fotografia - Divulgação (Facebook) |
Heraldo Palmeira
O domingo
amanheceu comum, aquela coisa preguiçosa de ficar na cama querendo parar o
tempo um pouquinho para ele durar mais.
“Deito mais
tarde que devo
E acordo antes do que gosto”
Abri os
olhos e a primeira sensação de que estava acordado foi lembrar do que me
escrevera um amigo generoso, que, relendo poemas da sua juventude, reencontrou
Vinícius em “Auto-retrato”. E dali retirou três versos que julgava associados
às minhas motivações para escrever.
“Infância:
pobre, mas linda
Tão linda
que mesmo longe
Continua em mim ainda”
Também
cumpro o ritual comum a todos, dar uma olhada inicial nas redes sociais onde
estamos irremediavelmente pendurados. E hoje havia uma torrente específica
delas, por causa do Dia das Mães. Inclusive essa foto maravilhosa de mãe e
filho entregues ao seu amor, que está na abertura.
Gosto de
manter um radinho ao lado da cama. Serve também de despertador, ligado numa
rádio AM para as notícias dos dias comuns.
Nos fins de
semana dou folga, ele amanhece calado e sem nenhum comando para acordar antes
de mim e me despertar. Mas, paixão é paixão, ligo para ouvir o mundo, pois os
sábados e os domingos se acham, mas são só mais duas peças diárias do
cotidiano.
Acredito que
os deuses da saudade irremediável estavam em conluio para me sacudir da cama ou
me deixar prostrado nela, pois fizeram tocar no radinho uma música singela da
infância – aquela que continua em mim –, no exato momento em que abri na
telinha do celular uma mensagem talhada para nocautear qualquer coração.
“Minha
mãezinha querida
Mãezinha do
coração
Te adorarei
toda vida
Com grande
devoção
É tua esta
valsinha
Foste a
inspiração
Oh, minha
mãe
Minha santa,
querida
És o tesouro
Que eu tenho na vida”
A mensagem
mostrava a foto de folhas verdes e uma bela flor dentro de um jarro, um gramado
muito bem cuidado ao lado de uma peça de granito. Era um jazigo, num desses
cemitérios horizontais, sem túmulos, onde parece que a paz fez morada naquele
silêncio cortado apenas pelos sussurros do vento.
Logo abaixo
da imagem, a frase que marcou como brasa na carne: “Mamãe, tire uma folguinha aí no céu e hoje venha ficar um pouquinho
comigo, matar minha saudade”.
Sim – não
foi só você –, eu li e reli a frase sei
lá quantas vezes, cada vez com uma sensação diferente: dor, angústia, choro, contorções,
posição fetal, desamparo, saudade quase física (talvez a pior de todas, a falta
mais intensa porque parece quase presença), calma, suavidade, recompensa por
ter sido filho, poesia...
Eu tive a
sorte de ver aquela mulher que me tirou de dentro dela e não saiu nunca mais de
dentro de mim preparando outra pessoa, a minha irmã. Que está aqui pertinho,
como uma extensão daquela mulher matricial, maternal. Que se entregou aos
efeitos do tempo para ir ficando tão grande quanto nossa matriz, uma fiel em
plena comunhão com sua catedral.
Hoje foi
mais um dia para ter certeza de que mães sempre morrem precocemente, não
interessa a idade. Hoje foi mais um dia de romaria para o amor que percorre a
distância celestial entre o meu coração e o da minha mãe, um caminho sem placas
e sem indicações, sem explicações, mas que não desaparece nunca, permanece
nítido como um luar do sertão, como estrelas na escuridão.
Hoje foi
mais um dia para ter certeza de que posso roubar palavras de um querido amigo e
dizer para minha mãe, em devoção, que eu só queria vê-la e olhar seu olhar, seu
olhar, seu olhar, minha senhora desaparecida. Eu juro que estaria satisfeito
mesmo que ela não dissesse uma palavra. Como aquela santa aparecida que apenas
me ouve lá no altar, mas nunca me deixa falando sozinho.
A casa estava
em silêncio, todos haviam saído. O café preto e as outras delícias da manhã
foram se traduzindo em poções de vida boa. Conheço poucos prazeres como sentir
aquele cheiro insuperável, só exalado no exato momento em que a água fervente
vai ficando cheia de bossa e de cor depois de passar pelo pó no coador.
Pensei no
mistério da vida, nos meus dias que podem ter manhãs amanhecendo ainda no
escuro ou já no início da tarde, sempre resultado direto da noite anterior.
Pensei na
minha mãe sempre tão suave, e na infância, na poesia que havia nelas. Tempo que
fingia parar quando os adultos apagavam velas e lamparinas que iluminavam a
casa do interior e eu levantava em seguida, quase flutuando, enquanto todos já
dormiam, só para olhar o céu de estrelas e conversar com Deus – só porque minha
mãe conversava com Ele.
“Se eu
quiser falar com Deus
Tenho que
ficar a sós
Tenho que
apagar a luz
Tenho que calar
a voz
Tenho que
encontrar a paz
Tenho que
folgar os nós
Dos sapatos,
da gravata
Dos desejos,
dos receios
Tenho que
esquecer a data
Tenho que
perder a conta
Tenho que
ter mãos vazias
Ter a alma e
o corpo nus
Tenho que
dizer adeus
Dar as
costas, caminhar
Decidido, pela estrada”
Ah, a
poesia, esse mistério que nos mantém vivos e fala por nós.
Natal (RN), maio de 2019
Trechos de:
Auto-retrato
(Vinícius de Moraes)
Mãezinha querida (Hilton Junqueira-Jaime Vila-José Henrique
Lins)
Se eu quiser falar com Deus (Gilberto Gil)
Heraldo,
ResponderExcluirAmor no coração e poesia nos dedos.
É o que eu penso de você ao ler seu belo texto.
Eu também só queria uma folguinha de Mãe para vê-la e olhar seu olhar.
Matar a saudade. Tossindo e engasgando eu fumaria um cigarro com ela.
Obrigada Heraldo, muito obrigada.
Até muitos mais.
Ana,
ExcluirRepondo pelo amor, não posso fazê-lo pela poesia, sempre tão nobre dimensão humana. Não tenho dúvida que todos teríamos muitas coisas para fazer junto, caso essa folguinha se materializasse. Não há o que agradecer, essa dor tem mesmo de ser compartilhada. Até muito mais.
1) Bom texto Palmeira, boas lembranças.
ResponderExcluir2) Nossas queridas e inesquecíveis mães.
3)Eu também sou da Era do Rádio, ainda hoje ouço o retângulo misterioso, em ondas médias, curtas, ondas tropicais, frequêcia modulada e em várias outras.
4) Boa semana a todos (as)
Obrigado, Antonio. Como eu escrevi, as mães sempre morrem precocemente. Elas deveriam ser imortais. Abraço.
ExcluirPrezado Heraldo,
ResponderExcluirAcho que foi Bastos Tigre, na sua poesia sobre Saudade, que disse:
“Saudade é como se fosse o espinho cheirando a flor”.
Eis um sentimento que arrasa conosco, nos mortifica, nos deprime:
A saudade de uma pessoa ou de um local ou de um momento, de uma ocasião...
A saudade dos pais que se foram, principalmente da mãe, é algo indescritível, pois doído, sofrido, angustiante.
O mesmo, evidente, quando de perde a esposa e o pai tem de criar os filhos pequenos.
O regaço materno, seu colo, seu olhar, gestos, mãos, seu carinho, afago, beijos, repreensões, uma que outra surra, sua disposição para o filho, seu amor incondicional pelas crias, elevam as mulheres de tal maneira, que deixam o homem muito distante do verdadeiro sentimento maternal, daquilo que a mãe é capaz de fazer pelo seu filho, que pai nenhum consegue!
Agora, como escapar desta dor lancinante que é a saudade?
Seria algo como lembrar o que devemos esquecer, e assim nos livrarmos do sofrimento?
Ou se trata de uma punição quando a perdemos, que os céus nos impõem como compensação da felicidade que a nossa mãe nos deixou como legado, e pela maneira como nos tratou por que nos trouxe ao mundo?
Ou por que esta mulher que nos deu a vida nos atrela ao cosmo, ao Universo, à divindade, pois, afinal das contas, a mulher foi também a Mãe de Deus?!
Não sei como esquecer a minha mãe, que se foi aos 42 anos de idade, não sei, confesso.
Eu tinha 20, e meu irmão 13.
E me lembro como se fosse hoje quando a minha avó, mãe dela, lhe tirou a máscara de oxigênio após o seu último suspiro!
Foi doloroso, muito doloroso, e aquela imagem me acompanha e estará na minha mente até o meu passamento.
Logo, agradeço a Deus diariamente pela mãe que meus filhos têm, a minha mulher, a Marli, que está viva, saudável, forte, e seus rebentos (nossos) têm 47, 45 e 43 anos de idade, e terão a mãe ainda por muitos anos, indiscutivelmente.
Uma saudade que não precisam sentir como eu padeço volta e meia, pois assim envelheço a cada dia, tomado pela saudade dos meus amados que se foram:
Mãe, pai, avós, tias, tios, primos, amigos ... , que me fazem pensar se também a velhice não seria outra punição, tanto pelo tempo que ainda desafiamos, quanto pela resistência que temos em continuar vivendo com este vazio que suas ausências nos deixaram!
Logo, a saudade e a velhice bem que poderiam ser sinônimos, haja vista uma estar atrelada à outra condição, de sofrimento físico, e de padecimento sentimental.
Vai ver que essas são as razões porque o velho anda curvado, alquebrado, o sorriso é escasso, seu caminhar é trôpego, inseguro ...
Não existe mais em quem possa se amparar, pois está só, frágil, e quem lhe amou no passado já partiu.
Quem iria lhe querer desse jeito, agora?
Por essas e outras que, ao ouvir quando criança que o inferno é aqui mesmo, eu tinha dificuldade de entender.
Os antigos e ausentes tinham plena razão.
Nossas vidas nos oferecem relances de felicidade tão somente, mas nos atribuem uma existência repleta de saudades dos que se foram, além das lembranças saudosas de nossa juventude, de quando éramos crianças, de como nossa mãe corria para nos consolar.
Vidas que se foram não podem ser substituídas pelas que seguem, jamais.
As existências que partiram levaram consigo partes de nós, pois a cada partida de alguém de nossas relações pessoais, permaneceram somente pedaços, que são unidos pela lembrança quando se era um todo, neste caso, a vida presente e festejada entre os que partiram e os que ficaram, e que um dia, quem sabe, esse encontro não se repita?
Aplaudo mais este artigo pungente do Heraldo.
Como sempre muito bem escrito, mantendo o enlevo até a última linha do texto entre o amor materno que se foi, misturado à saudade do filho, que terá de se desdobrar sem a sua presença, porém homenageando-a diariamente em suas lembranças!
Um abração, Heraldo.
Saúde, muita saúde.
Bendl,
ExcluirObrigado pela leitura e pelo comentário repleto de emoção. Não tem como ser diferente, o motivo é indiscutível. Saúde.
Heraldo
ResponderExcluiramei seu dia das mães começando pela foto que é linda e terminando com a conversa com Deus !
Seu texto é delicado lembrando a mãe que é presença eterna
E o Francisco completou com muita emoção
Um abraço
Heraldo, depois do que o Chicão escreveu, escrever o quê?
ResponderExcluirSua crônica toca a todos que já perdemos nossas mães, e carregamos na alma a falta daquele amor e daquela presença insubstituíveis. Mas que levamos também, bem guardada, a lembrança do mesmo amor e da mesma presença que nos ajudaram a ser o que somos hoje.
Um abraço do Mano
Mestre Heraldo,
ResponderExcluirOrfandade não tem idade. É por isso que sempre nos surpreenderemos meio que rezando, meio que conversando, meio que pedindo socorro feito "menino pequeno" a quem nos ensinou que poesia só se responde com mais um pouco desse "mistério que nos mantém vivos e fala por nós":
Minha Mãe
Minha mãe, minha mãe, eu tenho medo
Tenho medo da vida, minha mãe.
Canta a doce cantiga que cantavas
Quando eu corria doido ao teu regaço
Com medo dos fantasmas do telhado.
Nina o meu sono cheio de inquietude
Batendo de levinho no meu braço
Que estou com muito medo, minha mãe.
Repousa a luz amiga dos teus olhos
Nos meus olhos sem luz e sem repouso
Dize à dor que me espera eternamente
Para ir embora. Expulsa a angústia imensa
Do meu ser que não quer e que não pode
Dá-me um beijo na fronte dolorida
Que ela arde de febre, minha mãe.
Aninha-me em teu colo como outrora
Dize-me bem baixo assim: — Filho, não temas
Dorme em sossego, que tua mãe não dorme.
Dorme. Os que de há muito te esperavam
Cansados já se foram para longe.
Perto de ti está tua mãezinha
Teu irmão, que o estudo adormeceu
Tuas irmãs pisando de levinho
Para não despertar o sono teu.
Dorme, meu filho, dorme no meu peito
Sonha a felicidade. Velo eu.
Minha mãe, minha mãe, eu tenho medo
Me apavora a renúncia. Dize que eu fique
Dize que eu parta, ó mãe, para a saudade.
Afugenta este espaço que me prende
Afugenta o infinito que me chama
Que eu estou com muito medo, minha mãe.
(Vinícius de Moraes)
Abração