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fotografia Moacir Pimentel |
Moacir Pimentel
Quando olho, em meio à neblina de um final de
tarde, para a coluna e a estátua do Almirante Horácio Nelson, no centro da
praça que usa emprestado o nome da batalha onde ele foi finalmente abatido –
Trafalgar! – eu me recordo de onde e quando ouvi falar pela primeira vez de Napoleão
Bonaparte. Eu tinha sete anos quando encontrei o imperador de bolso dos
franceses nas páginas do romance O Conde de Monte Cristo, de Alexandre Dumas. O
herói da história, o marinheiro Edmond Dantès, é preso sob a falsa acusação de
ter ido à Ilha de Elba para receber uma carta e
instruções de Napoleão, que ali estava exilado. Daí para a Enciclopédia e as batalhas navais entre
franceses e ingleses e, é claro, o Almirante Nelson foi um pulo.
Na Batalha de Trafalgar foram aniquilados os planos
franceses de invadir a Grã-Bretanha e a estratégia marítima de Napoleão, mas o
custo da vitória foi alto: a morte do almirante. A perda, no entanto, criou um
herói nacional para a recém-formada identidade britânica. A batalha que impôs
um limite ao império de Napoleão e traçou o curso de sua queda poderia ter sido
vencida por outros almirantes ingleses, mas penso que apenas Nelson poderia ter
garantido à Inglaterra o comando do mar por mais um século.
Trafalgar foi o produto da genialidade obsessiva de
um homem e do seu compromisso inquebrantável com o seu país. A ironia é que
nenhuma das homenagens feitas a Nelson foi mais significativa do que aquela
realizada, após a sua morte, pelo seu inimigo mortal. Ao ser informado que o
famoso bordão do almirante fora hasteado no HMS Victory, Napoleão ordenou a
sinalização através de bandeiras para todos os seus navios da tradução em
francês do lema do seu arqui inimigo abatido em combate: “A pátria espera que todos cumpram o seu dever”.
Helene Hanff, a autora/protagonista do livro/filme 84, Charing Cross Road sabia muito bem – apesar de não apreciar ficção (rsrs) -
que tudo o que é humano já foi, ou é, ou será imaginado e narrado. Durante uma
hora e meia de filme, ela e suas cartas saudosas de uma Londres de séculos
passados nos seduzem porque o poder da palavra escrita é tão forte que até
parecia que rolava um vazio, um grande espaço em branco, enquanto a próxima
carta - o recurso usado para encantar a imaginação do leitor/espectador - não
chegava. Helene nos prova que as mais atraentes de todas as paisagens são aquelas
que moram nas nossas imaginações.
Muitos artistas, também encantados com a capital inglesa,
reinventaram a atmosfera misteriosa de Londres e pintaram as suas luzes à beira
do rio Tâmisa ou em Piccadilly através do nevoeiro. Como, por exemplo, o
americano James McNeil Whistler em meados do século XIX.
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James McNeil Whistler - Nocturne in grey and gold in Piccadilly (1881) |
Essa visão atmosférica do centro de Londres, de
nome Noturno Cinza e Dourado,
certamente evoca mistério. O pano de fundo parece ser um abismo vazio
desprovido de formas que sabemos estarem lá. O modo preciso como as luzes da
rua e das janelas foram pintadas, dá a impressão de que estão se aproximando,
como de fato elas fazem nas noites de nevoeiro. Os cavalos e as pessoas são
silhuetas fantasmagóricas cuja forma parece estar se dissolvendo diante de
nossos olhos. Essas figuras sem forma no topo da carruagem, em primeiro plano,
parecem estar flutuando no ar e sugerem um mundo desaparecendo sob o peso do
nevoeiro cinza-amarelado.
Claude Monet também fez dos efeitos cambiantes da
atmosfera e da luz sobre o Tâmisa, envolto nas névoas de inverno, um de seus
temas prediletos pois pintou as pontes de Charing Cross e Waterloo e as Casas
do Parlamento em cem telas diversas. Isso
mesmo! Cem telas! Nelas o único efeito constante é a névoa e nela as altas
chaminés se tornando campanários e os armazéns virando palácios sugerindo a
transitoriedade de impressões aparentemente fixas, dissolvendo tanto o tempo
quanto o espaço. Nos trabalhos do impressionista o fog disfarçava a pobreza, o
mercantilismo e a miséria de Londres, transformando-a em um mundo mágico que
aniquilava todas as distinções sociais e morais.
Mas o “fog”
é uma cena contemporânea e muito familiar para os londrinos. Quando a neblina –
e/ou a poluição - como um véu, enche a ribeira do Tâmisa de poesia e os
edifícios perdem-se no céu escuro e toda a cidade fica suspensa entre o céu e a
terra, então quem tem juízo apressa-se para voltar para casa deixando as
possibilidades estéticas desse lugar estranho para os artistas (rsrs)
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fotografia Moacir Pimentel |
Mesmo que, como no caso acima, o “fog” seja apenas
a fumaça saindo do carrinho de um vendedor de quitutes indianos (rsrs) Mas o
fato é que diante dessas paragens não tem como não lembrar das
palavras de Próspero, o Duque de Milão, para sua filha Miranda na primeira cena
do quarto ato da peça A Tempestade, considerada por muitos como a derradeira escrita por William
Shakespeare:
“As torres que se elevam para as nuvens, os palácios altivos, as igrejas
majestosas, o próprio globo imenso, com tudo o que contém, hão de sumir-se,
como se deu com essa visão tênue, sem deixarem vestígio. Nós somos feitos da matéria de que são feitos os sonhos;
nossa vida pequenina é cercada pelo sono”.
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fotografia Moacir Pimenel |
Há algo mágico sobre um lugar que a gente conhece dos
livros de história e das telas famosas e que, de repente, ganha vida. Tem alguma
coisa emocionante nesse perambular ao longo de ruas e praças e pontes e rios onde
a história aconteceu, onde escritores e pintores que tanto apreciamos trabalharam,
onde outras gerações sonharam e pensaram e mudaram o mundo. Como escreveu
Helene Hanff:
“Você decide parar de usar a
palavra “anacronismo” quando uma carruagem do século XVII atravessa os portões
do Palácio de Buckingham carregando diplomatas russos ou africanos do século XX
para serem recebidos por uma rainha. “Anacronismo” implica algo morto faz tempo,
e nada está morto aqui. A história, como eles dizem, está viva e floresce em
Londres”.
O que eu estou tentando teclar-para você desde o
primeiro parágrafo desse post é que, de certa forma, eu compreendo a capital
literária do mundo imaginado pela escritora. Sempre
que boto os pés nessa cidade é como se eu tivesse abandonado o espaço cotidiano
da realidade e entrado em outro reino muito parecido com o dos livros, aquele
dos viajantes que aqueciam as mãos
diante das fogueiras ancestrais.
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fotografia Moacir Pimentel |
Diante do Tâmisa, por exemplo, apesar da modernidade circundante, costumo
imaginar os soldados romanos navegando por ele há dois mil anos atrás e sempre
me pergunto como é que aqueles caras se sentiram ao chegar na escuridão a
praias desconhecidas, ao pular dos barcos, ao cair na água fria, ao afundar os
pés na areia, ao caminhar na terra nova?
Em 54 aC Júlio César e seus homens cruzaram o
Tâmisa, sinalizando uma nova era mas sempre ameaçados pelas tribos celtas nativas
e, especialmente, desafiados pelos druidas, que eram os
sábios, os homens que aconselhavam e ensinavam e se ocupavam das questões
jurídicas e filosóficas dentro das tribos celtas.
Embora não haja consenso entre os estudiosos sobre a sua origem
etimológica, parece que a palavra druida é oriunda da junção de deru,
que traduz carvalho e de wid uma raiz indo-europeia que significa saber.
Assim, druida seria aquele que detinha “o conhecimento do carvalho” que,
por ser a mais antiga das árvores de uma floresta, representava simbolicamente
todas as demais.
Caio Júlio César, em
sua obra De Bello Gallico - Guerras da Gália – além de descrever as
campanhas que estabeleceram o domínio romano sobre a Europa a oeste do rio Reno
- a região então conhecida por Gália
- narra as duas invasões da Bretanha, em 55 a.C. e 54 a.C e fala sobre a organização dos druidas, dos seus ritos, funções, reuniões,
julgamentos apresentando-os ao mundo “civilizado” como bárbaros cruéis e
supersticiosos dados a sacrifícios humanos.
Porém os especialistas modernos explicam essa difamação levada a cabo
não só por César mas por todos os historiadores romanos, como uma técnica de
guerra devido à necessidade de dominar a frágil e oral cultura celta. Os habitantes originais da Bretanha
eram incrivelmente resilientes e lutaram bravamente para manter sua identidade
cultural mas a invasão romana, ao fim e ao cabo, mudou a paisagem, a linguagem,
a cultura e pensamento dos nativos para sempre.
O certo é que os romanos não “chegaram, viram e venceram”, e pronto. Em vez muito ralaram e nunca tiveram paz em Britânia mas
foram ficando, fazendo alianças e recolhendo tributos dos reis nativos. Eles escolheram
a localização de Londres, é claro, porque foi o primeiro ponto com que se
depararam onde o rio era suficientemente estreito para que uma ponte fosse
erguida usando a tecnologia então disponível.
A sensação que a Helene Hanff descreve, a forte
impressão que ela comunica de que em Londres se está em um portal do tempo, entre
eras diversas, me toma de assalto em muitas esquinas londrinas. Sinto isso, por
exemplo, nas Ponte e Torre de Londres, diante da estátua de Nelson ou da
alegoria policromada da Rainha do Tempo, de pé na proa de pedra de um navio,
defronte dos mostradores gêmeos do relógio da loja Selfridges na Oxford Street
ou no belo arco que é
considerado o primeiro portão do Palácio de Buckingham e depois no Mall e por
aí vai.
Mas ela é avassaladora quando, de um lado do rio se
vê branca e modernosa a London Eye - uma das mais famosas rodas gigantes do
mundo – e do outro, na saída do metrô de Westminster – note a placa do “tube” à
direita da foto abaixo - se contempla a
biga e os cavalos e as duas filhas e a própria rainha celta Boadicéia, aos pés
do Big Ben.
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fotografia Moacir Pimentel |
Muito já se escreveu sobre essa personagem que, para
os vitorianos, era o epítome do espírito da antiga Grã-Bretanha, a nobre
guerreira defensora da nação, de braços erguidos segurando sua lança, guiando
seus guerreiros ferozes contra o inimigo romano.
Boadicéia, ou Boudica, ou a Rainha Vitória – seu nome significava “vitória”
em uma das línguas celtas - era a chefe dos icenos, uma das muitas tribos
celtas que viviam no remoto noroeste da Britânia romana. Sucede que após a
morte do rei seu marido - um aliado de Roma - e de ver suas terras invadidas e tomadas,
de testemunhar o estupro de suas filhas e de ser açoitada, ela liderou a maior
revolta contra os romanos da história do Império.
A vida dessa bela e valente
mulher é contada na Ode a Boadiceia, em versos da lavra do poeta William Cowper,
com tradução do Sr. Editor:
Quando
a guerreira e britânica rainha
Sangrando
dos golpes do romano relho
Procurou,
com semblante indignado,
Dos
deuses do seu povo algum conselho,
Encontrou
sob o frondoso carvalho
O
sábio chefe druida grisalho;
Cada
palavra sua era inflamada
De
raiva e de tristeza impregnada.
Princesa,
se meus olhos envelhecidos
Choram
pelos males a ti infligidos
É
porque o ressentimento amordaça
Das
nossas línguas a terrível ameaça.
Roma
perecerá – escreve o que te digo
Afogada
no sangue que tem derramado;
Perecerá,
detestada e conformada
Na sua
culpa e na ruína afundada.
Roma,
com imenso renome imperou,
E
incontáveis países esmagou;
Mas
logo seu orgulho cairá–
Olha!
O gaulês às suas portas já está!
Outros
Romanos se levantarão
Que
não cobiçam a fama de soldados
Sons e
não armas o prêmio ganharão –
Pela
harmonia à fama serão levados.
Então
os filhos que nascerão
Do
seio das florestas de nossa terra
Vestidos
de asas e armados com o trovão
Um
mundo bem maior comandarão.
Regiões
por César nunca contempladas
Ante
os filhos do teu sangue tremerão
Por
suas águias nunca sobrevoadas
Que
invencíveis como os teus nunca serão.
Proféticas
palavras proferia
O
bardo, prenhes do fogo dos céus,
Curvado,
enquanto as cordas tangia
De sua
lira doce mas terrível.
Ela,
com imenso e régio orgulho,
Sentia-as
crescer e chamejar consigo
À
batalha correu, combateu e morreu
E ao
morrer lançou-as ao inimigo:
Bandidos,
impiedosos e orgulhosos,
O céu
trará a vingança a nós devida:
O
império a nós foi concedido
E a
vergonha e a ruína vos esperam.
Sessenta anos após o Cristo, essa jovem mulher furiosa foi capaz de
formar e motivar um exército de cem mil guerreiros bretões, de arrasar
completamente três das mais importantes cidades da ilha, incluindo Londres - a
Londinium de então - da qual não sobrou pedra sobre pedra e de massacrar mais
de setenta mil inimigos.
Todas as informações que temos sobre Boadicéia são da lavra de
historiadores romanos que juram de pés juntos que ela era alta e inteligente, que
tinha um olhar “terrível” e uma cascata de cabelos vermelhos que lhe alcançava
os joelhos e que carregava uma lança comprida. Apesar de nada entender de
táticas de combate e de não ter armas sofisticadas, ela contava com uma
vantagem militar: seus homens usavam com maestria as bigas de guerra, pequenas
carroças guiadas por uma dupla de guerreiros. Os romanos, em vez, só usavam
bigas em eventos esportivos, nunca em combate.
O que se sabe é que Boadicéia só perdeu a batalha final porque, apesar
de estarem em uma tremenda desvantagem numérica, os romanos tinham a seu favor melhores
armamentos, além de disciplina e estratégia militar superiores, e conseguiram
derrotar os celtas na Batalha de Watling Street.
Depois de presenciar o massacre dos seus guerreiros e de suas famílias –
estima-se que duzentos e trinta mil bretões tenham perecido – dizem os
especialistas que Boadicéia e suas filhas, para não serem aprisionadas, se
suicidaram tomando veneno.
Hoje, todos podem ver a grande estátua de Boadicéia em Westminster; poucos,
porém, sabem que há quase dois mil anos, essa moça, montada em uma biga e com
sangue nos olhos, foi a líder de seu povo em um momento crucial do império
romano. Como havia um risco real de que outras regiões seguissem o exemplo de Boadicéia,
quando a rainha incendiou Londres chegou realmente muito perto de fazer o
imperador Nero recolher as tropas, botar o rabo entre as pernas e desistir da
região.
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fotografia Moacir Pimentel |
Nessa confluência de eras e impérios, em meio às Londres romana, bretã, elizabetana,
vitoriana e a dos nossos dias, além de se entender a transitoriedade das
coisas, a efemeridade de tudo, principalmente a dos impérios, fica claro que a
cidade não é uma só e sim várias.
Portanto, por mais leituras que fizermos, jamais saberemos exatamente qual era
aquela que morava, alimentada por literatura inglesa, na cabeça brilhante da
escritora Helene Hanff.
Numa das cenas do filme vê-se a moça no chão da sua
sala, rodeada por seus amados livros, dizendo que queria ir para Londres para
conferir se a literatura “estava lá”.
Finalizo o post com as palavras dela:
“Talvez esteja e talvez não
esteja. Mas olhando para o tapete ao meu redor, uma coisa é certa: está aqui.”
Mas essa já será outra conversa...