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30/07/2019

“Adoro meu Brasil de madrugada...”

cerâmica - Ana Nunes


Ana Nunes
Um dia escrevi assim para um amigo:

Querido amigo,
Obrigada pela resposta. Franca, do jeito que eu gosto. Mas também amiga e carinhosa!
Pena sua imagem de favela corroída pelos acontecimentos. Tão sérios! A maioria das pessoas sente o mesmo. E não poderia ser diferente.
Mas quando a gente trabalha lá dentro, dirigindo o carrinho berinjela roxa por caminhos estreitos de um só carro, e depois subindo escadas sinuosas e mais estreitas que os caminhos, a gente conhece coisas formidáveis. E outras bem revoltantes também. Vida!

Trabalhei em uma enorme, chamada São José onde não passava carro, só carroças e motos pelas ruelas-becos. E numa atividade com as crianças onde deveriam desenhar “o lugar onde viviam”, uma delas desenhou uma “carruagem” carroça de sonhos, com super-herói, ele mesmo,  cheia de raios e luzes e cores. Certamente carregava consigo nessa carroça de sonhos, seus sonhos mais preciosos. Fiquei emocionada quando ele me descreveu seu trabalho.
Depois foi inaugurado lá um outro tipo de favela, aquela horrível favela vertical de material barato e defeitos vários, que as crianças chamavam de gaiolas e para onde não queriam se mudar. Favelas de cinco andares sem elevador, lógico. Como um pombal, cheio de pombinhas crianças e pombas avós descadeiradas!

Em outra, com nome de jardins e de felicidade,  restos de antigas fazendas que sempre foram, e ainda são, ponto de “desova de presunto”, mulheres oriundas de Postos de Saúde, umas com filhos bandidos presos e, elas condoídas mostrando cartas onde eles pediam doces e outras desnecessidades, usadas sem saber ou mesmo sabendo, mães antes de tudo,  outras de casamentos sucessivos com alcoólatras violentos marcadas na alma por surras incontáveis, outras bem politizadas e por isso mesmo barraqueiras, foram capazes de aquarelas lindas, ternas e autovalorizadas. O que é o mais importante, o porquê de estar lá trabalhando. Conseguir isso é verdadeira recompensa, minha e delas.
Lá ganhei presentes delicados e preciosos como panos de prato, creme para as mãos, pudim de pão com goiabada, o melhor que já comi, muita alegria e muito aprendizado.

Nessa comunidade passei muito aperto dirigindo atrás de carros “viaturas” grandes onde os policiais com braços e meio tronco pendurados nas janelas carregavam armas aterrorizantes. E eu sem poder ultrapassar por falta de espaço e mesmo sem saber o que era melhor, ficar atrás, parar ou ir na frente de batedor.
Topei também com traficantes jovens que como reis levavam sua rainhas, mocinhas quase inocentes e quase crianças, orgulhosos e cheios de poder, para atividades tipo Dia da Mulher, e lá mesmo ficavam debochando do nosso trabalho.

E assim é o nosso mundo. Onde eu nem  sei direito o que acho e o que sinto. E temo não ver a cura! Onde também faço de conta que tudo é muito bom e participo desse mundinho organizado, como a minha favela de cerâmica, e vou ao supermercado do shopping onde tudo são flores e fico com o coração em frangalhos quando vejo uma senhora pobre na fila do caixa com um sabonete e um pacote de fubá e um monte de coisas coloridas e úteis e gostosas nas sombras dos seus olhos.

E o pior é que eu preciso desse mundo organizado e falso porque nele eu vivo e tenho que manter a minha sanidade.

Extrapolei? É que me deu uma vontade enorme de conversar com você.
Agora, cá prá nós (eu rindo de mim mesma, ria também por favor!) que inocência a minha ao pedir sua opinião sobre a minha cerâmica favelada quando seus olhos já foram maravilhados por cerâmicas de gente grande!
Desculpa por isso. Abraço.
“Queime depois de ler”.
Ana

“A mão de Deus abençoou
Em terras brasileiras vou plantar arroz...”

10 comentários:

  1. Francisco Bendl31/07/2019, 09:53

    A vida é um pipocar de lembranças e comparações.
    Recordamos do passado que se vai longe, do que ainda está recente, da semana passada, de ontem ...
    Inevitavelmente fazemos comparações porque necessárias ou, também, pelo fato de serem inevitáveis ou até mesmo as realizamos sem nos dar conta que estão sendo feitas.
    A Aninha nos demonstrou exatamente parte de suas lembranças e algumas comparações que fez ao longo de uma jornada da sua vida, um período, um pedaço dela.
    Principalmente quando mencionou ter trabalhado em locais carentes, de pessoas que lutam com muitas dificuldades para sobreviver, que, se existem sonhos, pertencem aos jovens, pois os adultos têm consigo uma realidade cruel e desesperançada.
    E surgiram as comparações, onde muitas vidas são medidas pelas nossas ou ao contrário.
    Ana se mostrou verdadeira nessas recordações e simulações que fez de sua existência com as de outras pessoas porque longe de se comover com a tristeza alheia, viu nelas dignidade, disposição, determinação, e vontade de vencer.
    Não escreveu em nenhum momento piedade, consideração, compaixão, não, pois não teria sido relevante.
    Ana postou os seus sentimentos, seus pensamentos a respeito, deixando-nos outro artigo memorável, de extrema qualidade, de episódios pessoais que se transformam em impulsos, em mola-mestre para seguirmos em frente e nos catapultar pra novas fases, outras experiências, e mais comparações.
    Com autoridade moral, personalidade própria, Ana abordou um assunto onde possui condições sobejas para tecer análises e comentários daquilo que testemunhou, dimensionando a sua vida com as que conheceu de maneira irrepreensível, haja vista que a nossa articulista é uma mulher realizada!
    Não apenas no que tange à sua inteligência, conhecimentos, experiências ...
    Mas pela mulher que é, pela mãe, que se tornou, pela avó, que serve como exemplo de amor pelos netos, pela esposa inigualável, pela mulher extraordinária que sempre foi e assim o será para sempre.
    Os altos e baixos de existências que compartilhou com a sua vida, e escritos de forma sensível, sem ser piegas; legítima, sem usar de tergiversações; adequada porque não maquiou a realidade do povo que conheceu, demonstram o seu caráter, a sua honra, a sua competência, a sua capacidade, a sua sensibilidade pelos problemas alheios, porém sem negligenciar a sua rotina ou desculpar-se de suas omissões através de obstáculos que sequer lhe pertenciam.
    Ana soube separar com muita propriedade e singeleza a vida árdua de muitos, custosa, difícil, com o seu jeito de viver, que não deixa de ter as mesmas características não porque possui uma existência mais exitosa, mas pelo fato de que sabe dessas atribulações alheias, que poderiam lhe trazer influências negativas no seu comportamento diário.
    Ana foi superior, então o seu artigo mais uma vez admirável, impressionante, que merece a minha admiração e aplausos pelos relatos registrados, as suas recordações, as suas comparações, e exemplo de ser humano, de mulher, irmã, esposa, mãe, avó, sogra e de amiga!
    Um grande Abraço, Aninha.
    Saúde, muita saúde.

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    1. Ah, Francisco Chicão!
      Você não tem jeito mesmo.
      A vida pipoca e você elogia! Que paradoxo! Que beleza!
      As comparações são inevitáveis e a realidade machuca mesmo. Mas somos tão teimosos que igual a uma enguia vamos nos espichando por aqui e por ali, igual a um camaleão metamorfoseando com as cores do ambiente, e escondendo nas tintas como um polvo. E sobrevivemos.
      Difícil mesmo é responder a tanto elogio e amizade.
      Um obrigada de peso e tamanho adequados!
      E porque estou ficando viciada em palavras macias e elogiosas,
      até MAIS!

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  2. Flávio José Bortolotto31/07/2019, 11:37

    Prezada Autora Sra. ANA NUNES,

    Muito obrigado por nos contar de seu Trabalho Artístico com as Crianças e Mulheres na Favela SÃO JOSÉ, e outras de Belo Horizonte-MG.
    É um grande ato de Patriotismo dedicar tempo a ensinar Artes Plásticas a esse Público, Favelados, onde a maioria das Pessoas nem pensam em entrar lá.
    Muito bonita sua Cerâmica representando a São José. As Mulheres e as Crianças com quem a senhora trabalhou voluntariamente, souberam ser AGRADECIDAS pela sua dedicação.

    Um País é tão forte como seu Elo mais fraco, A CRIANÇA POBRE. A nosso ver, a melhor coisa que o Brasil poderia fazer é construir Escolas de tempo integral ( 2 Turnos) ( Instrução - Esportes - Alimentação) para ELAS, essas CRIANÇAS POBRES.
    Tenho certeza que em futuro breve chegaremos lá.

    E não, não queime depois de ler caro Amigo, essa sensível e tão bem escrita Crônica dessa excelente Escritora e Artista, Sra. ANA NUNES, porque sua Cerâmica é muito linda, e mais ainda seus Ideais.

    Muita Saúde e Saudações.

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    1. Olá Flávio Bortolotto,
      Realmente "um país é tão forte como seu elo mais fraco". Isso me faz parar e pensar.
      Mas não sou otimista como você. Acho mesmo que não, nós, chegaremos lá, nesse país saudável. Se alguém chegar vai ser depois de muita injustica, luta e palhaçadas.
      Gostei demais do "não queime depois de ler caro amigo". Torna suas palavras generosas mais adoráveis ainda.
      Até mais.

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  3. Lea Mello Silva31/07/2019, 16:06

    Ana

    lembro bem quando vc fazia este trabalho na favela e sua coragem enfrentando tantos obstáculos
    Moro perto da favela da Serra e vejo os que lutam por uma vida melhor
    Assim como tem os de mau caráter
    Afinal entres as mansões temos também a divisão dos maus e bons
    E a beleza de cada casinha pintada com orgulho dos seus moradores em viver numa comunidade que anseia se transformar em algo melhor
    Muito real seu relato e bom o que proporcionou a tantas pessoas
    Minha admiração pelo seu trabalho !

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    1. Oi Léa,
      Sempre dividimos tudo, favelas, aquarelas, cachorros e gatos. Passarinhos no seu jardim suspenso.
      E agora na velhice dividimos palavras e sentimentos. Bom demais!
      Continuemos juntas.
      Beijo

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  4. Moacir Pimentel01/08/2019, 08:07

    Caríssima Donana,
    Rasgar o seu belo post seria uma pecado cabeludo e fazer de contas que as misérias humanas que ele descreve não existem não é uma opção. Mas a luta contra a miséria circundante não é uma cruzada com um só inimigo identificado e específico, seja o capitalismo desenfreado, o socialismo autoritário, a política corrupta, os governos desonestos, o excesso ou a falta da presença do Estado, os impostos escandinavos e os serviços saarianos, o tráfico, a violência, a falta de saneamento, saúde, educação. A lista não tem fim.
    Quando jovem eu acreditava que a escola seria a única porta de saída, que os desequilíbrios e a injustiça sociais só poderiam ser desafiados pela educação. Cheguei a Cuba aos quarenta anos para descobrir que o paraíso socialista era um cortiço caindo aos pedaços no meio do Caribe, onde sim todos eram iguais, educados, formados, mas viviam igualmente as mesmas carências, "falando de lado e olhando pro chão", sob opressão.
    Como o bicho homem só pode desejar o que não tem talvez desses horrores todos surja algum dia um sistema mais generoso e inclusivo e equitativo, uma faísca que fará toda a economia pegar fogo, desencadeará crescimento, gerará empregos e riqueza e acabará com a pobreza. Enquanto isso...
    LOUVO o seu trabalho voluntário e sinto uma inveja boa do seu talento. Por ser uma artista a senhora tem um ônus: uma sensibilidade social agudizada que a torna incapaz de normatizar a dor alheia e de esquecer os sonhos coloridos e impossíveis daquele menino. Mas esse dom também lhe dá um bônus: em vez de internalizar “a dor do mundo” a senhora pode exorcizá-la nas tintas e no barro.
    Há que manter a sanidade nessa geografia cotidiana na qual o barulho dos tiros virou lullaby. É preciso tentar fazer do belo - afetos, livros, artes, filmes, conversas - uma espécie de profilaxia e buscar na forma um revestimento pessoal contra às deformações que as lutas trazem. As suas benditas artes nos ajudam a manter à distância efeitos colaterais como intolerância, ódio, insensibilidade e desesperança.
    Muito obrigado e "até sempre mais"

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    1. Olá Moacir,
      Se é belo o post não sei. Mas gosto que não rasgue para entender as minhas misérias e o meu trabalho. Se ele, o trabalho, exorciza, também não sei. Mas não consigo não fazer.
      E nessas casinhas de argila depois cerâmica, cuidadosamente feitas e colocadas na placa, tem sempre uma bem lá em cima, meio isolada, na beirada do morro, que é a minha. Vou montando o trabalho e construindo uma estória.
      Imitando o Heraldo, eu saí da favela mas a favela não saiu de mim.
      Não sei se podemos comparar nossa realidade à de outros países. Porque apesar do Sebastião Salgado dizer e provar com sua fotografia que em qualquer lugar do nosso mundo somos os mesmos seres humanos, acho que temos, cada país,uma realidade única que nos formata. Ainda acredito na educação e na saúde,na medicina, no alimento e no esgoto, na água e na luz. Lado a lado com um pessimismo de muitos anos e observâncias. (Só temo que além de tudo isso ainda viremos uma Venezuela...e que o Redator não me leia!)
      Devemos, e podemos felizmente, usar desses truques que você chama de belo, afetos, livros, artes, filmes e CONVERSAS como profilaxia e exercício de sanidade.
      Ônus e bônus.
      Obrigada muito .
      Atē sempre mais.....

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  5. 1) https://www.letras.com.br/oldemar-magalhaes/favela-amarela

    2) Oi Ana, sua bela cerâmica e texto me fizeram lembrar de uma canção do meu tempo de criança:

    3)Sua sensibilidade social evidenciou através da arte, um dos graves problemas de nosso país.Parabéns !

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  6. Olá Antonio,
    Bem vindo ao nosso lar.
    Que a sua viagem tenha sido só alegria.
    Já estava sentindo falta dos seus 1, 2,3, e às vezes até 4 quando o assunto merece.
    Não conhecia essa canção que não foi do meu tempo de menina. Gostei muito, bem de acordo com esse trabalho meio amarelo meio triste.
    Muito obrigada pelas palavras gentis.
    Um ótimo domingo para vocês.
    Até mais.

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