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30/07/2019

“Adoro meu Brasil de madrugada...”

cerâmica - Ana Nunes


Ana Nunes
Um dia escrevi assim para um amigo:

Querido amigo,
Obrigada pela resposta. Franca, do jeito que eu gosto. Mas também amiga e carinhosa!
Pena sua imagem de favela corroída pelos acontecimentos. Tão sérios! A maioria das pessoas sente o mesmo. E não poderia ser diferente.
Mas quando a gente trabalha lá dentro, dirigindo o carrinho berinjela roxa por caminhos estreitos de um só carro, e depois subindo escadas sinuosas e mais estreitas que os caminhos, a gente conhece coisas formidáveis. E outras bem revoltantes também. Vida!

Trabalhei em uma enorme, chamada São José onde não passava carro, só carroças e motos pelas ruelas-becos. E numa atividade com as crianças onde deveriam desenhar “o lugar onde viviam”, uma delas desenhou uma “carruagem” carroça de sonhos, com super-herói, ele mesmo,  cheia de raios e luzes e cores. Certamente carregava consigo nessa carroça de sonhos, seus sonhos mais preciosos. Fiquei emocionada quando ele me descreveu seu trabalho.
Depois foi inaugurado lá um outro tipo de favela, aquela horrível favela vertical de material barato e defeitos vários, que as crianças chamavam de gaiolas e para onde não queriam se mudar. Favelas de cinco andares sem elevador, lógico. Como um pombal, cheio de pombinhas crianças e pombas avós descadeiradas!

Em outra, com nome de jardins e de felicidade,  restos de antigas fazendas que sempre foram, e ainda são, ponto de “desova de presunto”, mulheres oriundas de Postos de Saúde, umas com filhos bandidos presos e, elas condoídas mostrando cartas onde eles pediam doces e outras desnecessidades, usadas sem saber ou mesmo sabendo, mães antes de tudo,  outras de casamentos sucessivos com alcoólatras violentos marcadas na alma por surras incontáveis, outras bem politizadas e por isso mesmo barraqueiras, foram capazes de aquarelas lindas, ternas e autovalorizadas. O que é o mais importante, o porquê de estar lá trabalhando. Conseguir isso é verdadeira recompensa, minha e delas.
Lá ganhei presentes delicados e preciosos como panos de prato, creme para as mãos, pudim de pão com goiabada, o melhor que já comi, muita alegria e muito aprendizado.

Nessa comunidade passei muito aperto dirigindo atrás de carros “viaturas” grandes onde os policiais com braços e meio tronco pendurados nas janelas carregavam armas aterrorizantes. E eu sem poder ultrapassar por falta de espaço e mesmo sem saber o que era melhor, ficar atrás, parar ou ir na frente de batedor.
Topei também com traficantes jovens que como reis levavam sua rainhas, mocinhas quase inocentes e quase crianças, orgulhosos e cheios de poder, para atividades tipo Dia da Mulher, e lá mesmo ficavam debochando do nosso trabalho.

E assim é o nosso mundo. Onde eu nem  sei direito o que acho e o que sinto. E temo não ver a cura! Onde também faço de conta que tudo é muito bom e participo desse mundinho organizado, como a minha favela de cerâmica, e vou ao supermercado do shopping onde tudo são flores e fico com o coração em frangalhos quando vejo uma senhora pobre na fila do caixa com um sabonete e um pacote de fubá e um monte de coisas coloridas e úteis e gostosas nas sombras dos seus olhos.

E o pior é que eu preciso desse mundo organizado e falso porque nele eu vivo e tenho que manter a minha sanidade.

Extrapolei? É que me deu uma vontade enorme de conversar com você.
Agora, cá prá nós (eu rindo de mim mesma, ria também por favor!) que inocência a minha ao pedir sua opinião sobre a minha cerâmica favelada quando seus olhos já foram maravilhados por cerâmicas de gente grande!
Desculpa por isso. Abraço.
“Queime depois de ler”.
Ana

“A mão de Deus abençoou
Em terras brasileiras vou plantar arroz...”

26/07/2019

A estação do poeta


escultura por Martin Jennings - 2007 (imagem Wikimedia Commons)

Moacir Pimentel
A estátua de Sir John Betjeman na estação de São Pancras é uma das mais fotografadas de Londres. Além de escritor, jornalista e radialista ele foi um dos poetas laureados ingleses. Um poeta laureado é aquele assim definido, oficialmente, pelo governo, no caso, o britânico. Mas o termo vem de longe, das coroas de louro com as quais, na Grécia antiga, eram homenageados os heróis.
Desde então o termo “laureado” e as coroas têm sido oferecidos a poetas romanos, medievais, dos séculos XVII e XVIII, sendo notória, inclusive, uma noite no final do inverno de 1778, quando os espectadores entusiasmados com Irène, a tragédia de autoria de François-Marie Arouet, mais conhecido pelo pseudônimo de Voltaire, no sexto ato não se contiveram, subiram no palco e coroaram-no como o poeta da Comédie Française. A Grã Bretanha apenas seguiu uma velha tradição.
Durante os felizes dias que passou em Londres, a escritora Helene Hanff não pôde conhecer, no piso superior da Estação Internacional São Pancras a estátua de bronze de Sir John, olhando maravilhado ao seu redor e, principalmente, para as milhares novas vidraças e para o telhado que permitem que a luz natural inunde todo o enorme espaço. Projetada pelo escultor britânico Martin Jennings, a estátua de dois metros de altura comemora a campanha bem sucedida do poeta na década de 1960, para salvar a estação da demolição.
Infelizmente para a Helene, a estação só passou a hospedar o poeta ao ser reinaugurada, depois de muitos anos de reformas, em 2007, quando o primeiro trem de alta velocidade, o Euroestar - que leva pouco mais de duas horas para completar o trecho Londres/Paris, pouco menos de duas até Bruxelas e uma hora e trinta minutos até Lille e vice e versa! - deslizou pela estação e parou a poucos passos de uma outra escultura de um jovem casal abraçado.
Meeting Place - escultura por Paul Day - 2007 (imagem Wikimedia Commons)

Projetada pelo artista britânico Paul Day, a obra se chama Meeting Place – Ponto de Encontro - e foi concebida para evocar, do alto de seus três metros de altura, o romantismo das viagens ferroviárias. Só que, em vez, causou controvérsia quando da adição posterior, feita pelo artista, de um friso de bronze em baixo relevo ao redor do seu rodapé, descrevendo entre centenas de outras figuras, um passageiro caindo nos trilhos à frente de um trem que avança dirigido pelo “Grim Reaper”, o apelido da Velha Senhora naquelas paragens. Para mim , no entanto, o friso é o melhor da festa.  
Essa estação ferroviária que foi inaugurada em 1876 para conectar Londres com algumas das principais cidades da Inglaterra é uma das maravilhas da engenharia e da arquitetura gótica vitorianas e sua história de decadência, restauração e renascimento é uma lição para todos nós porque é uma mentira cabeluda que se tenha que escolher entre o antigo e o novo. Grandes e velhos e belos edifícios como essa estação estão pedindo - pelamordedeus! - para serem aproveitados.
A Estação de São Pancras e o seu vizinho Midland Grand Hotel são hoje considerados verdadeiros monumentos, um revival do design vitoriano e uma homenagem aos seus criadores, o engenheiro William Henry Barlow e o arquiteto George Gilbert Scott. Toda a magnificência da São Pancras reflete o pensamento do seu tempo em relação ao design e a operação de uma estação ferroviária: a plataforma se apoia em oitocentas e cinquenta colunas de ferro fundido que juntamente com os arcos do telhado resultam em um espaço de trinta metros de altura, setenta de largura e duzentos de comprimento. O teto de ferro foi copiado em todo o mundo, inclusive na Grand Central Station de Nova York.
fotografia Maocir Pimentel

Quando foi inaugurada no século XIX São Pancras era uma das portas de entrada mais importantes de Londres. Mas os ataques aéreos nazistas atingiram duramente a estação e, após a guerra, ela passou a ter um futuro incerto à medida que o transporte rodoviário assumia o controle. Em 1948, vários projetos para amalgamar as estações do norte de Londres - Euston, São Pancras e King’s Cross - tornaram-se uma possibilidade real.
Em 1966, as propostas de demolição dessas estações foram colocadas sobre a mesa dos poderosos. No entanto, a voz do poeta laureado John Betjeman, um feroz defensor da arquitetura vitoriana, se levantou conclamando a nação a defender “esse conjunto de torres e pináculos vistos lá do monte Pentonville delineados contra um pôr-do-sol nebuloso e o grande arco do galpão do trem.”
Embora o poeta já estivesse resignado a perder a guerra ao descrever o edifício como “muito lindo e muito romântico para sobreviver”, eis que, de repente, apareceu a cavalaria na forma da Sociedade Vitoriana de Londres e, um ano depois, a estação foi elevada à categoria de patrimônio histórico, com a mesma classificação do Castelo de Windsor.
Preservada, para ela uma nova possibilidade de futuro surgiu quando o governo de plantão, em 1993, decidiu ampliá-la e modernizá-la para que passasse a receber os comboios de alta velocidade que cruzariam o Túnel do Canal da Mancha. São Pancras foi praticamente duplicada por seis novas plataformas para que pudesse dar conta dos trens internacionais, além dos domésticos e do metrô.
fotografia Moacir Pimentel
Hoje, sofrendo a concorrência das companhias aéreas de baixo custo, São Pancras não é apenas uma estação de trem, onde se começa ou termina uma viagem, mas um destino em si, uma atração turística. É engraçado como um lugar por onde passam mais de cinquenta milhões de criaturas a cada ano consiga manter a sua reputação de um dos pontos de encontro mais românticos do mundo, ideal para o pecado da gula. Pelo menos no restaurante que leva o nome do poeta.
Creio que os franceses que desembarcam dos trens Eurostars não têm do que reclamar quanto os menus, pois não encontrarão um Burger King ou McDonald's em nenhum lugar nesta catedral arquitetônica de aço e vidro. Muito ao contrário, tem bistrô, brasserie, champanheria, ostras, arenque defumado com molhos variados, cordeiro de Herefordshire, e, last but not least, cogumelos selvagens com torradas para os remediados terceiro mundistas que escolhem o que comer na coluna à direita (rsrs)
Lá se encontram uma filial da livraria Foyles - outro velho símbolo londrino persistente! - e um quiosque – não sei se temporário! - que nos pareceu um primo legítimo do emblemático Borough Market. Tudo isso no piso superior, diretamente sob o telhado e as colunas do Barlow, cada uma capaz de suportar cinquenta toneladas de peso, gloriosamente preservadas e para as quais, como o Sir John, a gente não se cansa de olhar.
Na verdade o piso inferior da estação foi concebido para armazenar toda a cerveja que se bebia na Londres vitoriana. Tanto que, nos seus escritos, o poeta afirma que o engenheiro Barlow dizia que tudo o que estava construindo na estação tinha sido planejado a partir das medidas de um barril de cerveja (rsrs)
fotografia Moacir Pimenel

No entanto, as palavras do poeta e dos ferozes defensores da estação ainda parecem apropriadas hoje e são compreendidas com mais intensidade do que nunca, pois São Pancras, mais uma vez, se tornou um emblema nacional vivo:
“A estação destila a essência do poder vitoriano pois é a mais magnífica construção comercial da época, refletindo mais completamente do que qualquer outra seus orgulho e poder econômico e sua tecnologia triunfante impregnados de romance “.
Mas, já que escrevia para crianças, a Helene conheceu outra estação ferroviária e mais um dos personagens preferidos do Reino Unido. Trata-se do Urso Paddington, o famoso personagem literário infantil, um imigrante de chapéu e sobretudo nos trinques vindo do Peru que, criado por Michael Bond em 1958, foi assim batizado porque na historinha ele é encontrado pela boa família Brown em um dos bancos da estação de Paddington com um bilhete pendurado no pescoço no qual se podia ler: “Por favor, tome conta deste ursinho. Obrigado!”
Como mostra o desempenho de venda do best-seller, nunca antes naquele país tantos cuidaram tanto de um “dimenor” abandonado (rsrs) O livro do Urso Paddington - que é viciado em sanduíches de marmelada! - vendeu muitos milhões de cópias, virou desenho animado e se transformou em um dos ícones da cultura inglesa, antes de ser eternizado sentado em cima da sua mala marrom, como uma estátua que hoje mora na estação que lhe deu o nome.
Quem mais virou bronze ou mármore literários? Lord George Gordon Byron no Hyde Park e Peter Pan nos Jardins Kensington e Shakespeare na praça Leicester e... calma, chegaremos lá em outras conversas.


23/07/2019

A lua

São Jorge não estava em casa -
O módulo lunar, a Lua e a Terra vistos da escotilha do módulo de comando da Apollo 11 (imagem NASA)


Heraldo Palmeira
Quando a lua vem
Surgindo cor de prata
E ilumina
O meu pedaço de torrão
O meu ranchinho
Aqui no seio da mata
Não precisa
Nem que acenda o lampião
Era 1965, eu estava na primeira infância e morava no interior, já com o vício de dormir com o radinho a pilha na cama. A casa era enorme, os quartos tinham alpendres e eu podia sair de fininho para olhar a noite. Antes, precisava vencer o medo das caiporas, que os mais velhos diziam infestar as matas dos arredores fumando muito e assobiando.
Juro que até ouvi uns assobios e o cheiro do fumo delas em algumas ocasiões – principalmente nos dias em que eu fizera traquinagens mais sérias e minha mãe lembrava o quanto as caiporas desgostavam de crianças desobedientes.
A música fora gravada com nobreza, violinos alternando camas e pizzicatos. E aqueles versos eram lindos, ainda mais à noite, pois pareciam aproximar a Lua.
O tempo andou ligeiro e em 1969 eu já estava na segunda infância, morava na capital e começava a olhar para as meninas de um jeito que apertava o peito com algo muito bom de sentir, como se ardesse de doçura, como se parasse o tempo, como se fosse saudade com anestesia, como se fosse coisa da Lua.
Aquele foi um ano marcante. Eu havia feito uma viagem com meu pai e ele voltara gripado. O passar do tempo trouxe o aparecimento de palavras estranhas – icterícia, hepatite, tumor, pâncreas... As conversas suaves que minha mãe passou a ter comigo, a sós, foi me ajudando a entender que vinha coisa pior pela frente, ainda mais quando me dizia que ele estava doente e ia precisar muito da gente.
Eu era somente um menino buchudo levando a vida rotineira daqueles tempos. A novidade é que meu pai passou a ficar o dia inteiro em casa, em pijamas. Eu não conhecia até ali a expressão “licença médica”. E entendia menos ainda uma tal “licença acompanhante”, que fazia minha mãe também não precisar ir mais para o trabalho.
Era época de férias escolares do meio do ano. A casa era enorme, agradável, e logo depois do café nos habituamos a ficar juntos, eu deitado numa rede, meu pai sentado numa cadeira austríaca, de balanço, com jornais e revistas à mão me contando as novidades.
Ele preferiu me ensinar e explicar outros nomes estranhos. Espaço sideral, atmosfera terrestre, Estados Unidos, Rússia, Guerra Fria, geopolítica, corrida espacial, NASA, Centro Espacial, foguete, cápsula, satélite, Sputnik, Laika, Vostok 1, Yuri Gagarin, cosmonauta, astronauta – cheguei a sonhar em ser um! –, Mercury, Gemini, Apollo, Saturno V, Columbia, Eagle, Módulo de Comando e Serviço, Módulo Lunar, computadores, cérebro eletrônico, alunissagem, gravidade zero...
Ele era um homem muito culto, não teve dificuldade para virar um repórter espetacular da viagem do homem à Lua para mim. Exultava, se emocionava, me encantava. Em pouco tempo, Neil Armstrong, Edwin Aldrin e Michael Collins eram nomes familiares.
– Papai, eles vão encontrar São Jorge? O Dragão não vai matá-los?
Lua de São Jorge
Lua deslumbrante
Azul verdejante
Cauda de pavão
Lua de São Jorge
Cheia, branca e inteira
Oh, minha bandeira
Solta na amplidão
Lua de São Jorge
Lua brasileira
Lua do meu coração
Finalmente, a gente ia ter o primeiro encontro do homem com o céu. Ora, eu tinha um anjo da guarda e iria finalmente saber qual o caminho para conhecê-lo!
Ciente da encrenca que eu estava criando, ele me tranquilizava, compreensivo. Dizia que tudo estava combinado e que o santo e seu dragão talvez nem estivessem lá durante a visita.
Ele transformou aquela aventura extraordinária em episódios diários, como uma série retirada dos jornais e revistas. Foi a maneira generosa que ele encontrou para me distrair do perigo que nos rondava, instalado no corpo que já ficava mais magro.
Quando a viagem começou, foram dias sensacionais. Enfim, a Apollo 11, lançada ao espaço pelos foguetes Saturno V cuspindo fogo, estava levando o homem à Lua. Na véspera do desembarque, eu me preocupei porque os astronautas estavam voando pelo famoso “lado escuro”. Ele me disse que não havia problema, que os computadores garantiam um voo seguro. E até me contou que o módulo lunar pousaria no Mar da Tranquilidade, antecipando que não havia água nele.
No dia da alunissagem ele me contou um segredo, falando baixinho, em confiança:
– São Jorge conversou com Deus e acharam melhor deixar os astronautas sozinhos na Lua. Assim, eles vão ficar mais à vontade para trabalhar. Também pensaram que o dragão poderia se assustar com a chegada da nave e reagir mal.
Além do Dragão de São Jorge, também senti muito medo por saber que a nave tinha outra menor dento dela, e que apenas Armstrong e Aldrin desceriam na Lua. A minha grande questão era o fato de Collins ficar voando sozinho ao redor. E se eles se perdessem?
A Lua
Quando ela roda
É Nova
Crescente ou Meia
A Lua
É Cheia
E quando ela roda
Minguante e Meia
Depois é Lua novamente
Hoje, imagino que todo mundo tinha essa mesma preocupação, pois tudo naquilo era a primeira vez, apenas três homens e uma montanha de metais soltos no espaço sideral. Um problema, um erro qualquer e não sobraria qualquer vestígio.
No processo de alunissagem, o astronauta Charlie Duke acompanhava atentamente os painéis de instrumentos no Centro de Controle, em Houston. Era a única pessoa autorizada a manter comunicação com Armstrong e Aldrin. E ele tomou o microfone:
– Eagle, Houston. Se vocês receberem, têm sinal verde para a descida.
Voando 80 quilômetros acima, Michael Collins também recebeu a mensagem límpida e clara e todos ouviram a voz de Armstrong falar “Roger”, sinal de que também recebera.
A partir dali, o astronauta Deke Slayton assumiu o lugar de Duke na comunicação com a cápsula, passou a estudar os monitores de situação e teria a missão de dar conselhos técnicos e dizer palavras tranquilizadoras aos dois colegas na Eagle.
A nave continuava descendo suavemente, enquanto a Terra mantinha a respiração sintonizada nos aparelhos de televisão e rádio. Assim que os instrumentos de navegação informassem que estavam a 309 quilômetros do solo lunar, Armstrong e Aldrin acionariam o sistema de desaceleração e teria início a alunissagem.
Eu estava morrendo de medo, mas ter meu pai ali ao lado me transformava num destemido explorador do espaço. Éramos nós dois pilotando a nave dos sonhos. Confesso que me veio a dúvida se a lua era de militares ou de bailarinos, se era certo incomodar São Jorge e o Dragão, se ela não deveria ser apenas dos apaixonados. Mas, agora, era tarde demais, faltava pouco. E eu também queria estar lá com ele.
O céu de Ícaro
Tem mais poesia
Que o de Galileu
E lendo teus bilhetes
Eu lembro do que fiz
Querendo ver o mais distante
E sem saber voar
Desprezando as asas
Que você me deu
Tendo a lua
Aquela gravidade
Aonde o homem flutua
Merecia a visita
Não de militares
Mas de bailarinos
E de você e eu
Os computadores da Eagle registraram um aumento de potência pela grande atividade de processamento de dados que o momento exigia, a ponto de gerar chamas. A cápsula começou a balançar de um lado para o outro com violência, a desaceleração devolvia a sensação de gravidade com muita intensidade e os dois homens sorriam felizes. A hora estava chegando.
Quando ficaram a apenas 1.800 metros do solo lunar, soou insistentemente um alarme no programa, informando que os computadores estavam sobrecarregados. A luz amarela não parava de piscar na cara dos astronautas. Era a denominada sobrecarga executiva, o sistema estava fazendo exatamente o previsto. Avaliando, inclusive, a possibilidade de abortar o pouso e iniciar o retorno para o Módulo de Comando.
Já estavam a apenas 1.200 metros e Charlie Duke voltou ao microfone:
– Eagle, sinal verde para o pouso.
Quando faltavam apenas 400 metros para a superfície da Lua, Armstrong digitou “Prosseguir” no teclado, entrando na fase final da descida. Ele e Aldrin começaram a analisar o solo e perceberam que havia algo errado, ali não era Home Plate, o local programado para o pouso.
Na sobrecarga de processamento de dados, possivelmente o plano de voo sofrera alteração e eles haviam ultrapassado 6,5 quilômetros o local previsto para o pouso. O sistema começou a levá-los novamente para a rota, mas não havia combustível suficiente para isso. Naquela situação, qualquer segundo faria diferença e a única opção era pousar imediatamente, pois o vácuo lunar não permitiria planar.
Neil Armstrong teve de assumir o controle manual e pilotar a nave. O silêncio no centro de controle em Houston era absoluto, cortado apenas pelas vozes que vinham da Lua. Os técnicos não podiam fazer mais nada para tentar ajudar a operar equipamentos que estavam a 400 mil quilômetros de distância.
Não havia lugar para pousar, tudo estava cercado por rochas e pedras enormes e crateras mortais. Armstrong desacelerou descida da nave de seis para 2,7 metros por segundo, restava combustível para 90 segundos.
Entre chamas e equilibrando-se nos trancos provocados pelos jatos de estabilização para compensar os balanços e ajustar o pouso, o comandante da missão se manteve calmo e, com precisão cirúrgica, fez a mira para o pouso. Restava combustível para apenas 60 segundos e a descida continuou. Faltando 15 metros, não havia qualquer margem para erro. Um pouco mais, 5 metros... E soou em Houston a narração de Aldrin:
– Estamos levantando poeira!... Luz de contato. Ok, motor parado. Motor de descida desligado.
O pouso fora tão perfeito e suave, que ele reviu todos os sinais disponíveis nos painéis. As quatro luzes externas acesas nas quatro plataformas redondas de pouso da nave lhe deram certeza de que eram os primeiros humanos a estar naquele lugar.
Domingo, 20 de julho de 1969, 17h17m42 (horário de Brasília), a voz de Armstrong soou tranquila no grande salão de controle da NASA:
– Houston, aqui é a Base da Tranquilidade. A Eagle pousou!
Depois da gritaria geral, Charlie Duke tomou mais uma vez o microfone:
– Roger, Tranquilidade. Imitamos vocês no solo. Aqui há um monte de caras que quase morreram sufocados. Já voltamos a respirar. Muito obrigado.
Os dois astronautas deram-se as mãos, sorridentes, ouvindo a comemoração que chegava da Terra pelos fones de ouvido. De pé, deram-se tapas nas costas, emocionados.
Mais adiante, outro grande momento: a abertura da porta, a pequena escada, a descida lenta de Armstrong, a fabulosa Hasselblad 500 EL/M com “Lente Lua” Zeiss Biogon 5.6/60º e filme Kodak – que também desenvolveu um filme especial para gravar imagens da chegada.
Vencidos os poucos degraus, o ápice da humanidade: o primeiro passo no solo lunar, a marca da pegada como uma imagem eterna e uma frase definitiva do homem que mereceu tamanha honraria:
– Um pequeno passo para o homem, mas um grande salto para a humanidade.
Poucos dias depois, assistimos a cápsula cair suavemente nas águas do Pacífico sob três enormes paraquedas, a chegada e saudação dos mergulhadores pelas escotilhas e do helicóptero militar de resgate.
Ele e eu nos olhamos satisfeitos. Missão cumprida! Ainda tivemos mais quinze meses juntos e ele se foi. Não sei se visitou a Lua a caminho do céu. Tomara tenha podido.
Caminhando pela estrada
Eu olho em volta
E só vejo pegadas
Mas não são as suas
Eu sei, eu sei, eu sei
O vento faz
Eu lembrar você
Procuro encontrar
Não sei onde está
Você, você, você

Trechos de:
Sinfonia da mata (Adelino Moreira)
A Lua (Renato Rocha)
Lua de São Jorge (Caetano Veloso)
Tendo a Lua (Herbert Vianna)
A Lua e eu (Cassiano-Paulo Zdanowski)


19/07/2019

Alunos de Gautama

Sidarta Gautama ensinando (autoria não identificada)


 Antonio  Rocha
A expressão do tíitulo está na mais nova edição brasileira do “Darmapada – a doutrina budista em versos”, editora L&PM, 154 páginas. Uma bela e importante publicação, formato pocket. Tradução da língua páli por Fernando Cacciatore de Garcia, que também fez a introdução e as notas.
O professor Tilak Karyiawasam, diretor do Instituto de Pós-Graduação em Páli e Estudos Budistas da Universidade Kelanyia, Sri Lanka, dá o seu aval a este magnífico trabalho.
Enquanto as outras traduções para o português escrevem no título o termo páli Dhammapada, Cacciatore optou por registrar o termo em sânscrito Darmapada.
É texto sagrado. Canônico. Merece ser lido, meditado, orado e, sobretudo, vivenciado no dia-a-dia, pois só assim se torna válido em nossas existências, já que somos, todos, alunos de Gautama, esse incomparável professor, pedagogo, pensador.
A estrofe abaixo está na página 103:
“Bem despertos quando despertos
Estão os alunos de Gautama
Os quais, durante a noite e o dia
São sempre conscientes de Buda”.
O primeiro verso faz alusão à gradação do despertar, são muitos estágios, degraus. O segundo verso refere-se aos praticantes budistas. O terceiro verso é a indicação de que, nas vinte e quatro horas do dia, estejamos plenamente atentos, em todas as situações, boas ou ruins.
O Darmapada é um clássico da Literatura búdica. São palavras atribuídas ao próprio Buda. Ao todo, 423 estrofes apresentando a Ética que Sidarta Gautama nos ensinou no século VI antes de Cristo. Fácil de encontrar em qualquer grande livraria e se não tiver, encomende com o livreiro. A gaúcha editora L&PM tem distribuição nacional.
E já que estamos vivendo, infelizmente, em uma era de intolerância, de ódios, vejamos o ensinamento do meu citado professor:
“O ódio não é pelo ódio vencido, somente pelo amor é sufocado. O erro não cometas, boas ações produzas, que o teu coração seja puro. Esta é a verdadeira doutrina ensinada por todos os Budas e que para sempre perdura”.


15/07/2019

A Rainha Guerreira

fotografia Moacir Pimentel

 Moacir Pimentel
Quando olho, em meio à neblina de um final de tarde, para a coluna e a estátua do Almirante Horácio Nelson, no centro da praça que usa emprestado o nome da batalha onde ele foi finalmente abatido – Trafalgar! – eu me recordo de onde e quando ouvi falar pela primeira vez de Napoleão Bonaparte. Eu tinha sete anos quando encontrei o imperador de bolso dos franceses nas páginas do romance O Conde de Monte Cristo, de Alexandre Dumas. O herói da história, o marinheiro Edmond Dantès, é preso sob a falsa acusação de ter ido à Ilha de Elba para receber uma carta e instruções de Napoleão, que ali estava exilado. Daí para a Enciclopédia e as batalhas navais entre franceses e ingleses e, é claro, o Almirante Nelson foi um pulo.
Na Batalha de Trafalgar foram aniquilados os planos franceses de invadir a Grã-Bretanha e a estratégia marítima de Napoleão, mas o custo da vitória foi alto: a morte do almirante. A perda, no entanto, criou um herói nacional para a recém-formada identidade britânica. A batalha que impôs um limite ao império de Napoleão e traçou o curso de sua queda poderia ter sido vencida por outros almirantes ingleses, mas penso que apenas Nelson poderia ter garantido à Inglaterra o comando do mar por mais um século.
Trafalgar foi o produto da genialidade obsessiva de um homem e do seu compromisso inquebrantável com o seu país. A ironia é que nenhuma das homenagens feitas a Nelson foi mais significativa do que aquela realizada, após a sua morte, pelo seu inimigo mortal. Ao ser informado que o famoso bordão do almirante fora hasteado no HMS Victory, Napoleão ordenou a sinalização através de bandeiras para todos os seus navios da tradução em francês do lema do seu arqui inimigo abatido em combate: “A pátria espera que todos cumpram o seu dever”.
Helene Hanff, a autora/protagonista do livro/filme 84, Charing Cross Road sabia muito bem – apesar de não apreciar ficção (rsrs) - que tudo o que é humano já foi, ou é, ou será imaginado e narrado. Durante uma hora e meia de filme, ela e suas cartas saudosas de uma Londres de séculos passados nos seduzem porque o poder da palavra escrita é tão forte que até parecia que rolava um vazio, um grande espaço em branco, enquanto a próxima carta - o recurso usado para encantar a imaginação do leitor/espectador - não chegava. Helene nos prova que as mais atraentes de todas as paisagens são aquelas que moram nas nossas imaginações.
Muitos artistas, também encantados com a capital inglesa, reinventaram a atmosfera misteriosa de Londres e pintaram as suas luzes à beira do rio Tâmisa ou em Piccadilly através do nevoeiro. Como, por exemplo, o americano James McNeil Whistler em meados do século XIX.
James McNeil Whistler - Nocturne in grey and gold in Piccadilly (1881)

Essa visão atmosférica do centro de Londres, de nome Noturno Cinza e Dourado, certamente evoca mistério. O pano de fundo parece ser um abismo vazio desprovido de formas que sabemos estarem lá. O modo preciso como as luzes da rua e das janelas foram pintadas, dá a impressão de que estão se aproximando, como de fato elas fazem nas noites de nevoeiro. Os cavalos e as pessoas são silhuetas fantasmagóricas cuja forma parece estar se dissolvendo diante de nossos olhos. Essas figuras sem forma no topo da carruagem, em primeiro plano, parecem estar flutuando no ar e sugerem um mundo desaparecendo sob o peso do nevoeiro cinza-amarelado.
Claude Monet também fez dos efeitos cambiantes da atmosfera e da luz sobre o Tâmisa, envolto nas névoas de inverno, um de seus temas prediletos pois pintou as pontes de Charing Cross e Waterloo e as Casas do Parlamento em cem telas diversas.  Isso mesmo! Cem telas! Nelas o único efeito constante é a névoa e nela as altas chaminés se tornando campanários e os armazéns virando palácios sugerindo a transitoriedade de impressões aparentemente fixas, dissolvendo tanto o tempo quanto o espaço. Nos trabalhos do impressionista o fog disfarçava a pobreza, o mercantilismo e a miséria de Londres, transformando-a em um mundo mágico que aniquilava todas as distinções sociais e morais.
Mas o “fog” é uma cena contemporânea e muito familiar para os londrinos. Quando a neblina – e/ou a poluição - como um véu, enche a ribeira do Tâmisa de poesia e os edifícios perdem-se no céu escuro e toda a cidade fica suspensa entre o céu e a terra, então quem tem juízo apressa-se para voltar para casa deixando as possibilidades estéticas desse lugar estranho para os artistas (rsrs)
fotografia Moacir Pimentel

Mesmo que, como no caso acima, o “fog” seja apenas a fumaça saindo do carrinho de um vendedor de quitutes indianos (rsrs) Mas o fato é que diante dessas paragens não tem como não lembrar das palavras de Próspero, o Duque de Milão, para sua filha Miranda na primeira cena do quarto ato da peça A Tempestade, considerada por muitos como a derradeira escrita por William Shakespeare:
“As torres que se elevam para as nuvens, os palácios altivos, as igrejas majestosas, o próprio globo imenso, com tudo o que contém, hão de sumir-se, como se deu com essa visão tênue, sem deixarem vestígio. Nós somos feitos da matéria de que são feitos os sonhos; nossa vida pequenina é cercada pelo sono”.
fotografia Moacir Pimenel

Há algo mágico sobre um lugar que a gente conhece dos livros de história e das telas famosas e que, de repente, ganha vida. Tem alguma coisa emocionante nesse perambular ao longo de ruas e praças e pontes e rios onde a história aconteceu, onde escritores e pintores que tanto apreciamos trabalharam, onde outras gerações sonharam e pensaram e mudaram o mundo. Como escreveu Helene Hanff:
“Você decide parar de usar a palavra “anacronismo” quando uma carruagem do século XVII atravessa os portões do Palácio de Buckingham carregando diplomatas russos ou africanos do século XX para serem recebidos por uma rainha. “Anacronismo” implica algo morto faz tempo, e nada está morto aqui. A história, como eles dizem, está viva e floresce em Londres”.
O que eu estou tentando teclar-para você desde o primeiro parágrafo desse post é que, de certa forma, eu compreendo a capital literária do mundo imaginado pela escritora. Sempre que boto os pés nessa cidade é como se eu tivesse abandonado o espaço cotidiano da realidade e entrado em outro reino muito parecido com o dos livros, aquele dos viajantes que aqueciam  as mãos diante das fogueiras ancestrais.
fotografia Moacir Pimentel

Diante do Tâmisa, por exemplo, apesar da modernidade circundante, costumo imaginar os soldados romanos navegando por ele há dois mil anos atrás e sempre me pergunto como é que aqueles caras se sentiram ao chegar na escuridão a praias desconhecidas, ao pular dos barcos, ao cair na água fria, ao afundar os pés na areia, ao caminhar na terra nova?
Em 54 aC Júlio César e seus homens cruzaram o Tâmisa, sinalizando uma nova era mas sempre ameaçados pelas tribos celtas nativas e, especialmente, desafiados pelos druidas, que eram os sábios, os homens que aconselhavam e ensinavam e se ocupavam das questões jurídicas e filosóficas dentro das tribos celtas.
Embora não haja consenso entre os estudiosos sobre a sua origem etimológica, parece que a palavra druida é oriunda da junção de deru, que traduz carvalho e de wid uma raiz indo-europeia que significa saber. Assim, druida seria aquele que detinha “o conhecimento do carvalho” que, por ser a mais antiga das árvores de uma floresta, representava simbolicamente todas as demais.
Caio Júlio César, em sua obra De Bello Gallico - Guerras da Gália – além de descrever as campanhas que estabeleceram o domínio romano sobre a Europa a oeste do rio Reno - a região então conhecida por Gália - narra as duas invasões da Bretanha, em 55 a.C. e 54 a.C e fala sobre a organização dos druidas, dos seus ritos, funções, reuniões, julgamentos apresentando-os ao mundo “civilizado” como bárbaros cruéis e supersticiosos dados a sacrifícios humanos.
Porém os especialistas modernos explicam essa difamação levada a cabo não só por César mas por todos os historiadores romanos, como uma técnica de guerra devido à necessidade de dominar a frágil e oral cultura celta. Os habitantes originais da Bretanha eram incrivelmente resilientes e lutaram bravamente para manter sua identidade cultural mas a invasão romana, ao fim e ao cabo, mudou a paisagem, a linguagem, a cultura e pensamento dos nativos para sempre.
O certo é que os romanos não “chegaram, viram e venceram”, e pronto. Em vez muito ralaram e nunca tiveram paz em Britânia mas foram ficando, fazendo alianças e recolhendo tributos dos reis nativos. Eles escolheram a localização de Londres, é claro, porque foi o primeiro ponto com que se depararam onde o rio era suficientemente estreito para que uma ponte fosse erguida usando a tecnologia então disponível.
A sensação que a Helene Hanff descreve, a forte impressão que ela comunica de que em Londres se está em um portal do tempo, entre eras diversas, me toma de assalto em muitas esquinas londrinas. Sinto isso, por exemplo, nas Ponte e Torre de Londres, diante da estátua de Nelson ou da alegoria policromada da Rainha do Tempo, de pé na proa de pedra de um navio, defronte dos mostradores gêmeos do relógio da loja Selfridges na Oxford Street ou no belo arco que é considerado o primeiro portão do Palácio de Buckingham e depois no Mall e por aí vai.
Mas ela é avassaladora quando, de um lado do rio se vê branca e modernosa a London Eye - uma das mais famosas rodas gigantes do mundo – e do outro, na saída do metrô de Westminster – note a placa do “tube” à direita da foto abaixo -  se contempla a biga e os cavalos e as duas filhas e a própria rainha celta Boadicéia, aos pés do Big Ben.
fotografia Moacir Pimentel

Muito já se escreveu sobre essa personagem que, para os vitorianos, era o epítome do espírito da antiga Grã-Bretanha, a nobre guerreira defensora da nação, de braços erguidos segurando sua lança, guiando seus guerreiros ferozes contra o inimigo romano.
Boadicéia, ou Boudica, ou a Rainha Vitória – seu nome significava “vitória” em uma das línguas celtas - era a chefe dos icenos, uma das muitas tribos celtas que viviam no remoto noroeste da Britânia romana. Sucede que após a morte do rei seu marido - um aliado de Roma - e de ver suas terras invadidas e tomadas, de testemunhar o estupro de suas filhas e de ser açoitada, ela liderou a maior revolta contra os romanos da história do Império.

A vida dessa bela e valente mulher é contada na Ode a Boadiceia, em versos da lavra do poeta William Cowper, com tradução do Sr. Editor:

Quando a guerreira e britânica rainha
Sangrando dos golpes do romano relho
Procurou, com semblante indignado,
Dos deuses do seu povo algum conselho, 
Encontrou sob o frondoso carvalho
O sábio chefe druida grisalho;
Cada palavra sua era inflamada
De raiva e de tristeza impregnada.

Princesa, se meus olhos envelhecidos
Choram pelos males a ti infligidos
É porque o ressentimento amordaça
Das nossas línguas a terrível ameaça.
Roma perecerá – escreve o que te digo
Afogada no sangue que tem derramado;
Perecerá, detestada e conformada
Na sua culpa e na ruína afundada.

Roma, com imenso renome imperou,
E incontáveis países esmagou;
Mas logo seu orgulho cairá–
Olha! O gaulês às suas portas já está!
Outros Romanos se levantarão
Que não cobiçam a fama de soldados
Sons e não armas o prêmio ganharão –
Pela harmonia à fama serão levados.
Então os filhos que nascerão
Do seio das florestas de nossa terra
Vestidos de asas e armados com o trovão
Um mundo bem maior comandarão.

Regiões por César nunca contempladas
Ante os filhos do teu sangue tremerão
Por suas águias nunca sobrevoadas
Que invencíveis como os teus nunca serão.

Proféticas palavras proferia
O bardo, prenhes do fogo dos céus,
Curvado, enquanto as cordas tangia
De sua lira doce mas terrível.

Ela, com imenso e régio orgulho,
Sentia-as crescer e chamejar consigo
À batalha correu, combateu e morreu
E ao morrer lançou-as ao inimigo:

Bandidos, impiedosos e orgulhosos,
O céu trará a vingança a nós devida:
O império a nós foi concedido
E a vergonha e a ruína vos esperam.
Sessenta anos após o Cristo, essa jovem mulher furiosa foi capaz de formar e motivar um exército de cem mil guerreiros bretões, de arrasar completamente três das mais importantes cidades da ilha, incluindo Londres - a Londinium de então - da qual não sobrou pedra sobre pedra e de massacrar mais de setenta mil inimigos. 
Todas as informações que temos sobre Boadicéia são da lavra de historiadores romanos que juram de pés juntos que ela era alta e inteligente, que tinha um olhar “terrível” e uma cascata de cabelos vermelhos que lhe alcançava os joelhos e que carregava uma lança comprida. Apesar de nada entender de táticas de combate e de não ter armas sofisticadas, ela contava com uma vantagem militar: seus homens usavam com maestria as bigas de guerra, pequenas carroças guiadas por uma dupla de guerreiros. Os romanos, em vez, só usavam bigas em eventos esportivos, nunca em combate.
O que se sabe é que Boadicéia só perdeu a batalha final porque, apesar de estarem em uma tremenda desvantagem numérica, os romanos tinham a seu favor melhores armamentos, além de disciplina e estratégia militar superiores, e conseguiram derrotar os celtas na Batalha de Watling Street.
Depois de presenciar o massacre dos seus guerreiros e de suas famílias – estima-se que duzentos e trinta mil bretões tenham perecido – dizem os especialistas que Boadicéia e suas filhas, para não serem aprisionadas, se suicidaram tomando veneno.
Hoje, todos podem ver a grande estátua de Boadicéia em Westminster; poucos, porém, sabem que há quase dois mil anos, essa moça, montada em uma biga e com sangue nos olhos, foi a líder de seu povo em um momento crucial do império romano. Como havia um risco real de que outras regiões seguissem o exemplo de Boadicéia, quando a rainha incendiou Londres chegou realmente muito perto de fazer o imperador Nero recolher as tropas, botar o rabo entre as pernas e desistir da região.
fotografia Moacir Pimentel

Nessa confluência de eras e impérios, em meio às Londres romana, bretã, elizabetana, vitoriana e a dos nossos dias, além de se entender a transitoriedade das coisas, a efemeridade de tudo, principalmente a dos impérios, fica claro que a cidade não é uma só e sim várias. Portanto, por mais leituras que fizermos, jamais saberemos exatamente qual era aquela que morava, alimentada por literatura inglesa, na cabeça brilhante da escritora Helene Hanff.
Numa das cenas do filme vê-se a moça no chão da sua sala, rodeada por seus amados livros, dizendo que queria ir para Londres para conferir se a literatura “estava lá”. Finalizo o post com as palavras dela:
“Talvez esteja e talvez não esteja. Mas olhando para o tapete ao meu redor, uma coisa é certa: está aqui.”
Mas essa já será outra conversa...