse passeio literário
sepulcral, no atacado, não é a minha caminhada literária favorita e duvido que
tenha sido aquela da autora das cartas que lemos nesse livro/filme, nos quais
ela tentava explicar ao livreiro Frank Doel porque não apreciava a ficção nem
os textos e/ou poesias “selecionados”:
“Aliás e a
respeito do livro de nome A Poesia Completa e a Prosa “Selecionada” de John
Donne e a Poesia Completa de William Blake, você poderia me dizer o que esses
dois rapazes têm em comum, além do fato de ambos serem ingleses?” (rsrs)
Convenhamos que o grande William Blake foi um
ilustrador muito melhor – pelo menos para o poema Paraíso Perdido de John
Milton - do que poeta.
William Blake - Ilustração para O Paraíso Perdido de Milton / London (poema) |
Aliás, a figura misteriosa e complicada de Blake
está mais presente na história literária de Londres no Parque de Peckham Rye,
onde há cerca de dois séculos e meio o artista romântico afirmou ter tido um
dos seus primeiros encontros celestiais. Isso mesmo. Aos dez anos de idade,
enquanto fazia uma de suas caminhadas regulares pelos então campos de Peckham
Rye, a valentes quilômetros do centro da cidade, eis que de repente ele olhou
para o alto e viu um frondoso carvalho carregado de anjos de asas brilhantes.
Não, o garoto não ficou assustado com os visitantes
angélicos, nada disso. Em vez, correu para casa para compartilhar, todo
contente, a sua experiência com os pais. Como aquela não fora a primeira visão celestial
do pequeno William - ele já tinha visto o Profeta Ezequiel debaixo da cama
quando tinha quatro anos de idade - seus genitores perceberam que tinham nas
mãos um filho muito imaginativo e o mandaram para a escola de arte onde o
pirralho aprendeu a desenhar (rsrs) Hoje, na região há um enorme mural com uma árvore
de anjos azuis registrando o local do encontro sobrenatural do
poeta/ilustrador.
A escritora Helene Hannf nos conta que visitou a
Catedral, mas o encontro dessa senhora ou de quem quer que seja com a
literatura inglesa ou de qualquer outra nacionalidade, é um acontecimento lento
que rola por toda uma vida. Logo, a Abadia de Westminster pode até ser um GPS
mas não é uma tradução fiel da literatura e da história inglesas, não é o pano
de fundo ideal das Lendas Arturianas
dos séculos V e VI, das Aventuras de
Robin Hood no século XII, das Viagens
de Gulliver no XVIII.
Aqueles túmulos e placas nada nos contam sobre
tantas obras cujo cenário é Londres como é o caso de um dos meus favoritos: o
clássico e gótico romance de 1886 de nome O Estranho Caso do Dr. Jekyll e do Sr. Hyde no qual o escocês Robert Louis Stevenson narra a história
de Utterson, um advogado que acompanha os horrores cometidos em série por um
misterioso criminoso na Londres do final do século XIX.
O clima sombrio da capital inglesa contorna a história e dá o tom de
mistério, pois mesmo durante o dia a névoa deixa a cidade escura, transformando
os transeuntes em vultos. O contexto histórico do país também é transcrito na
trama: o avanço nas pesquisas e experimentos científicos, o êxodo rural devido
à Revolução Industrial, os contrastes econômicos, o centro urbano em estado de
caos, a fumaça, a poluição e aumento dos índices de criminalidade, motivo pelo
qual foi criada a Scotland Yard.
Pode-se afirmar que, em meio a essa conjuntura, o lado tenebroso da
sociedade vitoriana e a dualidade do homem foram discutidas na obra prima de
Stevenson, que foca na personalidade
dividida do respeitável Dr. Jekyll e do seu alter ego, o violento Sr. Hyde.
Essa duplicidade é ecoada, inclusive, nos mapas
antigos da cidade. Localizada no West End, logo à saída da Oxford Street, a
Praça Cavendish era para os vitorianos uma refinada e rica cidadela da
medicina, onde moravam o Dr. Jekyll e seu amigo Dr. Lanyon. Só quem deixa para
trás a praça e, em seguida, vagueia pelo Soho que serve de cenário para o
comportamento imoral do Sr. Hyde, entende porque as duas áreas foram
deliberadamente contrastadas na história.
A Abadia não nos revela que o Drácula do irlandês Bram Stoker vem à cidade para seduzir Mina
Harker, lá não ficamos sabendo da Guerra
dos Mundos de H. G. Wells nem qual foi o Pecado de Liza de Somerset Maugham e muito menos das conversas que Arthur
Conan Doyle inventou para os seus Sherlock e Watson. Nessa esquina de
Westminster não se tem qualquer vislumbre do Napoleão de Notting Hill de G. K. Chesterton, dos Filhos e Amantes - inclusive o da Lady Chatterley! - inventados por de D. H. Lawrence nem se percebe qualquer vestígio
do 1984 de George Orwell.
Para tanto é melhor visitar o prédio da BBC. Sim, porque George Orwell, cujo nome verdadeiro era Eric Blair,
trabalhou para a BBC de 1941 a 1943 e teve um relacionamento ambivalente com a
empresa. Enquanto ele admirava sua missão e seu propósito, achava a atmosfera à
sua volta burocrática e sufocante, descrevendo seu dia a dia na BBC como "algo a meio caminho entre uma escola
de meninas e um asilo para lunáticos"!
No entanto, é claro que a BBC influenciou definitivamente
dois dos seus livros: A Revolução dos
Bichos e 1984, que ele escreveu
logo depois de deixar a gigantesca coorporação. A experiência também sublinhou
o seu compromisso com o jornalismo claro e verdadeiro como lemos já na
introdução da Revolução e em uma das paredes da BBC:
“Se a liberdade significa
qualquer coisa, significa o direito de dizer às pessoas o que elas não querem
ouvir”
Não, a Abadia de Westminster não nos contará que um dos primeiros arranha-céus da cidade, o
histórico prédio Art Deco de nome The
House of Senate - A Casa do Senado - que hoje é o lar da biblioteca da
Universidade de Londres, serviu de modelo para George Orwell inventasse na sua
novela distópica 1984, o Ministério
da Verdade onde o protagonista Winston Smith passa seus dias úteis como membro
do Partido, suportando uma existência sob a vigilância totalitária do Big
Brother.
Os túmulos da Esquina dos Poetas nada nos dizem do Admirável Mundo Novo
de Aldous Huxley nem ali se fica conhecendo os mercados coloridos, as galerias, restaurantes e
lojas vintage de Brick Lane, o livro da Monica Ali, que tomou emprestado o nome
dessa rua arquetípica e vibrante localizada no East End de Londres para narrar
a vida da jovem Nazneen, a indiana que chega à cidade após um casamento
arranjado.
No interior sombrio da Catedral não se tem ideia
que o cruzamento da Finchley Road com a West End Lane, em Camden, é o cenário
para um episódio crucial no romance A Mulher de Branco de Wilkie Collins.
Nem se descobre que a comida do Rules
- o restaurante mais antigo de Londres – é imperdível e que a casa tem um de
seus salões dedicado ao romancista Graham Greene, porque ele usou as cadeiras
de couro, os retratos emoldurados, os painéis de madeira e o tapete vermelho e
dourado como pano de fundo para dois encontros dramáticos do casal de adúlteros
Bendrix e Sarah em sua novela Fim de Caso.
A Abadia não nos mostra outro edifício literário, a
Estação Vitória, um local que já era para lá de movimentado em 1895 quando se
tornou o cenário para as obscuras
origens de Jack Worthing na peça "The
Importance of Being Earnest" de Oscar Wilde , cujo título em português
pode ser lido como A Importância de Ser
Honesto ou de ser Prudente ou de ser Ernesto já que o autor fez aí um
trocadilho com o nome de um personagem, o Ernest,
e o adjetivo earnest, que por
terem o mesmo som no inglês criam no original, recheado de
humor e ironia, uma série de situações cômicas e é um pecado se perder piadas
na tradução.
A estação hoje abriga a versão britânica do Orient
Express que, sem deixar de ser livro – o romance policial Assassinato no Expresso Oriente escrito por Agatha Christie e protagonizado pelo
detetive belga Hercule Poirot – é também o trem famoso que ainda faz o trajeto de Londres para Veneza.
Na realidade, se sai da Estação Vitória de manhã cedo
em outro belo comboio antigo, um Pullman britânico restaurado primorosamente. É
só em Calais que o belíssimo Orient Express dá o ar da graça dele. A bordo
come-se mais do que se deveria, dorme-se com todo o conforto e se chega a
Veneza na hora do chá do segundo dia. Sim, é um show mas e daí? É dos bons e nessa
vida, muito de quando em vez, faz bem à alma apertar o botão do dane- se (rsrs)
Bem, penso que Helene Hanff começou o seu poasseio “literário”
pelo lugar certo: A Rua Charing Cross. Mas essa será outra conversa...