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23/12/2017

Os Quatro Pontos Cardeais e Mais Dois

Rosa dos Ventos de uma carta náutica de Jorge Aguiar (1492) - imagem Wikipédia

Antonio Rocha
É claro que os pontos cardeais são apenas quatro: norte, sul, leste, oeste. E no Budismo, nós acrescentamos mais dois: o Nadir, no centro da Terra e o Zenith (Zen...ith) no alto, no Infinito. São as chamadas seis direções do Universo. Alguns textos sagrados falam em “Dez direções”, porque aí se acrescentam os quatro pontos colaterais: nordeste, sudeste, noroeste, sudoeste. Se acrescentarmos os oito pontos subcolaterais teremos a Rosa dos Ventos, que aprendemos nas aulas de Geografia: nor-nordeste, les-nordeste, les-sudeste, sul-sudeste, sul-sudoeste, oes-sudoeste, oes-noroeste, nor-noroeste.
É a Rosa dos Ventos que aprendemos em Geografia.
Como será que o Buda, no século VI antes de Cristo descobriu isso? Não sei se naquela época já haviam os instrumentos para navegação. Contudo, acreditamos que foi pela sua grande Sabedoria.
Há uma prática budista de reverenciarmos os dezesseis Discípulos Iluminados, que nós chamamos em língua páli (a língua original do Buda), os “Dezesseis Arahants”. Cada um é responsável por uma direção do Universo. Os textos falam nos dezesseis mais dois, que não são referidos, que são o Nadir e Zenith.
Na verdade, essa era uma prática mística do antigo Brahmanismo. Consiste em todo dia pela manhã nos curvarmos, resumidamente, apenas às seis direções: uma reverência para o norte, outra para o sul, para o leste, para o oeste, para o nadir e para o zenith. A reverência é uma curvatura da coluna para a frente e aos mãos, palma em palma na altura do coração, como fazem os asiáticos.
Não são todos os budistas que fazem esta bela prática. Eu faço, todo dia pela manhã, assim que acordo e antes de dormir, diante de uma imagem de Buda, pode ser também diante da imagem de um santo católico, diante de um vaso de planta, diante de um quadro artístico, uma pintura, uma gravura etc.
O simbolismo é que, nesse instante, estamos dando bom dia a todos os seres vivos do Universo nessas direções: seres humanos, animais, vegetais, minerais, seres espirituais até o Infinito. Não faço de forma maquinal, mecânica, como um autômato, como um robô, mas consciente de que nessas direções temos seres vivos que, belo dia, também serão Buda, santos, iluminados etc. Mesmo os habitantes das regiões infernais recebem a reverência, belo dia, não importa quando, converter-se-ão.
Ninguém é obrigado a acreditar, nem a praticar, mas eu particularmente gosto muito, pois aprendi esse mini-ritual com um monge japonês zen-budista, em 1974, que estava no Rio transmitindo ensinamentos. De acordo com a Budologia, a teologia búdica, os seres nessas direções também nos respondem com um amigável bom dia e assim ficamos protegidos ao longo do dia.
Alguém poderá perguntar, mas e o centro da terra, tem vidas? E o firmamento, o infinito tem vidas? Respondemos sim. Na terra moram minhocas, insetos visíveis e invisíveis, além disso afirmamos que a Terra é um ser vivo, respira e tem os seres invisíveis que habitam as raízes da árvores, o subsolo etc. E no alto, no Zenith temos os anjos, arcanjos, querubins, serafins. Não tem problema que digam que é uma infantilidade, uma bobagem.
Uma vez ensinei esta prática a um conceituado médico psiquiatra e ele gostou muito. Disse que teve a sensação de “pertencimento” de união com o Todo, com o Cosmos e os seus muitos nomes.
Tenho várias edições e traduções do Evangelho de Buda e em todas tem o ensinamento do citado ritual. Repito, é para ser feito de forma concentrada (com-centrada). Por que várias edições e traduções? É o que em Linguística e nos Estudos Literários nos chamamos de “Ecdótica”, para fazer uma Leitura Comparada.
Buda afirmou que, olhando (se não puder se curvar) para o Leste, onde nasceu o sol, onde brota a luz, estamos saudando os nossos pais; aos professores e mestres, virando-se para o Sul; reverenciamos o cônjuge e os filhos olhando para o Oeste; cumprimentamos os amigos, parentes, antepassados e a todos os seres olhando para o Norte; aos humildes, aos pobres, aos nossos empregados, funcionários inclinando-se para o Centro da Terra, o chão, a base; e aos santos como já falei acima, aos bem-aventurados de todas as religiões contemplando o Alto, o Céu.
Assim fazendo estaremos protegidos em todas as seis direções. E, digamos, se acontecer algo triste vindo de uma dessas direções? Devemos compreender que é uma queima de carma negativo, então é libertação.
A Budologia informa também que em cada um dos pontos cardeais, polos geradores de Energia que sustentam o planeta, existem “Grandes Reis”, na verdade, poderosíssimos Espíritos de Luz que gostam desta cerimônia diária e nos protegem.
Tenho agido assim e tem sido muito bom e divertido! Me sinto praticante de uma cerimônia que começou lá na Antiguidade, mais ou menos, há uns cinco mil anos, nos primórdios da Civilização Indiana.


21/12/2017

Vento, areia e estrelas

Uma das últimas fotografias de Saint-Exupéry (fotografia de John Philips)

Wilson Baptista Junior
Wind, Sand and Stars (Vento, areia e estrelas) foi o título que os editores americanos encontraram para batizar o livro Terre des Hommes (Terra dos Homens) do escritor e aviador francês Antoine de Saint-Exupéry, na sua publicação em 1939.
Foi esse livro, na bela tradução do francês de Rubem Braga, que li quando era menino e foi responsável pela minha paixão da vida inteira pela aviação.
Mas muito mais do que de aviação falavam nas entrelinhas os livros de Saint-Ex (como o chamavam seus amigos) à medida em que fui lendo, crescendo, relendo e compreendendo. E até hoje, quando releio qualquer um deles, alguma coisa de novo se apresenta ao meu espírito.
Saint-Exupéry ficou conhecido no Brasil principalmente como um autor para crianças, por causa de seu livro O Pequeno Príncipe, um enorme sucesso mundial de publicação e que, por décadas, era citado por todas as nossas candidatas a miss quando perguntadas sobre seu livro preferido.
O Pequeno Príncipe, que parte de um acontecimento real, quando ele e seu mecânico Prévot decolaram à noite de Bengazi no seu avião Caudron Simoun (o vento do deserto) numa etapa de um voo para tentar bater o recorde de velocidade entre Paris e Saigon, e caíram depois de quatro horas e pouco de voo, enganados pelas más condições de tempo, num platô no deserto do Saara, perdendo no acidente a água e a comida, e de onde foram salvos três dias depois por uma caravana de camelos, a par de ser uma encantadora história para as crianças é (dizem alguns, e eu acredito) uma bela carta de amor do autor para sua mulher Consuelo, escrita quando andavam estremecidos.
O Caudron Simoun caído no deserto (fotografia Bureau d'Archives des Accidents d'Avions)

Eu acho Saint-Exupéry um autor difícil de traduzir. Isso porque ele escrevia e reescrevia suas páginas até que cada palavra nelas fosse a única que poderia estar ali naquele lugar. Com seu peso e seu sentido perfeitos. Como ele escreveu, no seu Terre de Hommes:
Il semble que la perfection soit atteinte non quand il n’y a plus rien à ajouter, mais quand il n’y a plus rien à retrancher.
(Parece que se atinge a perfeição, não quando não há mais nada a acrescentar, mas quando não há mais nada a cortar)
Não dá para mudar nada numa página dele. E ele nunca escreveu nada, ficção ou não ficção, que não estivesse solidamente ancorado na sua experiência de vida. De uma vida em que ele sempre esteve de peito aberto na linha de frente de tudo aquilo em que participou. Era um intelectual, um estudioso, mas fundamentalmente um homem de ação.
Embora seus estilos sejam muito diferentes, ele partilhava com Hemingway, outro de meus autores preferidos, a vida de ação e o fino burilamento por trás de uma escrita aparentemente fácil.
A história de vida do autor é tão interessante e aventureira quanto seus livros, e por isso permitam-me uma digressão. Depois de contar hoje um pouco de sua vida, numa próxima conversa falarei dos seus livros, que me olham das minhas estantes enquanto escrevo.
Antoine-Jean-Baptiste-Marie-Roger de Saint-Exupéry nasceu em 1900 em Lyon, filho do Conde de Saint-Exupéry, de antiga linhagem de cavalheiros do Limousin, e de sua mulher Marie de Fonscolombe, de linhagem provençal. Perdeu o pai muito cedo, aos quatro anos. Depois de uma infância folgada nos castelos de suas duas avós, estudou num colégio jesuíta até a entrada da França na Primeira Grande Guerra, em 1914, quando sua mãe se mudou para Paris para chefiar uma equipe de enfermeiras. Transferido para outro colégio (dessa vez dos padres maristas) lá ficou até conseguir seu bacharelado (que na França tem um significado diferente daqui, é uma prova difícil que se faz ao final do ensino médio para só depois de aprovado poder tentar a universidade). Mas antes disso, aos doze anos, fez seu primeiro voo (à revelia de sua mãe) como passageiro de um avião. Imaginem o que deve ter sido a sensação, para um menino de doze anos, de voar num daqueles aeroplanos que mais pareciam um papagaio-caixa com um motor, poucos anos depois dos primeiros voos de Santos Dumont e dos irmãos Wright...
Voltando desse voo o garoto escreveu o que é seu primeiro poema conhecido:
“Les ailes frémissaient sous le souffle du soir
Le moteur de son chant berçait l'âme endormie
Le soleil nous frôlait de sa couleur pâle.”
Numa tradução livre:
As asas tremiam ao sopro da tarde
O canto do motor ninava a alma adormecida
O sol nos tocava com sua pálida cor.
Não sabemos qual foi a reação de sua mãe quando ele voltou de seu passeio de bicicleta até o campo de aviação e contou o que tinha feito...
O rapaz Antoine se preparou para ingressar na Escola Naval, onde tirou a mais alta nota em matemática no exame de admissão mas foi reprovado por uma nota baixa justamente na prova de... redação  :)
Depois disso, entrou na Escola de Belas Artes, para estudar arquitetura. Mas antes de completar dois anos foi chamado para o serviço militar e designado para um regimento de aviação, onde ficou como mecânico. Não podia se formar piloto porque não tinha o brevê de piloto civil (não tente entender os regulamentos militares franceses da época...)
Então pagou de seu bolso algumas aulas num aeroclube e, com menos de duas horas de instrução, pegou sem autorização um avião Sopwith e decolou sozinho, pousando miraculosamente pouco depois, inteiro mas com o assoalho da cabine em chamas. Seu comandante no regimento lhe disse: “Você nunca vai se matar num avião, porque se isso fosse acontecer teria sido hoje”...
Depois desse começo pouco auspicioso conseguiu tirar seu brevet e se tornar aluno-piloto militar. Tornou-se piloto de caça, voando até o final do serviço militar.
Quis fazer carreira na aviação militar francesa, mas a família de sua noiva não quis saber disso e ele desistiu. Depois de passar dois anos em trabalhos de escritório, sem vontade nem sucesso, publicou numa revista sua primeira história, L’Aviateur (O Aviador) e pouco depois entrou como piloto na Compagnie Générale d’Entreprises Aeronautiques, que depois se transformou na Aéropostale e mais tarde seria fundida com outras companhias francesas dando origem à atual Air France. A companhia estava começando a abrir as linhas de correio aéreo na França e nas colônias francesas, usando alguns aviões que tinham sobrado da Primeira Guerra Mundial.
Um Breguet 14, um dos primeiros aviões da Aéropostale. Em baixo das asas se veem os compartimentos onde se colocava o correio
 (fotografia www.memoire-aeropostale-com)

Daí em diante sua carreira de piloto (que necessariamente terei que resumir muito) e a de escritor se entrelaçam. Começou levando o correio de Toulouse, no sul da França, a Casablanca, no Marrocos. Aí passou a chefe de escala em Cap Juby, na costa sul do Marrocos, onde tinha o duplo papel de assegurar as relações da empresa francesa com o governo espanhol, que então dominava a região, e de fazer o resgate dos pilotos e aviões forçados a pousar de emergência no deserto e feitos reféns, e às vezes assassinados, pelos chefes árabes hostis.
Durante esse tempo escreveu o romance Courrier Sud (Correio Sul). Do Marrocos Antoine foi para Buenos Aires, de onde a Companhia começava a abrir as linhas da América do Sul, de Natal até a Patagônia, e a ensaiar os primeiros voos noturnos, numa época em que as comunicações por rádio eram rudimentares e o radar e o GPS estavam muito longe de serem inventados.
Durante esse trabalho realizado com seus amigos Jean Mermoz e Henri Guillaumet, dois pilotos que marcaram a história da aviação francesa, Saint-Ex escreveu seu romance Vol de Nuit (Vôo Noturno). E foi em Buenos Aires que ele ficou conhecendo Consuelo, a salvadorenha com que se casaria pouco tempo depois.
Saint-Exupéry (esquerda) e Guillaumet na frente de um avião Laté-28 da Aéropostale
(fotografia 
Collection Musée Air France)

De volta à África, passou a fazer o voo entre a França e a Algéria em hidroaviões, e mais tarde desligou-se da Aéropostale e passou um tempo trabalhando como piloto de provas numa fábrica francesa de aviões em Toulouse.
Em 1934 entrou para a Air France, que tinha incorporado a Aéropostale, como encarregado de voos de estudo e de conferências para divulgar a companhia. No ano seguinte tentou bater o recorde de velocidade Paris-Saigon, e caiu no deserto, o acidente de que falamos atrás. Nos dois anos seguintes, enquanto continuava a abrir linhas na África, encontrou tempo para voar por duas vezes ao front da Guerra Civil Espanhola, como correspondente de guerra para jornais franceses. E um ano depois começou a escrever o que é talvez seu maior livro, Citadelle (Cidadela), a história de um senhor de uma tribo bérbere contada na forma dos ensinamentos do chefe ao seu filho.
Em 1938 partiu para tentar um raid Nova Iorque-Terra do Fogo, novamente em seu Simoun e acompanhado do mecânico Prévot. Numa das etapas, ao decolar da Venezuela, o avião, pesado demais pelo excesso de combustível, caiu deixando-o gravemente ferido com o crânio fraturado, fraturas múltiplas no braço e em estado de coma.
Um mês e meio depois saiu do hospital e foi para Nova Iorque, em convalescência, onde começou a escrever o Terre des Hommes, publicado no início de 1939 e que lhe trouxe a fama como escritor.
No mesmo ano, com a ameaça de guerra, voltou para a França. Pouco depois, a convite de seu amigo Guillaumet, acompanhou-o num voo de teste no Lieutenant de Vaisseau Paris, um hidroavião Latécoère 521 de seis motores que foi o primeiro “jumbo” transatlântico, de Biscarrosse, na França, a Nova Iorque, ida e volta.
O "Lieutenant de Vaisseau Paris" (foto San Diego Air and Space Museum)

No mesmo ano, com a aproximação da guerra, como capitão da reserva, voltou à ativa, recusou ficar em terra nos serviços de informação e assumiu um posto num esquadrão de reconhecimento aéreo a longa distância, Seu antigo chefe na Aéropostale, agora oficial de patente mais alta, querendo poupá-lo, mandou reconduzi-lo à aviação civil, Saint-Éxupéry recusou e o seu esquadrão partiu para a guerra. Com a derrota dos franceses o grupo voou para a Algéria para se reunir aos franceses livres. Antoine foi desmobilizado e no final de 1940 conseguiu viajar para os Estados Unidos, onde se dedicou a escrever Pilote de Guerre (traduzido para o inglês como Flight to Arras – Voo para Arras e um enorme sucesso nos Estados Unidos) e a tentar mobilizar a opinião pública americana em favor da França.
Enquanto tentava voltar para a Algéria para lutar escreveu Le Petit Prince (O Pequeno Príncipe). que ilustrou com suas aquarelas e Lettre à um Otage (Carta a um Refém). Só em maio de 1943 conseguiu se reunir aos seus companheiros. O seu esquadrão tinha sido equipado com os aviões Lockheed F-5B, que eram caças bimotores P-38 Lightning transformados em aviões de reconhecimento equipando-os com motores mais potentes para funcionar em grandes altitudes e retirando as armas e a munição para diminuir o peso e permitir mais velocidade e lugar para as câmaras fotográficas (naquele tempo muito grandes). Nesses aviões desarmados é que as missões de reconhecimento eram realizadas, esperando, um tanto otimistamente, que esse aumento de velocidade os ajudasse a escapar dos caças inimigos que estavam sempre à espreita.
Saint-Exupéry na carlinga de seu P-38 (foto John Philips)

Depois de três meses de voo as autoridades americanas, que achavam que ele, por sua fama, era valioso demais para correr riscos, aproveitaram-se de que a idade máxima regulamentar para pilotar os P-38 era de trinta e cinco anos, proibiram nosso amigo de voar e obrigaram-no a voltar à reserva.
Mas depois de passar vários meses importunando seus superiores ele conseguiu ser chamado por um coronel seu amigo para voar em um esquadrão de bombardeiros, onde o limite de idade era mais dilatado, e assim que voltou à ativa perseguiu o general americano que comandava as operações aéreas no Mediterrâneo até conseguir permissão para voltar ao seu esquadrão de reconhecimento, só que essa permissão veio com a condição de não voar mais do que cinco missões.
Saint-Exupéry em seu P-38 em missão perto da costa da Sardenha (fotografia John Philips)
Como depois de sete missões ele não mostrava sinais de querer parar, o Alto Comando resolveu contar a ele os planos do desembarque na Normandia, porque assim não poderia mais voar para não se arriscar a ser capturado sabendo dos planos altamente secretos. Conseguiu licença para realizar uma derradeira missão antes que fizessem isso, e em 31 de julho de 1944 decolou com seu avião da sua base na Córsega para fotografar Grenoble e Annecy, na França ocupada. Seu avião desapareceu do controle do radar perto da Côte D’Azur, e não se teve mais notícia dele.
Por cinquenta e seis anos não se soube o que aconteceu com Saint-Éxupéry. Até que em 1998 um pescador marselhês apanhou em sua rede uma pulseira de prata gravada com os nomes dele, de sua mulher Consuelo e do seu editor americano. Depois desse achado as buscas foram retomadas e se concentraram nessa região, e afinal mergulhadores encontraram os destroços de um avião, a pouco mais de oitenta metros de profundidade, que em 2004 conseguiram identificar como sendo o P-38 que ele pilotava.
fotografia Musée de lÁir et de l'Espace - Le Bourget

A pulseira e a parte do avião que se conseguiu trazer à superfície estão hoje no Musée de l’Air et de l’Espace de Le Bourget, perto de Paris. Até hoje não se sabe conclusivamente o que aconteceu com o aviador. Nenhum vestígio do seu corpo foi encontrado. Dois diferentes pilotos alemães disseram ter abatido um P-38 naquele dia naquela região, mas os registros da Luftwaffe não confirmam nenhum dos dois. O estado dos destroços encontrados não permitiu identificar furos de bala, nem dizer que eles não existiram. Se Saint-Ex não tiver sido abatido, pode ter tido uma falha de motor, ou ter desmaiado por falta de oxigênio (o voo a grande altitude consumia muito oxigênio, e ele, aos quarenta e quatro anos, precisava de muito mais do que um piloto mais jovem). Talvez nunca venhamos a saber.
Quando penso na última missão de Saint-Ex me lembro das suas palavras no final da sua última carta, recebida por um amigo depois de sua morte:
“A volta é um milagre. Eu conheci a pane, o desmaio por acidente de oxigênio, a perseguição pelos caças e o incêndio em voo. Não me creio muito avaro e me sinto um carpinteiro competente. É a minha única satisfação. E também a de passear, um só avião e sozinho a bordo, por horas e horas por sobre a França, tirando fotografias. Isto sim é estranho (...)
Se eu for abatido, não me lamentarei por ter perdido nada. O formigueiro do futuro me apavora e detesto sua virtude de robôs. Eu, eu fui feito para ser um jardineiro...”


19/12/2017

Um post chamado gratidão



Ana Nunes

Gratidão, palavra linda que roubei do Antonio para colocar palavras soltas sobre pessoas queridas.

Começo pelo Francisco Bendl, famoso Chicão. Não o chamo assim porque gosto de seu nome Francisco.
Grandão, voz de trovão, temperamento de leão. Quem o lê aqui no Conversas não o reconhece lá no blog da Tribuna. Vociferante, malcriado, revolucionário, reacionário, bravo, bravo, bravo. Ataca sem meias palavras e até com palavras feias (rsrs)
Não mexa com ele, é cutucar onça com vara curta.
Aqui, no Conversas, se finge, e como finge, domado pelo Mano. Nada de política! E é doce, gentil, elogiador inveterado, cheio de palavras envaidecedoras. Para todos. Como o Sr. Redator já nos censurou, viramos amigos dissidentes. Gosto disso! Mas ele, sempre que pode, encontra uma brechinha e se entremostra como na Tribuna. Só um pouco. Assim enfurece o Redator mas não pode ser censurado! Muito esperto o gajo. Acho que tem um coração “de tamanho e peso adequados”. Um amante de óperas.

Meu caro Budista Antonio que insiste em agradecer a nós pelo espaço. Mas o blog é do Mano, sou apenas uma participante atrevida. Nem fui convidada!
Antonio nos fala de paz e bondade e perdão. Ensina coisas de budismo que eu nunca saberia sem ele.
E tenta nos tornar mais simples, mais perdoantes e mais felizes. 
Me acolheu atéia no seu budismo generoso. E fiquei muito feliz!
Traz às vezes trabalhos em gravura e bordado da Heloisa, sua mulher. E gosto tanto! São trabalhos cuidadosos e intimistas como só uma gravadora sabe fazer. E gostar de fazer! E outra gravadora admirar, porque sabe da labuta intensa e do risco de dar errado. Gostaria de conhecer mais trabalhos tão bonitos de se ver!
Antonio por aí, professorando, perambulando feliz, sem celular, sem carro, um mínimo de estresse  que disso não se livra ninguém. Uma carinha bem feliz, tranquila, um pouquinho sapeca.

O caríssimo Moacir, tão sedutor que conquistou minha prima de oitenta e dois anos!
Escreve muito e sabe muito. Um sabichão! Sabe de tudo. De arte, de lugares e recantos, de viagens e de encantos.
Fala dos vales e dos verdes, dos temperos e das comidas. E dos pães e dos doces. E fala tão lindamente que a gente sente os aromas escapando do forno e enchendo a casa.
Fala de filmes e faz polêmicas. Mas também faz lágrimas e arrepios.
Conversa sobre arte e nos ensina um montão de coisas.  E desperta os leitores mais incautos para as maravilhas da arte. E conta que quando ela nos fala em perguntas, em incômodos e pensamentos do querer saber, é quando funciona. Que a arte é parte de nós, das nossas culturas várias e da beleza que existe em nós. Como disse R. W. Emerson “Vá o homem aonde for em busca da beleza, encontrará somente a porção dela que portar consigo”. (“Through we travel the world over to find the beautiful, we must carry it in us ou we find it not”)
Moacir nos leva a passear em lugares lindos, já visitados por muitos de seus leitores, mas mostra becos, praças, muros não conhecidos e faz vontades de voltar! Descreve igrejas estranhas e maravilhosas e nos faz pensar no infinito
Moacir é verborrágico mas... (palavrão) como escreve bem! Como cativa e como seduz!

Domingos, nosso decano. Tão romântico! Devia escrever mais e nos deliciar com suas aventuras mar afora.  Como devia também fazer mais comentários. Tenho ideia de que seriam deliciosos.

E o Heraldo, o caçula do grupo? Um Mestre como Moacir o chama. Escreve com sua Bic Cristal Azul cenas cotidianas transformadas em obras infinitas. Que tocam o coração, nos fazem tristes e depois alegres. Porque junto com as criaturas da rua, os gatos abandonados, a moça de saia curta com o cigarro de companhia, a muvuca das cidades grandes e seus cantinhos interioranos, dá toques de luz e de esperança. E nesse mar amargo justifica as coisas belas e as coisas fúteis como curativos para o desencanto.
Escreveu um livro de trinta contos de réis que deixo para ler á noite, porque é como um amigo me esperando para conversar no final do dia. Quando a luz cedeu à noite, quando tudo foi dito ou não, quando alguma coisa ainda sacode  o coração cansado.
O que vou fazer quando acabar o livro que já está nas últimas? Onde arranjar outro amigo de boa noite e de trocar confidências?

Finalmente o Senhor Redator que enrola, enrola e enrola para escrever um texto. É outro sabichão. Sabe de quase tudo. Ele é o meu google!
Fica ali na sua toca, caladinho, debruçado no teclado, ajeitando escritos dos queridos colaboradores. E nesse afã de um blog organizado se esquece de si e dos seus comentários. E De Mim!
Brigo com ele quando não cria posts porque sei como escreve maravilhosamente. E que naquela cabeça calada muita coisa linda circula livremente.

Como já disse sou uma participante atrevida. Não fui convidada. De ler vocês e seus comentários deliciosos fiquei amiga demais e não consegui calar. Escrevi para dizer isso e também para fazer um escambo e não parei de falar até hoje.

Amo os comentários! De todos! Sensatos ou não. De acordo ou discordantes. Espontâneos como os da Mônica, leitora do Moacir. Gosto muito deles.
E a Flávia, também da claque do Moacir. Sensata, religiosa, delicada como a Dulce Regina. Lembram dela com suas belas flores?
Também da claque, o Sampaio que traz comentários muitos bons para o Moacir. Fico curiosa pensando em que área ele milita. E sempre eu o misturo com o Márcio Rocha, de quem também gosto muito. E os chamo de Márcio Sampaio. Freud explica?
Não posso me esquecer do elegante Flávio Bortolotto que muito me emocionou com seu comentário sobre meu pai e a antiga ACAR. Pena que se esqueceu de nós!

E, entre nós, os comentários carinhosos e cheios de gratidão do Antonio, os fantásticos comentários post-à-parte do Moacir, as sempre elogiosas palavras do Francisco e a saúde e paz, os gentis comentários do Heraldo e os sérios e adequados comentários do Mano.
Adoro quando meus queridos  cunhados e irmãs comentam. E a prima Tingó. Deviam comentar sempre!
Assim como a seduzida prima Léa querida. Deveria deixar-se cativar pelos outros também e comentar em todos os posts.

Que o final de ano seja, para todos,o mais feliz que puder ser. Se no meio dos fogos e dos presentes, dos beijos e abraços, aparecer uma nuvenzinha meio cinza meio negra pensem no que li um dia, sem saber de quem ou de onde
“Não se trata de esperar a tempestade passar... mas de aprender a dançar na chuva.”

E nesse recesso que virá sentirei saudade de todos!
Até mais.


17/12/2017

Fim de linha

O trem ligeiro - foto de Heraldo Palmeira

Heraldo Palmeira
O trem ligeiro de Braga para Lisboa partiu rigorosamente no horário marcado: 13h07. Como são pontuais os trens! Isso lá é horário de gente? Dois minutos antes, três depois e seria muito mais compreensível. Mas, a pontualidade dos trens sempre foi assim, quase irritante. Até parece que todos são ingleses. Qualquer minuto é igual, ganha solenidade. Inclusive esses quebrados.
Partiu sem apitos, sem aqueles velhos sinais que se perderam no tempo. Apenas uns sons pálidos imitando os antigos resfôlegos das locomotivas de outrora. Talvez do sistema de freios. Permanece apenas aquele tlec tlec seco, metálico das rodas em atrito com os trilhos. E o balanço que, garante a lenda, inspirou a música de Glenn Miller.
A velocidade descomunal chegava a 220 km/hora em alguns trechos do trajeto. O sistema de pendulação ativa permite aos comboios vencer curvas em altas velocidades, ao contrário dos trens convencionais. E ajuda a batizar o Alfa Pendular, serviço premium da Comboios de Portugal.
Porto, Vila Nova de Gaia, Aveiro e Coimbra vão marcando pontos principais no trajeto que oferece as paisagens características do deslumbrante ambiente das aldeias e freguesias portuguesas, repleto de uvas, azeitonas, verduras, ovelhas, vinícolas... E de uma gente simpática e acolhedora.
É preciso certa atenção na bilheteria da estação para driblar alguns desconfortos. Viajar de costas (metade dos passageiros de cada vagão) pode ser bem desagradável para quem sente enjoos. Ainda mais em horários de refeições.
É possível amenizar o problema comprando o bilhete da Classe Conforto, onde as poltronas são mais largas e apenas três por fileira, uma delas individual. Um arremedo das lendárias primeiras classes, onde também a metade viaja de costas. Mas, com bilhete mais caro e menos gente por vagão, diminuem as chances de surpresas desagradáveis.
Continua impressionante a secular capacidade dos cobradores de memorizar rostos, indispensável para a função de orientar o fluxo e comprovar o pagamento de quem entra e sai nas diversas estações do trajeto.
O cobrador de trinta e poucos anos parou ao lado da poltrona à frente da minha. O homem, que embarcara pouco antes, apresentou um bilhete diferente do meu, um papel bem maior. Comprado com o desconto garantido para quem atingiu determinada idade.
O rapaz pediu documento e comprovou a desconfiança: o passageiro tinha dois anos menos. Imediatamente, iniciou uma reprimenda elegante, mas definitiva. Ao final, foi taxativo: o homem teria de pagar mais quinze euros para completar o valor normal do bilhete. E alertou que aquele tipo de infração acarretava também uma multa de mais vinte e cinco euros que, excepcionalmente, decidira não cobrar.
Sem argumento, restou ao homem estender o cartão de crédito ao rapaz. Foi informado de que o pagamento dentro do trem só poderia ser feito em dinheiro. Verdade ou mentira, disse que não tinha. Se aquilo era um estratagema, a resposta veio irredutível: teria de descer na próxima estação e regularizar a situação na bilheteria, onde cartões eram aceitos. E que o tempo da parada era curto, deveria esperar o próximo comboio.
O passageiro, envergonhado, se desculpou – ali, eu estava inclinado a pagar por ele. O rapaz disse que não havia desculpas para aquela atitude, pois era uma infração cometida por arbítrio, já que a legislação era clara a respeito do direito a desconto. A palavra “arbítrio” soou alto no meu ouvido, como um apito de árbitro de futebol. O cartão amarelo era merecido. Para o homem e para mim. Escapei por um fio! O cobrador deu o assunto por encerrado com altivez e se afastou pelo corredor.
O homem tomou o celular e começou a explicar que chegaria atrasado ao compromisso em Lisboa. Na estação de Aveiro, pegou a pequena mala no bagageiro e desceu do vagão com rapidez, cabisbaixo. Lá adiante, o cobrador, implacável, dominava a cena. Exalava o ar de guardião das normas, de dever cumprido.
O trem voltou a se movimentar e vi o homem em pé na plataforma da estação, de novo ao telefone. Não havia tomado ainda nenhuma providência. Segui a próxima meia hora pensando naquele episódio cheio de variáveis.
Claro que havia ali uma questão humana inquietante. Talvez – e era bem provável – ele não tivesse dinheiro suficiente e tentou diminuir as despesas da viagem. E outra questão humana ainda mais inquietante: a prática do desrespeito às normas, inclusive lesando terceiros. Afinal, o desconto terminava sendo pago pelo governo – por todos.
Tentei me colocar no lugar daquele homem, interrompido pela humilhação que acabou atraindo por livre arbítrio. Comecei a me convencer de que estaria arrependido se tivesse pago a diferença do bilhete. Mesmo que recebesse de volta, não seria a melhor alternativa. Afinal, havia outros trens fazendo o mesmo trajeto. Não tão rápidos, não tão confortáveis. Bem mais baratos. Questão de escolha.
A viagem avançou para além daquela meia hora de meditação, a tarde caiu feito um viaduto e João Bosco entrou na minha cabeça tocando daquele jeito fabuloso. A maravilha que essas bugigangas eletrônicas conseguem ser de vez em quando! A internet do trem é perfeita. E gratuita, claro, incluída no preço do bilhete.
Mesmo já tendo tomado partido pelo cobrador, pensei naquele homem que desceu do trem lá atrás, quando ainda havia tarde. Fiquei na dúvida se ele se foi cedo ou tarde. Talvez sentido alguma dor, eu não sei, ele foi.
Mas sei que uma dor assim pungente
Não há de ser inutilmente
A esperança dança
Na corda bamba, de sombrinha
E em cada passo dessa linha
Pode se machucar
Lisboa estava chegando e eu pude ir até o fim da linha. Fui o último a descer daquele trem. Rumei devagar pela plataforma, ficando para trás das pessoas apressadas que foram se distanciando cada vez mais e sumindo em diversas direções.
Tomei um café para ajudar a espantar o frio. Fiquei olhando as pessoas com seus gorros, sobretudos e cachecóis, indo e vindo no fluxo implacável da vida. Não senti saudade do sol de onde vim, o frio me faz bem.
Ajustei o cachecol, fechei os botões do sobretudo. Peguei o chapéu que havia pousado sobre o balcão. Troquei um sorriso breve com a balconista bonita – adorei a malícia daquele olhar – e fui embora pensando em nada. Desci as escadas, uma senhora me ajudou com a máquina de bilhetes, entrei no metrô e me assustei com o silêncio reinante. Ao menos, um pequeno grupo de estudantes riu de algum gracejo. E houve um abraço terno entre dois deles.
Nada mais belo que abraço sereno
E sabor de perdão
Ver a beleza
E em gesto pequeno ter a imensidão
Como espalhar por aí
Qualquer coisa que faça sorrir
Aquietar o silêncio das dores daqui
Não havia vivalma além de mim. Subi sozinho os longos lances de escadas rolantes da estação. Os azulejos dominavam o ambiente e havia muitas citações literárias ao longo do caminho. Atravessei a rua já enxergando o luminoso do meu hotel refletido no chão molhado pela chuva que caíra mais cedo.
Pensei no homem que desceu do trem antes da hora. Onde estaria agora? Era óbvio, sequer lembrava de mim, se é que me notou – e quase lhe paguei a diferença do bilhete, que teria resolvido tudo. Ou apenas errado junto.
Eu estava cansado. Um banho quente, uma sopa servida no quarto e me atirei na cama. Nem sei que tamanho teve a noite. A alegria estava anotada na agenda da manhã seguinte, trazida por uns amigos que estavam vindo de Madri. Haveria festa.

Trechos de:
O bêbado e a equilibrista (João Bosco-Aldir Blanc)
Mais bonito não há (Milton Nascimento-Tiago Iorc)


15/12/2017

Atravessando Arcadas

fotografia Moacir Pimentel

 Moacir Pimentel
Dia desses o Wilson comentou por aqui que...
“Viajar é atravessar uma sucessão de arcadas no espaço e no tempo, concretas ou figuradas, e toda a sua essência e a graça estão na diversidade delas, na expectativa pela surpresa do que vamos encontrar atrás de cada uma e no coração aberto com que recebemos o que encontramos. Seja a viagem com nossas pernas através do mundo ou com nossa mente na poltrona da nossa biblioteca.”
Sucede que desde moleque tenho alma de cigano, um grande afeto pelas viagens e uma paixão pelos arcos e arcadas da vida, feitos pela Natureza ou por mãos humanas. Portanto tal observação do nosso Editor me fez ir em busca de imagens de arcos e de arcadas nas minhas pastas de fotos para ilustrar meu discurso. E aí estão alguns flashes de arcos “concretos”: Santiago da Compostela, Paris, Madri e Lisboa.
fotografias Moacir Pimentel

Acontece que são muitas as fotos. Pudera! O arco é um elemento arquitetônico do qual se tem notícia desde o segundo milênio antes do Cristo! E por onde vou tenho a mania de fotografá-los enquanto os atravesso, produzindo imagens geralmente escuras, mas já anunciando as boas novas que me esperam do lado de lá. O fato é que eu fico feliz como um pinto no lixo mexendo no meu laptop viajando pelas minhas fotos. Melhor que isso só mesmo na real! E a pergunta é: por que nos sentimos tão bem quando viajamos?
Não é a perspectiva de finalmente tirar todas as fotos icônicas nem a quantidade infinita de comida deliciosa para a gente provar pelo caminho embora, no último caso, bem que ajude (rsrs) Será por causa da adrenalina da novidade? O que nos empurra de novo e de novo para ver mais e saber mais do mundo? Tudo bem que o impulso para as viagens é algo pessoal, é de cada um, mas as razões pelas quais viajamos são em grande parte universais – foi assim que a nossa espécie povoou o planeta Terra.
Qualquer um que já tenha voado em uma companhia aérea de baixo custo entende o significado da palavra “paciência”: os atrasos nos vôos, as poltronas apertadas, as bagagens perdidas, as esteiras intermináveis, as linhas de metrô incompreensíveis. Navegar de um lugar para outro nem sempre é a experiência perfeita que nos vendem nos balcões das empresas de turismo. Mas toda vez que dentro de um avião eu literalmente levanto voo, me sinto liberto e novo em folha e um eterno aprendiz.
É disso que se trata: viajar é aprendizado. As viagens nos ensinam, por exemplo, que quando as coisas ficam desafiadoras ou quando tudo dá errado temos que nos virar e continuar... viajando (rsrs) Elas exigem que confiemos em nós mesmos, nos capacitam a realizar aquilo que temos planejado em nossas mentes. Numa viagem, os solavancos das estradas - literal e figurativamente - são abundantes, e temos que resolver os problemas da forma mais rápida e criativa.
Essa capacidade de ser adaptável, de enfrentar dificuldades sozinhos, de superar barreiras linguísticas, faz com que os desafios da vida cotidiana, em contraste, nos pareçam muito mais gerenciáveis.
Viajar nos permite também confiar no mundo desconhecido e assustador, pois, embora atentos, em destinos que não conhecemos é preciso confiar na intuição e esmagar os estereótipos e nos mover sem medo movidos por compreensão e compaixão.
O fato é que pela estrada afora somos forçados a confiar em estranhos. Ao pedir direções nas ruas, ao solicitar recomendações de restaurantes, ao trocar moeda, ao tomar um caminho desconhecido, ao saltar do ônibus ou do metrô ali ou aqui conforme nos orientaram, temos que confiar constantemente na generosidade alheia, em estranhos que nem sequer falam a nossa língua.
Nesse contexto torna-se difícil ter medo de regiões ou países ou cidades depois que se interage com sua gente, que se vive com e como eles, que os vemos sorrindo, andando com seus cachorros, compartilhando sorvete com seus filhos, sentando-se nos bancos das praças com seus idosos. Todas essas experiências tumultuam tanto nossos preconceitos que os fazem desaparecer inteiramente, “como picolé no céu da boca”, como tão lindamente diz a Donana. Isso nos permite estar abertos, quebrar barreiras culturais e transformar desconhecidos em apenas outros humanos.
A viagem faz a gente se apaixonar por aprender, reaviva aquela sede que experimentávamos quando éramos meninos e nos maravilhávamos diante de algo que nunca tínhamos visto, perguntando a quem estava ao nosso lado com uma curiosidade inesgotável: “O que é isso?”
Viajar é basicamente uma aprendizagem sem fim e experiências disfarçadas de aventura. Os livros de história são uma coisa, mas explorar outros mundos dá vida às páginas das antigas narrativas. Viajar nos reconcilia com a alegria de entender, de explorar no nosso ritmo, de refletir sem pressa, de absorver tudo o que podemos. Saber pelo prazer de saber, para nós mesmos e ninguém mais. Viajar é um tipo de “iluminação”.
Então se você que está aí lendo e tomando um café estiver achando as imagens das minhas fotos melancólicas, por favor, não as entenda assim. Nelas a escuridão apenas enfatiza a luz do desconhecido me esperando depois dos arcos e túneis da Torre dos Clérigos e da Sé no Porto, no Rio Sena em Paris e na Torre de Belém em Lisboa.
fotografias Moacir Pimentel

Não viajo para ser mais ou ter mais mas para ver tudo. Veja o caso dos tais arcos, por exemplo. O fato é que os arcos são universais, fazem parte das mais belas construções da humanidade. São muitos os tipos de arco mas nas suas formas básicas eles são circulares, pontiagudos, parabólicos e catenários. Se paramos alguns minutos para tentar lembrar, da nossa memória resgataremos arcos da Ásia, da África, da Europa e das Américas.
A forma sedutora do arco deixou sua marca por todos os lados do planeta azul, em todas as culturas e continua, indiferente, a estar no cerne de algumas de nossas criações mais inspiradoras. Das ruínas de monumentos antigos à luz refratada etérea das construções de vidro modernosas, o arco tem sido usado por todo vasto mundo e nenhum outro elemento da arquitetura é capaz da façanha de engenharia estrutural com tanta graça e aparentemente tão pouco esforço.
Usado pelos mesopotâmios por falta de pedra ou madeira, foram porém os romanos, sempre precoces, que iniciaram o uso sistemático do arco, que usaram e abusaram dele para escalar dramaticamente grandes distâncias em arcadas, abóbadas, aquedutos, arenas, em seus grandes feitos de engenharia e para celebrar suas maiores vitórias militares, como no caso dos Arcos de Augusto e Constantino.
No Coliseu romano, o maior anfiteatro do mundo no seu tempo, essas duas funções foram combinadas perfeitamente, por cerca de duzentos arcos. Creio que nenhuma outra construção argumenta melhor quanto ao poder gracioso do arco.
fotografia Moacir Pimentel

Mas as legiões romanas, por mais que tenham tentado, jamais se apropriaram da antiga cidade de Ctesifonte, a sudoeste de Bagdá, hoje chamada de Salman Pak, da qual hoje só restou – adivinha o quê? – o Arco de Ctesiphon, o maior de tijolo já construído, também apelidado de Taq-i-Kisra. Em Atenas ainda mora o Arco de Adriano e arcos semi-circulares feitos com blocos de calcário moram na Grande Muralha da China e não tem como não se encantar com as curvas da Ponte de Anji sobre o rio Xiaohe. Aliás o paifang, também conhecido como pailou, o tradicional arco arquitetônico chinês, é primo legítimo da torana indiana.
Arcos enfeitam o Kings College de Cambridge, o Castelo de Neuschwanstein na Baviera, a nave da igreja no mosteiro de Alcobaça em Portugal, a fachada da Catedral de Chartres na França, a Abadia de Westminster em Londres , a Basílica de São Pedro no Vaticano, a Hagia Sophia em Istambul na Turquia, a grande mesquita de Meca, o Domo da Rocha na Cidade Velha de Jerusalém, o Taj Mahal em Agra, o Palácio de Udaipur no Rajastão, o Portão da Vitória de Munique, na Alemanha, o Museu do Hermitage, em São Petersburgo, o Museu do Louvre, o Salão dos Espelhos e a Galerie des Batailles do Palácio de Versalhes.
Na montagem abaixo, em sentido horário, veja o arco de Roosevelt, o ícone do Parque Nacional de Yellowstone, situado na sua entrada norte em Montana e o arco da cidade de Barcelona, na Espanha, construído como uma entrada para a Exposição Mundial no ano de 1888. Em seguida, abrimos espaço para os estranhos arcos de um jovem arquiteto catalão que, apaixonado pelas natureza e geometria, descobriu a capacidade mecânica de distribuir um peso de forma uniforme do arco catenário e o casou com a sua arquitetura extremamente original, tornando-o motivo recorrente na Sagrada Família e, como vemos no centro da festa, no Park Güell e na sua Casa Milà.
fotografias Moacir Pimentel

Antoni Gaudí, com os seus arcos catenários, driblou os mestres pedreiros da Idade Média que precisaram dos arcos para tornar suas obras-primas góticas estruturalmente mais eficientes e nas catedrais e demais constuções góticas os fizeram pontiagudos - essa inovação permitiu aberturas mais altas e mais próximas. Na Abadia de Tintern – em baixo à esquerda na montagem - hoje apenas uma pitoresca ruína em Wales, testemunhamos o arco transformar-se de um estilo arquitetônico em um movimento transcultural. O arco gótico pontudo, delgado e sinistro reduziu o impulso horizontal do arco romano tradicional. Menos força nas bases foi a chave para criar a leveza da bela e vertical arquitetura gótica.
Se bem que muito mais popular (o arco americano não é tão popular quanto) é a resposta que os dinamarqueses Johann Otto von Spreckelsen e Erik Reitzel deram, no aniversário de duzentos anos da Revolução Francesa, ao Arco do Triunfo: o Grande Arche de la Défense! Um tesseract 3D revestido de vidro e mármore de Carrara, que comemora a humanidade ao invés das vitórias militares como o seu primo morador dos Campos Elíseos.
Outro arco catenário lendário é de autoria de Eero Saarinen e Hannskarl Bandel. Com quase duzentos metros e duas toneladas de aço inoxidável, continua a ser o monumento desse material mais alto do mundo, e sua forma graciosa é um ícone tanto da cidade de Saint Louis, nos Estados Unidos, quanto da arquitetura do século passado.
E o que dizer dos nossos arcos desenhados por Niemayer no Sambódromo, no Palácio do Itamaraty e na Catedral de Brasília? Dos arcos da Ponte Rialto sobre o Grande Canal em Veneza e do arco perfeito desenhado pela Ponte do Arco-Íris sobre o Rio Niágara ligando as fronteiras americana e canadense ao lado das cataratas? E, last but not least, do arco cavado pelos elementos que hoje os franceses chamam de Pont d’Arc?
fotografias Moacir Pimentel

Depois de ver tantos arcos e tanto mundo, é bom estar em casa. É sempre uma delícia poder voltar para o nosso cantinho, para os metros que nos cabem nesse latifúndio. É fácil se apaixonar por arcos distantes e estradas acidentadas, pelos sons dos sinos de um templo budista e do flamenco espanhol e pelas lindas arcadas francesas. Ao experimentar essas coisas, nossa primeira reação pode ser compará-las ao lar, onde nossas vidas passam devagar quase parando e quase sem novidades.
Mas na verdade, viajar também nos ensina a apreciar nossas raízes. As diferenças entre a nossa cultura e aquelas que experimentamos de passagem nos fazem perceber o valor real de ter um chão para chamar de nosso, de nele ter plantado sementes que já deram fruto, dos laços de afeto que construímos e que estarão à nossa espera no regresso.
Embora viajar nos afete mesmo quando estamos descalços, sentados no sofá, em casa, como agora, olhando essas fotos e percebendo quanta bagagem nos sobrou desde os dias perdidos no tempo, quando os primeiros exploradores pisaram a estrada e/ou entraram em barcos instáveis e os conduziram por mares ignotos para encontrar mundos novos. Percebemos que a aventura é uma mentalidade e que as viagens alteram toda a nossa abordagem à vida nos conectando com o mundo além da nossa porta da frente, com gente que mora em qualquer latitude. Fora das bolhas protetoras de nossas casas, podemos ver claramente que todos somos parte de uma história maior. E essa percepção acaba com o medo e os preconceitos e torna o mundo um lugar muito menor. Afinal, é muito mais divertido amar o mundo do que ter medo dele.
Mas atravessar as arcadas mais bonitas que conheço fica para outra conversa...