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Heraldo
Palmeira
A imagem de abandono não lembra em nada o glamour que dominou seus
ambientes suntuosos. Eu mesmo perdi a conta das vezes em que me hospedei ali,
em viagens profissionais. Sempre gostei de andares mais altos e ali eles não
faltavam, eram vinte e nove pavimentos.
A vista era sempre deslumbrante, só havia apartamentos de frente,
resultado do engenhoso projeto arquitetônico em meia-lua onde corredores,
elevadores e escadas ficavam na parte dos fundos de cada piso.
O prédio imponente virou atração turística desde a inauguração,
quarenta anos antes, e símbolo de requinte para a cidade. Não foram poucas as
celebridades, autoridades e milionários que marcaram época em suas
dependências. Et pour cause, mulheres
lindas.
Os restaurantes refinados, especialmente o da cobertura, apartamentos
enormes, serviço à altura da tradição do nome da família hoteleira completavam a
sensação de algo especial no ar. Talvez o luxo e a efervescência cultural que
saltavam aos olhos de quem cruzava o lobby
suntuoso.
É doloroso testemunhar algo que aparenta estar acima do tempo
sucumbir ao passar dos anos, sem que se perceba o exato momento em que o charme
se tornou duvidoso e deu lugar à decadência.
Uma torneira que não para de pingar a noite inteira, instalando
uma cantoria que martela o silêncio do sono. Outra que, aberta, faz jorrar do
chuveiro uma torrente contaminada pela ferrugem do encanamento obsoleto. Uma
cortina rasgada, envergonhada por não mais conter a invasão da luz externa. O
sistema de refrigeração que produz mais barulho do que uma temperatura suave. A
velha caldeira que garante um banho de espasmos de desarmonia entre água gelada
ou fervente.
Sim o hotel soberano é agora um arremedo do que foi, repete a
triste história vivida por seus irmãos que um dia também reinaram em outras
grandes cidades como símbolos de uma era. Talvez tenha sido vítima de um
sentimento narcísico, incapaz de enfrentar o envelhecimento com sabedoria, de
cuidar da própria saúde.
O enorme tapete vermelho que se pronunciava já na calçada deu
lugar à sujeira dos moradores de rua que se multiplicam, sem solenidade, diante
da entrada agora lacrada e das pichações que cobrem a fachada.
O ambiente ficou pesado, contaminando o comércio que ainda resiste
na vizinhança imediata de uma galeria popular. Todos temem que os quase
trezentos apartamentos sejam tomados de assalto pelos mendigos e oportunistas.
Quem sabe, eles guardem o desejo de usufruir do que sobrou do luxo que jamais
teriam acesso, e aceitem viver como avatares de um tempo agora repleto de
fantasmas.
Muito provavelmente haveria disputa pela suíte presidencial que
ocupa meio andar, debruçada sobre o magnífico parque encravado do outro lado da
avenida. Ou pelas quatro suítes de governador – como o pessoal do hotel
costumava chamar as outras quatro que completam o mesmo piso.
O discurso ensaiado informa que as atividades foram suspensas em
razão das condições momentâneas do mercado na cidade, resultado da crise
econômica. Soa como o choro sufocado de uma mulher que passou a vida fascinando
a todos e, agora, diante do espelho, finge não enxergar nos traços disformes da
beleza fugidia a ação devastadora e irrecuperável do tempo.
Na verdade, especialistas apontam perspectivas praticamente nulas de
reabertura e os números frios da realidade revelam dívidas trabalhistas e
fiscais de grande monta. Sem contar que as instalações estão completamente
defasadas e uma recuperação é improvável diante dos custos que envolveria.
Parece que o único tesouro que ainda resta é a mobília classuda,
em estilo retrô, motivo de cobiça de outros hoteleiros, embora não haja, por enquanto,
qualquer negociação a respeito.
Quem passa na grande avenida se depara com o gigante abandonado,
escuro, como um retrato perdendo suas cores. Agora, apenas um túmulo suntuoso
de uma época, que guarda a memória de tantos hóspedes, frequentadores e
empregados.
Ainda é possível fechar os olhos e ouvir a saudação dos quase amigos
do check-in: “Seja bem-vindo ao Othon
Palace BH”. Doce ilusão que se dissipa num piscar de olhos, tragada pela
falência cruel, pela imundície na calçada e pelo rugido urbano ao redor.
1) Infelizmente, eis a realidade. Tudo passa, tudo muda, aprendi isso muito cedo, ainda adolescente, com o Mestre Buda.Ele chama de Lei da Impermanência, neste plano físico em que nos encontramos, nada é eterno.
ResponderExcluir2) Obrigado Heraldo, belo texto, me possibilitou estas reflexões.
3) Palmeira, vc que gosta de boa música, e eu também, Gilberto Gil tem uma letra linda: "O grande Deus Mu dança" e isso é profundo.
4)Nos remete ao continente lendário que existiu antes da tb lendária Atlântida, chamava-se "Mu".
5)"Mu" é um ensinamento do Zen Budismo... o nada ... o vazio ... permanentemente cheio e mutável ... de possibilidades ...
6) Bom sábado, bom domingo, boa semana para todos (as).
Antonio,
ExcluirNem tudo muda a ponto de desaparecer. Acho que há merecimento especial a quem vai ficando como se o tempo não passasse, apenas mudando de mãos. Infelizmente, esse hotel padeceu do abandono que terminou fechando suas portas.
Muito bom!
ResponderExcluirO hotel é o reflexo de nossa sociedade, cultura e poder de transformação.
Parabéns pelo texto
Percio,
ExcluirTudo isso é correto, mas este hotel além de refletir tudo que somos como sociedade, não se entregou à transformação que vinha de há muito sendo reclamada.
Parabéns Heraldo. Acho que todos lendo o retrato do hotel conseguem lembrar de algum caso que conheça ou tenha acompanhado pessoalmente. Em paralelo as cadeias de hotéis (mais pra acomodação, ou "crash place") crescem pela relação custo benefício.
ResponderExcluirUm abraço e parabéns!
Bruno
Bruno,
ExcluirSim, esses episódios se repetem por toda parte. É como se todos estivessem mortos e o legado se perdesse. E lá fora rola uma época em que sobrevivência e tentar crescer é como o ato de respirar. Abraço.
Eu pensei que fosse o Hilton, em SP, embora alguns elementos não batessem. O texto é tão bom que serve para vários hotéis no Brasil, onde, como nunca, temos que nos conformar com que "nada é para sempre ".
ResponderExcluirDiniz,
ExcluirO Hilton SP também foi uma dessas vítimas - fechou quatro anos antes do Othon. A dor é a mesma quando um desses gigantes tomba para sempre, pois todos eles foram retratos de épocas literalmente distintas. Faz parte do movimento da vida.
Olá Heraldo,
ResponderExcluirNós nos acostumamos com o que vemos , com as coisas da vida, de casas a roupas íntimas, as estações do ano, as festas obrigatórias. Em um momento percebemos que elas passam, se desgastam no uso e no tempo. No nosso pensamento, ou emoção, não sei, são esperadas durar para sempre. Mas o tempo passa mesmo e traz marcas que são nada mais do que anúncios.
Anúncios do vir a ser.
Mas trágico portador de tristeza é ver essa passagem nas pessoas que amamos. Desconsolador é ver em nós mesmos e ter certeza de passa sim, sem volta.
"Ainda é possível fechar os olhos...doce ilusão que se dissipa num piscar de olhos...
Até muitos mais.
Ana,
ExcluirTantas coisas puderam ser vividas naquele prédio que foram virando costume, coisas da vida, fingindo ser (nossa) casa, acostumada às roupas íntimas jogadas em cada estação, cansadas das festas obrigatórias. Tudo passou, ficou desgastado como as instalações. Não havia como durar para sempre.
Sim, todos os defeitos eram anúncios gritantes do que viria. Até muito mais.
Conforme a descrição, tão bem escrita como sempre do Autor Sr. HERALDO PALMEIRA, vemos que foi uma pena que a Empresa proprietária dos Hotéis Zarpo resolveu investir em outro ramo e deixou os Hotéis, principalmente o maior deles conforme foto, depreciarem-se até o fim.
ResponderExcluirAbração.
Flávio,
ExcluirObrigado. Não sei ao certo se a empresa deixou os hotéis ou os hotéis saíram dela pelo abandono. Fico pensando se deixar a depreciação ir até o limite não é, na verdade, um atestado. Abraço.
Heraldo, como moro em Belo Horizonte nunca me hospedei no Othon daqui, mas guardo boas lembranças do seu restaurante, e tenho pena do triste destino do que foi no seu bom tempo o carro-chefe da hotelaria daqui. Mereceu bem a sua bela eulogia. Um abraço do Mano
ResponderExcluirMano,
ExcluirEm Natal temos um exemplo menos pomposo, mas não menos relevante para a história da cidade - agora, uma laje caiu e o prédio todo ameaça ruir depois de 24 anos de abandono. Abraço.
Não tenho como pedir permissão para entender a mente de Heraldo com relação ao seu sentimento sobre este hotel, em Belo Horizonte.
ResponderExcluirMas não existem capitais de Estados deste País, que não tenham suas histórias nostálgicas de prédios que tanto foram importantes no passado e de eventos memoráveis, e que não tenham sido demolidos ou transferidos para outras atividades.
No Brasil são raros os atos de Tombamento de patrimônio privado, com seus proprietários sendo indenizados pelo governo, e abrir museus, cobrando ingressos para se ressarcir do investimento.
Portanto, o meu aplauso ao artigo, algo corriqueiro pela qualidade dos textos postados pelo Palmeira.
Abração.
Saúde.
Bendl,
ExcluirObrigado pela leitura e comentário. Sim, temos casos semelhantes em todas as cidades. E os processos de tombamento são muito complexos, lentos e quase nunca terminam despertando o interesse do público, o que é uma pena. Abraço.