Moacir Pimentel
A estátua de Sir John Betjeman
na estação de São Pancras é uma das mais fotografadas de Londres. Além de
escritor, jornalista e radialista ele foi um dos poetas laureados ingleses. Um poeta laureado é aquele assim definido,
oficialmente, pelo governo, no caso, o britânico. Mas o termo vem de longe, das
coroas de louro com as quais, na Grécia antiga, eram homenageados os heróis.
Desde então o termo “laureado” e as coroas têm sido oferecidos a poetas
romanos, medievais, dos séculos XVII e XVIII, sendo notória, inclusive, uma
noite no final do inverno de 1778, quando os espectadores entusiasmados com Irène,
a tragédia de autoria de François-Marie
Arouet, mais conhecido pelo pseudônimo de Voltaire, no sexto ato não se
contiveram, subiram no palco e coroaram-no como o poeta da Comédie Française. A
Grã Bretanha apenas seguiu uma velha tradição.
Durante os felizes dias que passou em Londres, a
escritora Helene Hanff não pôde conhecer, no piso superior da Estação
Internacional São Pancras a estátua de bronze de Sir John, olhando maravilhado ao
seu redor e, principalmente, para as milhares novas vidraças e para o telhado
que permitem que a luz natural inunde todo o enorme espaço. Projetada pelo
escultor britânico Martin Jennings, a estátua de dois metros de altura comemora
a campanha bem sucedida do poeta na década de 1960, para salvar a estação da
demolição.
Infelizmente para a Helene, a estação só passou a
hospedar o poeta ao ser reinaugurada, depois de muitos anos de reformas, em
2007, quando o primeiro trem de alta velocidade, o Euroestar - que leva pouco
mais de duas horas para completar o trecho Londres/Paris, pouco menos de duas até
Bruxelas e uma hora e trinta minutos até Lille e vice e versa! - deslizou pela
estação e parou a poucos passos de uma outra escultura de um jovem casal
abraçado.
Projetada pelo artista britânico Paul Day, a obra
se chama Meeting Place – Ponto de
Encontro - e foi concebida para evocar, do alto de seus três metros de
altura, o romantismo das viagens ferroviárias. Só que, em vez, causou
controvérsia quando da adição posterior, feita pelo artista, de um friso de
bronze em baixo relevo ao redor do seu rodapé, descrevendo entre centenas de
outras figuras, um passageiro caindo nos trilhos à frente de um trem que avança
dirigido pelo “Grim Reaper”, o apelido da Velha Senhora naquelas paragens. Para
mim , no entanto, o friso é o melhor da festa.
Essa estação ferroviária que foi inaugurada em 1876
para conectar Londres com algumas das principais cidades da Inglaterra é uma das
maravilhas da engenharia e da arquitetura gótica vitorianas e sua história de decadência,
restauração e renascimento é uma lição para todos nós porque é uma mentira
cabeluda que se tenha que escolher entre o antigo e o novo. Grandes e velhos e
belos edifícios como essa estação estão pedindo - pelamordedeus! - para serem aproveitados.
A Estação de São Pancras e o seu vizinho Midland
Grand Hotel são hoje considerados verdadeiros monumentos, um revival do design
vitoriano e uma homenagem aos seus criadores, o engenheiro William Henry Barlow
e o arquiteto George Gilbert Scott. Toda a magnificência da São Pancras reflete
o pensamento do seu tempo em relação ao design e a operação de uma estação
ferroviária: a plataforma se apoia em oitocentas e cinquenta colunas de ferro
fundido que juntamente com os arcos do telhado resultam em um espaço de trinta
metros de altura, setenta de largura e duzentos de comprimento. O teto de ferro
foi copiado em todo o mundo, inclusive na Grand Central Station de Nova York.
Quando foi inaugurada no século XIX São Pancras era
uma das portas de entrada mais importantes de Londres. Mas os ataques aéreos
nazistas atingiram duramente a estação e, após a guerra, ela passou a ter um
futuro incerto à medida que o transporte rodoviário assumia o controle. Em
1948, vários projetos para amalgamar as estações do norte de Londres - Euston,
São Pancras e King’s Cross - tornaram-se uma possibilidade real.
Em 1966, as propostas de demolição dessas estações
foram colocadas sobre a mesa dos poderosos. No entanto, a voz do poeta laureado
John Betjeman, um feroz defensor da arquitetura vitoriana, se levantou conclamando
a nação a defender “esse conjunto de
torres e pináculos vistos lá do monte Pentonville delineados contra um
pôr-do-sol nebuloso e o grande arco do galpão do trem.”
Embora o poeta já estivesse resignado a perder a
guerra ao descrever o edifício como “muito lindo e muito romântico para
sobreviver”, eis que, de repente, apareceu a cavalaria na forma da Sociedade
Vitoriana de Londres e, um ano depois, a estação foi elevada à categoria de
patrimônio histórico, com a mesma classificação do Castelo de Windsor.
Preservada, para ela uma nova possibilidade de
futuro surgiu quando o governo de plantão, em 1993, decidiu ampliá-la e
modernizá-la para que passasse a receber os comboios de alta velocidade que
cruzariam o Túnel do Canal da Mancha. São Pancras foi praticamente duplicada
por seis novas plataformas para que pudesse dar conta dos trens internacionais,
além dos domésticos e do metrô.
Hoje, sofrendo a concorrência das companhias aéreas
de baixo custo, São Pancras não é apenas uma estação de trem, onde se começa ou
termina uma viagem, mas um destino em si, uma atração turística. É engraçado
como um lugar por onde passam mais de cinquenta milhões de criaturas a cada ano
consiga manter a sua reputação de um dos pontos de encontro mais românticos do
mundo, ideal para o pecado da gula. Pelo menos no restaurante que leva o nome
do poeta.
Creio que os franceses que desembarcam dos trens Eurostars
não têm do que reclamar quanto os menus, pois não encontrarão um Burger King ou
McDonald's em nenhum lugar nesta catedral arquitetônica de aço e vidro. Muito ao contrário, tem
bistrô, brasserie, champanheria, ostras, arenque defumado com molhos variados,
cordeiro de Herefordshire, e, last but not least, cogumelos selvagens com
torradas para os remediados terceiro mundistas que escolhem o que comer na
coluna à direita (rsrs)
Lá se encontram uma filial da livraria Foyles -
outro velho símbolo londrino persistente! - e um quiosque – não sei se
temporário! - que nos pareceu um primo legítimo do emblemático Borough Market.
Tudo isso no piso superior, diretamente sob o telhado e as colunas do Barlow, cada
uma capaz de suportar cinquenta toneladas de peso, gloriosamente preservadas e para
as quais, como o Sir John, a gente não se cansa de olhar.
Na verdade o piso inferior da estação foi concebido
para armazenar toda a cerveja que se bebia na Londres vitoriana. Tanto que, nos
seus escritos, o poeta afirma que o engenheiro Barlow dizia que tudo o que
estava construindo na estação tinha sido planejado a partir das medidas de um
barril de cerveja (rsrs)
No entanto, as palavras do poeta e dos ferozes
defensores da estação ainda parecem apropriadas hoje e são compreendidas com
mais intensidade do que nunca, pois São Pancras, mais uma vez, se tornou um emblema
nacional vivo:
“A estação destila a essência
do poder vitoriano pois é a mais magnífica construção comercial da época,
refletindo mais completamente do que qualquer outra seus orgulho e poder
econômico e sua tecnologia triunfante impregnados de romance “.
Mas, já que escrevia para
crianças, a Helene conheceu outra estação ferroviária e mais um dos personagens
preferidos do Reino Unido. Trata-se do Urso Paddington, o famoso personagem literário infantil, um imigrante de chapéu e sobretudo nos trinques vindo do Peru que, criado por Michael Bond em
1958, foi assim batizado porque na historinha ele é encontrado pela boa família
Brown em um dos bancos da estação de Paddington com um bilhete pendurado no pescoço no qual se podia ler: “Por favor, tome conta deste ursinho.
Obrigado!”
Como mostra o desempenho de venda do best-seller, nunca antes naquele
país tantos cuidaram tanto de um “dimenor” abandonado (rsrs) O livro do Urso
Paddington - que é viciado em sanduíches de marmelada! - vendeu muitos milhões de cópias, virou desenho
animado e se transformou em um dos ícones da cultura inglesa, antes de ser
eternizado sentado em cima da sua mala marrom, como uma estátua que hoje mora
na estação que lhe deu o nome.
Quem mais virou bronze ou mármore literários? Lord
George Gordon Byron no Hyde Park e Peter Pan nos Jardins Kensington e
Shakespeare na praça Leicester e... calma, chegaremos lá em outras conversas.
Pimentel,
ResponderExcluirMais uma leitura agradabilíssima sobre mais um pedaço desconhecido e imperdível de Londres. Você realmente se supera quando descreve suas viagens e consegue levar quem lê a tiracolo. Me deu até fome. Parabéns e obrigado.
Sampaio,
ExcluirObrigado pelas generosas palavras. Confesso que também eu, via de regra, viajo com muuuuita fome. As más línguas inclusive chegam a garantir que, na verdade, viajo para comer (rsrs) A Estação São Pancras vale uma visita e, a partir dela, Paris vale a curta viagem de duas horas.
Abração
Você acredita que nunca andei de trem? Quem me dera um Ponto de Encontro assim kkk Adorei a estação antiga por fora e moderna por dentro. Misturar as coisas às vezes só dá certo. E muito prazer pro São Pancras de quem nunca ouvi falar kkk Obrigada!
ResponderExcluirMônica,
ExcluirConcordo com você: na arquitetura a mistura do velho e do novo, se bem feita, pode ser muito atraente. Pena que você nunca viajou em uma dessas máquinas. Já eu sou viciado em trens. Pudera! Antigamente eu ia namorar de "comboio" - na t’rrinha ainda não havia autoestradas! - e na Ásia colecionei dezenas de milhares de trilhos rodados.
Conheci essa velha estação vitoriana faz tempo porque o metrô ainda é a melhor forma de se chegar a outro local do qual sou fã de carteirinha : a Biblioteca Britânica que mora do outro lado da rua. Acompanhei com interesse as reformas – duraram anos! – e tão logo foi possível e juntamente com a tribo atravessei o Canal em alta velocidade.
Quanto ao santo sei muito pouco: que nasceu em Roma, que converteu-se ao cristianismo, que por isso foi decapitado aos quatorze anos e que os romanos dedicaram uma igreja ao mártir que consideram protetor dos doentes e desempregados.
“Obrigado!” e abração
Moacir,
ResponderExcluirHelene ia adorar visitar esta estação e se encontrar com Sir John. Também acho que todos os velhos e belos edifícios decadentes deveriam ser restaurados e reaproveitados. Ponto para os ingleses por cuidar tão bem de seu patrimônio histórico. Você tem nos mostrado estátuas maravilhosas e as de hoje não fogem à regra. Mas fiquei mal acostumada depois da aula de Boadiceia e queria ver o friso mais de perto e saber quem mais "virou bronze".
Um abraço para você
A revitalização dos centros históricos e a preservação da arquitetura são iniciativas tão boas e lógicas que não entendo os ‘progressistas’ reclamando que prejudicam as cidades em benefício só dos turistas. Muito bom saber que uma estação vitoriana foi adaptada para receber os trens de alta velocidade. Só não sei se é melhor pegar um eurostar ou voar numa dessas cias aéreas low cost para ir de Londres a Paris, rs
ResponderExcluirMárcio,
ExcluirPara começo de conversa ir de Londres a Paris ou vice versa, é sempre uma maravilhaseja como for. Em seguida sou usuário "dessas" áreas low cost desde março do ano 2000 e jamais tive quaisquer problemas com as reservas, compras, e-tickets, horários ou bagagens: elas simplesmente funcionam e pelo menos na Europa nada chega perto de fazer-lhes concorrência. Pudera! Hoje se vai de Lisboa a Paris a partir de quinze euros e em dezembro passado voamos de improviso no trecho Porto/Marraquexe/Porto por trinta e seis! No entanto de Londres a Paris eu prefiro o Eurostar e explico: os preços se equivalem e o tempo de viagem idem porque apesar da viagem ferroviária levar duas horas e o voo ser de apenas uma hora e poucos minutos, as low cost operam a partir dos aeroportos de Gatwick e/ou Luton, ambos a cinquenta quilômetros da cidade. Então faz mais sentido embarcar em São Pancras e desembarcar na Gare du Nord.
Na verdade muito aprecio os trens e tenho saudade dos tempos áureos dos TGVs. Certa vez pegamos o “noturno” para economizar a noite de hotel – é que os curumins ocupavam mais dois duplos! – de Madri a Paris. Desembarcamos na Gare de Lyon amassados e mal dormidos e de repente resolvemos apertar o botão do dane-se: levamos a tribo para comer no Le Train Bleau! Bons tempos!
Olá Moacir,
ResponderExcluirComo Londres é linda!
Eu queria chegar de mala e cuia nessa bela estação vinda...talvez de Bruxelas. Tomar um café com muffins ou croissants, dar uma olhada nos livros Foyles, admirar os amantes que se despedem ou que se reencontram e ficar horas estudando o friso de bronze.
E me sentir perdida do mundo nessa imensidão de ferros e colunas e tijolos vermelhos. Que, ainda por cima, agasalha trens de verdade.
Quimeras!
Eu queria mesmo é que seu texto fosse tão comprido que emendasse com o começo e entrasse em loop.
Obrigadíssima pelo passeio e pela história divididos conosco.
Ainda bem que teremos outras conversas!
Até sempre mais.
Prezado Autor Sr. MOACIR PIMENTEL,
ResponderExcluirMais um Artigo desse excepcional Escritor Sr. MOACIR PIMENTEL, que tendo por base a História da Escritora Americana Srta HELENE HANFF ( 84, Charing Cross Road - 1970 ), nos conta como sempre de forma prazerosa de se ler, do Poeta Laureado Sir JOHN BETJIEMAN que liderou eficiente campanha para salvar de demolição e restaurar essa Obra Prima Arquitetônica que é a grande Estação Ferroviária e Anexos de St PANCRAS em Londres-UK.
Realmente o Poeta mereceu a estátua em tamanho natural, um pouco ampliada 2m de altura, dentro da gigantesca e belíssima Estação, símbolo da Revolução Industrial Inglesa que atingiu seu auge na Era Vitoriana ( 1837 - 1901).
Ficar nessa Estação de St PANCRAS esperando a hora é agradável, por mais horas que sejam, porque "tem muita coisa para se ver" como magistralmente nos descrevem o escrito e as lindas Fotos do Sr. MOACIR PIMENTEL.
Para quem gosta de viajar de dia para apreciar a Natureza de parte da Inglaterra e de França, o Eurostar de alta Velocidade tem dois defeitos, primeiro os bancos são um de costa para o outro o que implica que quem viaja de costas para o sentido do avanço tem sempre uma sensação um pouco estranha, e as cortinas dos janelões abrangem dois bancos o que implica que quem quer dormir fecha, e quem quer ver a paisagem e sol abre, e isso não é bom.
Que o "Grim Reaper" passe sempre longe dos nossos caminhos.
Muito Obrigado e um abração.
Prezado Bortolotto,
ResponderExcluirConcordo que essa estação é o epítome da época vitoriana e que o Sir John merece a homenagem mas às janelinhas dos aviões prefiro os janelões , mesmo encortinados, do Eurostar. Porém no seu ótimo comentário chamou-me a atenção a descrição dos bancos e a sensação de quem viaja " de costas para o sentido do avanço". Porque ao viajar de trem - acredite foram muitos - voltado para trás também experimento a estranha sensação de estar partindo, perdendo alguma coisa. Porém se viajo voltado para o destino o que rola são momentos de descoberta, de antecipação e de chegada. Claro que esquecer o passado é perder a memória de uma riqueza ausente e um conjunto de pistas para navegar melhor o presente. Talvez o segredo seja deixar ir e continuar em frente obedecendo à lei das direções: para o norte é que se olha.
E que nossas estradas sejam loooongas!
Obrigado e abração
1) Logo no primeiro parágrafo, imagino que São Pancras deve ser o famoso São Pancrácio, que as Igrejas Católica e Ortodoxa reverenciam.
ResponderExcluir2)Viveu pouco:289-304. Na Europa tem muitas igrejas dedicadas a ele.
3)É o protetor contra as cãibras !
4)E, gratidão, acabo de receber um poderoso livramento.