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Acervo pessoal. Francisco é o terceiro da esquerda para a direita. |
Francisco
Bendl
Viver é descobrir-se diariamente.
Cada dia traz uma lição nova,
experiências diferentes, e vamos montando o nosso caleidoscópio da existência.
Mesmo as viagens de passeio ou turismo
ou negócios ou por necessidade ou por serviço, a gente descobre algo
inimaginável, jamais pensado, e que nos surpreende.
Ao dar baixa no Exército depois de
quatro anos servindo a Pátria, na década de sessenta, decidi que viajar seria
um trabalho onde eu ganharia mais, pois casado recentemente e a esposa à espera
do primeiro filho, o meu soldo como Cabo da Polícia do Exército era justo, eu
queria propiciar algo mais do que uma vida segura, eu queria conforto, carro,
casa própria, que a minha mulher tivesse aquilo que quisesse!
Após dez anos viajando pelos estados
do RS, SC, PR, SP, RJ, percorrendo mais de cem mil quilômetros por ano (!!),
concluí que eu não ficaria rico ou tampouco obteria a qualidade de vida que eu
imaginara para mim e família – nessas alturas tínhamos três filhos-, porém eu
conseguia apenas sustentá-los condignamente.
Em contrapartida, a minha experiência
como vendedor-viajante, as viagens constantes e carros sendo trocados a cada
ano, me deixaram achando que eu era o tal, que eu já vira de tudo, que não
precisava mais ver nada – aquelas bobagens que se abatem sobre o adulto jovem,
que se julga conhecedor da vida.
Mas, enquanto a maioria dos meus
amigos gostava de pescar, alegando ser uma terapia, descanso, teste de
paciência, acampamentos à beira-rio ou em alguma casa na orla marítima, comendo
churrasco e bebendo cerveja aos fins de semanas, eu ficava em casa, cansado das
idas e vindas semanais e perto da mulher e filhos.
Na condição de gerente de uma empresa
nacional poderosa, eu me defrontava com compradores que eram perdidamente
apaixonados pela pesca!
Eu não poderia dizer o mesmo.
Mas, percebi que a minha função também
tinha o componente “social”, de ser atencioso com um ou outro cliente além do
horário de expediente em dias da semana.
Eu precisava ser mais observador quanto
aos seus gostos e preferências, e tirar um certo proveito de forma positiva.
Havia um comprador que me adquiria
carretas – assim mesmo, carretas de três eixos – de mercadorias a cada quinze
dias, pois a indústria que eu fornecia o material era a maior da... América
Latina!
Logo, eu que o atendia e não o vendedor, sendo que eu teria de sair do meu
conforto para dar-lhe uma atenção especial, tanto pela sua função quanto para manter
as vendas da empresa que eu gerenciava no Sul.
O cara era “fissurado” em pescaria,
repito.
A sua empresa era no interior, longe
de grandes rios e mais distante ainda do mar.
Mais o comprador dava banho em
minhoca, que pescar alguma espécie de peixe comível, que se pudesse fritá-lo.
Um belo dia, após uma venda
espetacular, a maior que a minha indústria havia vendido na sua história (!!),
resolvi atender-lhe o desejo, que seria pescar em uma praia de mar.
Não uma praia qualquer, mas em um dos
santuários gaúchos de preservação ambiental e ecológica, denominado Lagoa do
Peixe!
O local que eu vira nas revistas e de
relatos de quem já havia pescado na lagoa era de um paraíso, a natureza ainda
intacta, e longe dos curiosos.
Não havia estrada.
Só se chegava à localidade pela praia.
Se fosse pelo asfalto, teríamos de ir
até Mostardas e andar de carro por dentro da Lagoa dos Patos – na verdade
laguna –, com a água batendo na porta do carro e adivinhando o caminho para não
afundar, de modo a se chegar ao éden após cinco horas de viagem, imaginando que
o carro também poderia ser anfíbio ou, melhor, um submarino, lá pelas tantas!
Logo, a decisão do grupo de
aventureiros de cinco corajosos desbravadores foi a ida pela praia, a
traiçoeira costa do litoral gaúcho, conhecida como “cemitério de navios”, em
razão do mar revolto e enormes tempestades, cuja maré subia até as dunas,
distantes cerca de duzentos metros da beira do mar (a foto mostra nitidamente o
quanto eu era senhor da natureza, um tarzã gaúcho, que se sentia poderoso,
invencível)!!
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Acervo pessoal |
A última praia que existe no litoral
gaúcho, antes de São José do Norte é Quintão.
A gente sai de Porto Alegre por
Viamão, depois Pinhal, e vem Quintão, cento e quarenta quilômetros
aproximadamente por asfalto.
Desta praia até a Lagoa do Peixe são
MAIS DE CENTO E SESSENTA QUILÔMETROS DE AREIA E MAR!!!
Saliento vários perigos:
Os pequenos arroios que são feitos
pela água da chuva escorrendo da mata, que formam degraus de até um metro.
Quando se percebe pode-se estar em cima, e aí é tarde, o carro vai de bico para
o valo;
Quando a onda sobe, deve-se esperá-la
descer, caso contrário a correnteza quase tão forte quanto subiu, pode apagar o
motor do carro, então adeus veículo;
Jamais andar pela beira da praia,
apesar de ser melhor que asfalto. As ondas não são iguais, e uma delas pode
avançar e bater no carro com força, apagando o motor e afundando o veículo
quase que imediatamente. A revista Quatro Rodas perdeu uma Parati – reportagem
com fotos – dessa maneira, percorrendo esse trajeto pela beira do mar, até vir
uma onda e acabar com o passeio;
JAMAIS, em circunstância alguma,
DEVE-SE VIAJAR PELA PRAIA À NOITE, ainda mais quando não se conhece o trecho!!!
Os olhos se embaralham; a paisagem é
sempre a mesma, areia; menos ainda se percebe os arroios; a maré pode chegar no
carro sem que se dê conta; não se sabe onde entrar quando se chega no destino
programado (podem acreditar quando falo, porque eu, desde pequeno, dominava o
mar)!
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Acervo pessoal |
A bordo de uma Kombi cabine dupla,
movida a óleo diesel, porém com interruptor deixando a ventoinha que
refrigerava o motor permanentemente ligada, com mais de trezentos quilos de
tralha, entre câmara de gelo, barraca, alimentos, bebidas, lampiões, baterias,
roupas, toalhas, chapéus, máquinas de fotografia, EU DE MOTORISTA, que vinha
conduzindo o veículo emprestado de uma fábrica para esta legítima aventura
desde a serra gaúcha, com saída às seis da manhã, cheguei em Quintão ao meio
dia!
Calculei uma média de velocidade na
praia em torno de trinta quilômetros por hora.
Se houvesse algum problema chegaríamos
perto das sete da noite, onde no RS à época em que fomos o sol ainda está alto,
pondo-se perto das nove da noite!
Enchi o tanque de diesel, mais um
recipiente de cinquenta litros para se ter combustível ao voltar, claro, e nos
pusemos a caminho para a grande aventura e rumo ao desconhecido!
Cerca de vinte, trinta km depois, o
fabuloso Farol da Solidão, imponente, majestoso, iluminando os caminhos do mar
para navios não se aproximarem da costa (não me peçam por fotos, explico: não
se podia perder tempo, pois havia o receio de se pegar noite na praia,
dificultando sobremaneira chegar na Lagoa, então tínhamos de seguir em frente).
Com a viagem avançando, vimos pela
primeira vez o albatroz nacional(!). Não temos esta ave, mas existe o João
Grande. Com um metro e oitenta de envergadura, mais de um metro de altura, a
ave é maravilhosa, típica do RS, e que precisa tomar embalo para voar.
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João Grande (imagem Wikimedia Commons) |
Uma ou duas horas depois, encontramos
na beira da praia duas imensas circunferências de vidro, cobertas por uma rede
grossa, como se fossem uma boia. De tão grandes, não houve como trazer uma,
pelo menos, pois ocuparia muito espaço no carro, e queríamos trazer PEIXES!!!
Como eu previra, muitos arroios, que
me exigiam atenção permanente.
Aviso aos navegantes:
Muito andei de caminhão pela praia,
nos antigos Ford F-600, a gasolina!!!
Aprendi que não se pode andar na areia
com o carro com pouco giro de motor, pois se fica atolado, ou seja, muita
marcha é feita, dezenas de reduzidas, e sem medo de se chegar no máximo, para
depois trocar por uma mais alta, mas sempre atento às mudanças para marchas
mais baixas, de mais força e menos velocidade.
Apostei, logicamente, que eu não
atolaria a Kombi nenhuma vez neste longo percurso pela praia, em face da minha
experiência.
Portanto, a minha primeira análise
quando entrei na praia foi verificar a altura do mar:
Se estava alto, e perto das dunas ou
baixo, com uma larga faixa de areia antes da água.
Porquê?
Porque com o mar baixo, eu andaria por
areia solta, que segura o veículo, obrigando o motorista a andar sempre com
força, isto é, lento, mas com o carro em marcha adequada, segunda ou terceira, considerando que a Kombi
tinha apenas quatro, e sem medo algum de se colocar primeira mesmo que o motor
gritasse, de modo a não parar nesta ocasião, pois não se sai mais, atola-se.
Mas não me preocupava, porque, como podem ver, desde a tenra idade eu era um
piloto extraordinário e motorista inigualável!!
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Acervo pessoal |
O mar estava baixo, sinal de que eu
teria de gastar mais combustível que eu imaginara, pois teria de andar em
terceira e segunda na maioria do percurso.
Mas NÃO ATOLEI UMA VEZ SEQUER!!
Continuando:
Após mais de cem quilômetros rodados,
a vista cansada, os braços doendo de tantas mudanças de câmbio, perna esquerda
reclamando da quantidade de embreagens praticadas, o primeiro grande impacto,
que nos deixou literalmente de boca aberta.
Escrevi acima, que o litoral gaúcho é
denominado de “cemitério de navios”.
Pois estava à nossa frente, a cerca de
cem metros da beira do mar, um esqueleto de um navio de porte!
Apareciam duas colunas que partiam do
convés, como se fossem do próprio mar, uma beleza e imagem ao mesmo tempo
triste, pois imaginamos o desespero dos marinheiros quando o navio encalhou, e
no meio de uma tempestade!
Mais adiante, outra carcaça de um
navio menor, mais perto da praia.
Mais um pouco, e nos demos de frente
com enormes buracos na beira da praia!
Largos, profundos, cerca de um metro e
meio, pois a água do mar invadia rápido, um pescador de... siri!!!
A carne é uma especiaria, que se faz
pastel e se come rezando!
Mas, o bicho tem tão pouca “carne”,
que se precisa mais de mil siris para dar meio kg desta saborosa iguaria!
Em frente ao mar, cem metros em
direção às dunas, protegida por um desses morros de areia, a casa do pescador
ou caçador de siri, na verdade um casebre.
Levou-nos até ela para nos vender o
que havia conseguido nos últimos dois dias.
Se, por fora, o “lar” era modesto,
dentro só havia uma geladeira, mesa e cama.
NO ENTANTO, o esperto caçador/pescador
enquanto tentava encontrar siri, o cara achou UMA SEREIA!!!
A mulher do moço era qualquer coisa de
se jogar no mar e segui-la até Netuno!
A mim pareceu que era a última
sobrevivente da sonhada Atlântida, pois a mulher era mesmo um sonho, e picante!!!
Bom, compramos o que ele tinha de
siri, e tratamos de continuar a nossa viagem.
Os comentários foram os mais variados
e exóticos possíveis, evidente, após a visão daquela sereia e de que elas
existiam, verdadeiramente!
E, chegamos a conclusão - hoje quase
impossível -, de que o amor é mais importante que dinheiro, carro, posição
social, nada desse mundo metido a desenvolvido.
Bastava o cara conseguir alimento, ter
uma cama, geladeira e mesa, uma choupana à beira do mar e, eis a felicidade!
Uma mulheraça ao lado para se
descobrir os segredos do sexo, sem enormes espaços para trabalhar, pagar
contas, pedir empréstimos, financiamentos, a natureza em contato íntimo com o
casal e, ele e ela, fazendo parte deste espetáculo de amor a todo o instante e
jeito!!!
O paraíso era aqui, e não mais a Lagoa
do Peixe.
O cara deveria ser o Adão da Nova Era
e ela a Eva, maravilhosa.
E com uma vantagem enorme sobre o
casal original:
NÃO HAVIA MACIEIRAS (antes que me
perguntem como que havia esta geladeira, se não tinha luz onde o esperto e
felicíssimo rapaz morava, o eletrodoméstico era a querosene)!!!
No entanto, faltando uns trinta a
quarenta quilômetros para se chegar à lagoa, seis horas da tarde,
aproximadamente, vivemos um momento tão incrível, tão inédito, que foi como a
mesma surpresa de Charlton Heston, no
primeiro filme O Planeta dos Macacos quando, no fim, ele com a moça na garupa
do cavalo fugindo pela praia, dá de frente com a estátua da Liberdade enterrada
até o peito, lembram?!
Foi um impacto para a plateia.
Pois bem, no local onde se colocam os
guarda-sóis, perto da praia, onde a maioria das pessoas se instala quando vai
tomar um banho de mar e leva os filhos, ENCALHADO NO MESMO CAMINHO POR ONDE EU
TRAFEGARIA COM A KOMBI, um monumental barco-pesqueiro.
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Acervo pessoal |
Sou o primeiro, da direita para a
esquerda ou o último da esquerda para a direita.
Imaginamos várias situações:
A tempestade enorme que este navio
enfrentou para encalhar na praia;
O terror da tripulação;
A força da correnteza que jogou o
barco na praia, onde as pessoas ficam, os carros trafegam...
Um espetáculo deslumbrante e ao mesmo
tempo apavorante!
E se um toró desses acontece conosco
na lagoa, que desemboca no mar?
E se acontecer à noite, tornando a
nossa saída mais ainda problemática??!!
Afastamos nossos pensamentos ruins, e
seguimos em frente depois de algumas fotos, pois vá que esse navio não esteja
mais na praia no retorno???!!!
Sabe-se lá!!!!
Bom, encurtando a história:
Chegamos às sete horas da noite;
Encontramos o local da entrada
facilmente;
Havia umas casas de pescadores
residentes no local;
Uma delas, vazia, nos alugaram para a
noite de quinta, sexta e sábado inteiros e sairíamos no domingo cedo da manhã.
Havia na casa de um deles, MAIS DE
DUZENTOS QUILOS DE CAMARÃO, armazenados para vender na cidade de Rio Grande,
outros cento e sessenta quilômetros adiante, rumo ao Sul.
À noite foi então coroada com um
macarrão e camarão, e comemos até onde foi possível.
Na sexta e sábado se pescou peixe-rei,
sardinha, corvinas, o delicioso e belo papa-terra.
No domingo compramos cem quilos de
camarão, e retornamos para casa!
A viagem foi mais fácil, pois eu
conhecia o caminho e as manhas do mar da região.
O feliz caçador/pescador de siri não
estava na praia, e não ousamos bater na sua casa e importuná-lo indevidamente,
consideramos.
Ao relatarmos a aventura, o que
tínhamos visto, as emoções pelas paisagens inéditas, aves, carcaças de navios,
até mesmo o exemplo da verdadeira felicidade com a situação do rapaz vivendo
com uma sereia sem maiores compromissos, ouvimos de um “invejoso”, que exagerávamos,
que estávamos fazendo tempestade em copo d’água!
Foi quando o comprador, que jamais
tivera tantas emoções na sua vida de cinquenta anos de idade, exclamou:
-
Bah, che, tempestade em copo d’água é pouco; fizemos dilúvio em tampinha de
xarope!