São Jorge não estava em casa - O módulo lunar, a Lua e a Terra vistos da escotilha do módulo de comando da Apollo 11 (imagem NASA) |
Heraldo Palmeira
Quando a lua vem
Surgindo cor de prata
E ilumina
O meu pedaço de torrão
O meu ranchinho
Aqui no seio da mata
Não precisa
Nem que acenda o lampião
Era 1965, eu
estava na primeira infância e morava no interior, já com o vício de dormir com
o radinho a pilha na cama. A casa era enorme, os quartos tinham alpendres e eu
podia sair de fininho para olhar a noite. Antes, precisava vencer o medo das
caiporas, que os mais velhos diziam infestar as matas dos arredores fumando
muito e assobiando.
Juro que até
ouvi uns assobios e o cheiro do fumo delas em algumas ocasiões – principalmente
nos dias em que eu fizera traquinagens mais sérias e minha mãe lembrava o quanto
as caiporas desgostavam de crianças desobedientes.
A música
fora gravada com nobreza, violinos alternando camas e pizzicatos. E aqueles
versos eram lindos, ainda mais à noite, pois pareciam aproximar a Lua.
O tempo
andou ligeiro e em 1969 eu já estava na segunda infância, morava na capital e
começava a olhar para as meninas de um jeito que apertava o peito com algo
muito bom de sentir, como se ardesse de doçura, como se parasse o tempo, como
se fosse saudade com anestesia, como se fosse coisa da Lua.
Aquele foi
um ano marcante. Eu havia feito uma viagem com meu pai e ele voltara gripado. O
passar do tempo trouxe o aparecimento de palavras estranhas – icterícia,
hepatite, tumor, pâncreas... As conversas suaves que minha mãe passou a ter
comigo, a sós, foi me ajudando a entender que vinha coisa pior pela frente,
ainda mais quando me dizia que ele estava doente e ia precisar muito da gente.
Eu era
somente um menino buchudo levando a vida rotineira daqueles tempos. A novidade
é que meu pai passou a ficar o dia inteiro em casa, em pijamas. Eu não conhecia
até ali a expressão “licença médica”. E entendia menos ainda uma tal “licença
acompanhante”, que fazia minha mãe também não precisar ir mais para o trabalho.
Era época de
férias escolares do meio do ano. A casa era enorme, agradável, e logo depois do
café nos habituamos a ficar juntos, eu deitado numa rede, meu pai sentado numa
cadeira austríaca, de balanço, com jornais e revistas à mão me contando as
novidades.
Ele preferiu
me ensinar e explicar outros nomes estranhos. Espaço sideral, atmosfera
terrestre, Estados Unidos, Rússia, Guerra Fria, geopolítica, corrida espacial,
NASA, Centro Espacial, foguete, cápsula, satélite, Sputnik, Laika, Vostok 1,
Yuri Gagarin, cosmonauta, astronauta – cheguei a sonhar em ser um! –, Mercury,
Gemini, Apollo, Saturno V, Columbia, Eagle, Módulo de Comando e Serviço, Módulo
Lunar, computadores, cérebro eletrônico, alunissagem, gravidade zero...
Ele era um
homem muito culto, não teve dificuldade para virar um repórter espetacular da
viagem do homem à Lua para mim. Exultava, se emocionava, me encantava. Em pouco
tempo, Neil Armstrong, Edwin Aldrin e Michael Collins eram nomes familiares.
– Papai,
eles vão encontrar São Jorge? O Dragão não vai matá-los?
Lua de São Jorge
Lua deslumbrante
Azul verdejante
Cauda de pavão
Lua de São Jorge
Cheia, branca e inteira
Oh, minha bandeira
Solta na amplidão
Lua de São Jorge
Lua brasileira
Lua do meu coração
Finalmente,
a gente ia ter o primeiro encontro do homem com o céu. Ora, eu tinha um anjo da
guarda e iria finalmente saber qual o caminho para conhecê-lo!
Ciente da encrenca
que eu estava criando, ele me tranquilizava, compreensivo. Dizia que tudo
estava combinado e que o santo e seu dragão talvez nem estivessem lá durante a
visita.
Ele
transformou aquela aventura extraordinária em episódios diários, como uma série
retirada dos jornais e revistas. Foi a maneira generosa que ele encontrou para
me distrair do perigo que nos rondava, instalado no corpo que já ficava mais
magro.
Quando a
viagem começou, foram dias sensacionais. Enfim, a Apollo 11, lançada ao espaço
pelos foguetes Saturno V cuspindo fogo, estava levando o homem à Lua. Na
véspera do desembarque, eu me preocupei porque os astronautas estavam voando
pelo famoso “lado escuro”. Ele me disse que não havia problema, que os
computadores garantiam um voo seguro. E até me contou que o módulo lunar
pousaria no Mar da Tranquilidade, antecipando que não havia água nele.
No dia da
alunissagem ele me contou um segredo, falando baixinho, em confiança:
– São Jorge
conversou com Deus e acharam melhor deixar os astronautas sozinhos na Lua.
Assim, eles vão ficar mais à vontade para trabalhar. Também pensaram que o
dragão poderia se assustar com a chegada da nave e reagir mal.
Além do
Dragão de São Jorge, também senti muito medo por saber que a nave tinha outra
menor dento dela, e que apenas Armstrong e Aldrin desceriam na Lua. A minha
grande questão era o fato de Collins ficar voando sozinho ao redor. E se eles
se perdessem?
A Lua
Quando ela roda
É Nova
Crescente ou Meia
A Lua
É Cheia
E quando ela roda
Minguante e Meia
Depois é Lua novamente
Hoje,
imagino que todo mundo tinha essa mesma preocupação, pois tudo naquilo era a
primeira vez, apenas três homens e uma montanha de metais soltos no espaço
sideral. Um problema, um erro qualquer e não sobraria qualquer vestígio.
No processo
de alunissagem, o astronauta Charlie Duke acompanhava atentamente os painéis de
instrumentos no Centro de Controle, em Houston. Era a única pessoa autorizada a
manter comunicação com Armstrong e Aldrin. E ele tomou o microfone:
– Eagle,
Houston. Se vocês receberem, têm sinal verde para a descida.
Voando 80
quilômetros acima, Michael Collins também recebeu a mensagem límpida e clara e
todos ouviram a voz de Armstrong falar “Roger”, sinal de que também recebera.
A partir
dali, o astronauta Deke Slayton assumiu o lugar de Duke na comunicação com a
cápsula, passou a estudar os monitores de situação e teria a missão de dar
conselhos técnicos e dizer palavras tranquilizadoras aos dois colegas na Eagle.
A nave
continuava descendo suavemente, enquanto a Terra mantinha a respiração
sintonizada nos aparelhos de televisão e rádio. Assim que os instrumentos de
navegação informassem que estavam a 309 quilômetros do solo lunar, Armstrong e
Aldrin acionariam o sistema de desaceleração e teria início a alunissagem.
Eu estava
morrendo de medo, mas ter meu pai ali ao lado me transformava num destemido
explorador do espaço. Éramos nós dois pilotando a nave dos sonhos. Confesso que
me veio a dúvida se a lua era de militares ou de bailarinos, se era certo
incomodar São Jorge e o Dragão, se ela não deveria ser apenas dos apaixonados.
Mas, agora, era tarde demais, faltava pouco. E eu também queria estar lá com
ele.
O céu de Ícaro
Tem mais poesia
Que o de Galileu
E lendo teus bilhetes
Eu lembro do que fiz
Querendo ver o mais distante
E sem saber voar
Desprezando as asas
Que você me deu
Tendo a lua
Aquela gravidade
Aonde o homem flutua
Merecia a visita
Não de militares
Mas de bailarinos
E de você e eu
Os
computadores da Eagle registraram um aumento de potência pela grande atividade
de processamento de dados que o momento exigia, a ponto de gerar chamas. A
cápsula começou a balançar de um lado para o outro com violência, a
desaceleração devolvia a sensação de gravidade com muita intensidade e os dois
homens sorriam felizes. A hora estava chegando.
Quando
ficaram a apenas 1.800 metros do solo lunar, soou insistentemente um alarme no
programa, informando que os computadores estavam sobrecarregados. A luz amarela
não parava de piscar na cara dos astronautas. Era a denominada sobrecarga
executiva, o sistema estava fazendo exatamente o previsto. Avaliando,
inclusive, a possibilidade de abortar o pouso e iniciar o retorno para o Módulo
de Comando.
Já estavam a
apenas 1.200 metros e Charlie Duke voltou ao microfone:
– Eagle,
sinal verde para o pouso.
Quando
faltavam apenas 400 metros para a superfície da Lua, Armstrong digitou
“Prosseguir” no teclado, entrando na fase final da descida. Ele e Aldrin
começaram a analisar o solo e perceberam que havia algo errado, ali não era
Home Plate, o local programado para o pouso.
Na
sobrecarga de processamento de dados, possivelmente o plano de voo sofrera
alteração e eles haviam ultrapassado 6,5 quilômetros o local previsto para o
pouso. O sistema começou a levá-los novamente para a rota, mas não havia
combustível suficiente para isso. Naquela situação, qualquer segundo faria
diferença e a única opção era pousar imediatamente, pois o vácuo lunar não
permitiria planar.
Neil
Armstrong teve de assumir o controle manual e pilotar a nave. O silêncio no
centro de controle em Houston era absoluto, cortado apenas pelas vozes que
vinham da Lua. Os técnicos não podiam fazer mais nada para tentar ajudar a
operar equipamentos que estavam a 400 mil quilômetros de distância.
Não havia
lugar para pousar, tudo estava cercado por rochas e pedras enormes e crateras
mortais. Armstrong desacelerou descida da nave de seis para 2,7 metros por
segundo, restava combustível para 90 segundos.
Entre chamas
e equilibrando-se nos trancos provocados pelos jatos de estabilização para
compensar os balanços e ajustar o pouso, o comandante da missão se manteve
calmo e, com precisão cirúrgica, fez a mira para o pouso. Restava combustível
para apenas 60 segundos e a descida continuou. Faltando 15 metros, não havia
qualquer margem para erro. Um pouco mais, 5 metros... E soou em Houston a
narração de Aldrin:
– Estamos
levantando poeira!... Luz de contato. Ok, motor parado. Motor de descida
desligado.
O pouso fora
tão perfeito e suave, que ele reviu todos os sinais disponíveis nos painéis. As
quatro luzes externas acesas nas quatro plataformas redondas de pouso da nave
lhe deram certeza de que eram os primeiros humanos a estar naquele lugar.
Domingo, 20
de julho de 1969, 17h17m42 (horário de Brasília), a voz de Armstrong soou tranquila
no grande salão de controle da NASA:
– Houston,
aqui é a Base da Tranquilidade. A Eagle pousou!
Depois da
gritaria geral, Charlie Duke tomou mais uma vez o microfone:
– Roger,
Tranquilidade. Imitamos vocês no solo. Aqui há um monte de caras que quase
morreram sufocados. Já voltamos a respirar. Muito obrigado.
Os dois
astronautas deram-se as mãos, sorridentes, ouvindo a comemoração que chegava da
Terra pelos fones de ouvido. De pé, deram-se tapas nas costas, emocionados.
Mais
adiante, outro grande momento: a abertura da porta, a pequena escada, a descida
lenta de Armstrong, a fabulosa Hasselblad 500 EL/M com “Lente Lua” Zeiss Biogon
5.6/60º e filme Kodak – que também desenvolveu um filme especial para gravar
imagens da chegada.
Vencidos os
poucos degraus, o ápice da humanidade: o primeiro passo no solo lunar, a marca
da pegada como uma imagem eterna e uma frase definitiva do homem que mereceu
tamanha honraria:
– Um pequeno
passo para o homem, mas um grande salto para a humanidade.
Poucos dias
depois, assistimos a cápsula cair suavemente nas águas do Pacífico sob três
enormes paraquedas, a chegada e saudação dos mergulhadores pelas escotilhas e
do helicóptero militar de resgate.
Ele e eu nos
olhamos satisfeitos. Missão cumprida! Ainda tivemos mais quinze meses juntos e
ele se foi. Não sei se visitou a Lua a caminho do céu. Tomara tenha podido.
Caminhando pela estrada
Eu olho em volta
E só vejo pegadas
Mas não são as suas
Eu sei, eu sei, eu sei
O vento faz
Eu lembrar você
Procuro encontrar
Não sei onde está
Você, você, você
Trechos de:
Sinfonia da mata (Adelino Moreira)
A Lua (Renato Rocha)
Lua de São Jorge (Caetano Veloso)
Tendo a Lua (Herbert Vianna)
A Lua e eu (Cassiano-Paulo
Zdanowski)
Prezado Autor Sr. HERALDO PALMEIRA,
ResponderExcluirBelíssima Crônica desse Escritor maravilhoso que é o Sr. HERALDO PALMEIRA rememorando essa epopeia espetacular que foi a chegada do Homem à Lua e seu retorno a Terra com sucesso em 1969, agora completando exatamente 50 anos.
Em idade de Aluno do Secundário, junto com sua Família, especialmente seu Culto e Ilustre Pai, que infelizmente convalescia de grave doença mas que se conservou lúcido até o fim dois anos após a chegada do Homem à Lua, mesclando a Poesia da Lua onde moravam São Jorge montado em forte cavalo de combate, o Dragão, e a medida que o Autor entrava na adolescência, a lua romântica dos Namorados, com as explicações técnicas que seu Pai lhe transmitia das complexas operações de ida e de volta dos Astronautas.
Assim com Poesia e Ciência o Autor nos brinda com uma belíssima recapitulação do Feito.
Parabéns e um Abração.
Prezado Flávio,
ExcluirMuito obrigado por palavras tão amplas. sim, aquilo foi mesmo uma grande epopeia humana que provocou na minha geração um sentido de orgulho e uma quebra na forma romântica de entender a Lua. Abraço.
Heraldo,
ResponderExcluirTão lindo, tão terno, tão triste feliz!
Que mando um Fernando Pessoa
"Tão cedo passa tudo quanto passa!
Morre tão jovem ante os deuses quanto
Morre! Tudo é tão pouco!
Nada se sabe, tudo se imagina.
Circunda-te de rosas, ama, bebe
E cala. O mais é nada."
Até muitos mais.
Mestre Heraldo,
ExcluirHá textos que são tão bonitos e exatos, tão informativos e poéticos, tão bem escritos e com tanta emoção "tremeluzindo" nas pretinhas que nos deixam com um nó no gogó e sem palavras na ponta dos dedos. Dizer mais o quê se você já disse tudo? Só me resta agradecer-lhe e aplaudir de pé essa sua inesquecível viagem à lua.
Abração
Ana,
ExcluirNão há como não ver poesia numa Lua daquelas, sendo conquistada por nossa pretensão de entender o Universo. Por isso, só lendo Pessoa. Até muito mais.
Caríssimo,
ExcluirEu fiquei sem saber direito onde era o espaço para lhe responder e agora resolvi ir por aqui mesmo. Desculpe meu atraso e minha sabida ignorância digital.
A aventura do homem na Lua é algo que me emociona, por tudo que escrevi no texto. As descobertas e a lenta despedida do meu pai andando a par e passo na minha vida. Talvez, ver o homem chegando na Lua tenha me permitido acreditar ainda mais que podemos chegar a outros lugares que não conhecemos, onde talvez ele esteja.
No mais, sempre lhe agradecer por tudo, por tantas palavras generosas e, inclusive, por ter me trazido para cá. Abração.
Só poetas pra misturar a alegria e a tristeza !
ResponderExcluirE encantar nos com seu texto Heraldo
Lembranças misturadas
Lembrei da Cora Coralina
“ Não sei...se a vida é curta ou longa demais para nós, mas sei que nada do que vivemos tem sentido, se não tocamos o coração das pessoas “
Obrigada e um abraço
Lea,
ExcluirObrigado pela referência, mas sou apenas um escrevinhador de lembranças. Ainda bem que vivi um tempo com muitas histórias fantásticas e que mantive muitas delas na memória. Como a visita que fiz a Goiás Velho e a casa majestosa e simples de Cora Coralina. Abraço.
Beleza de post, Heraldo, que me levou de volta a um fim de tarde, em dezembro de sessenta e oito, em que ouvi no rádio a notícia de que três astronautas americanos tinham decolado pela primeira vez em direção à Lua.
ResponderExcluirNaquela hora mágica em que já não era tarde mas ainda não era noite, corri para fora de casa e vi, naquele azul profundo orlado de vermelho, a Lua intensamente iluminada e Vênus, abaixo dela, como um farol brilhante a mostrar o caminho.
Fiquei por muito tempo com o olhar perdido naquela imagem, enquanto minha alma percebia que afinal era mesmo verdade, que em algum ponto daquele céu imenso três homens, confiando suas vidas a pouco mais do que uma casquinha de aço que os separava do frio intenso e do vácuo do espaço, já iam muito mais longe do qualquer um já tivesse ido, e ainda iriam muito mais longe ainda, dar a volta na Lua antes de regressar.
Nunca vou me esquecer do maravilhamento que me enchia a alma e o coração. Maior até do que o de, noutra noite muitos meses depois, ver na televisão da casa dos pais da Ana o primeiro passo que foi dado na Lua.
Muito obrigado pela lembrança lindamente escrita, onde o coração com certeza guiou os dedos em cada traço da sua Bic azul. Tenho certeza de que o seu pai conseguiu dar um jeitinho de parar ali, ainda que um bocadinho, para respirar fundo durante a subida.
Um abraço do Mano
Mano,
ExcluirSorte a nossa de testemunhar ao vivo uma aventura daquele tamanho, desde os voos anteriores das Apollo até a marca da primeira botina de astronauta no solo lunar. Sim, era mesmo um maravilhamento!
O mesmo maravilhamento, agora empoeirado pelo tempo, mas bem guardado o suficiente para gastar tinta da Bic azul. Sim, algo me diz que meu pai até bateu um papo com São Jorge a caminho do céu. Abração.
1)Cronista inspirado,Heraldo, muito bom.
ResponderExcluir2)Desculpem os meus comentários, mas eu sempre arranjo uma forma de fazer uma leitura budista:
3)Lembro que a Lua é muito importante no calendário búdico, visto que o Buda nasceu na Lua Cheia, atingiu o que nós chamamos de iluminação em outra Lua Cheia, quando tinha 35 anos e faleceu aos 80 em uma Lua Cheia.
4) Já conversei com a Lua e já fiz pedidos a ela, muito bom, obtive respostas... acredite quem quiser...