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Uma das últimas fotografias de Saint-Exupéry (fotografia de John Philips) |
Wilson Baptista Junior
Wind, Sand and Stars (Vento, areia e estrelas) foi o título que os editores americanos
encontraram para batizar o livro Terre
des Hommes (Terra dos Homens) do escritor e aviador francês Antoine de Saint-Exupéry,
na sua publicação em 1939.
Foi esse livro, na bela tradução do francês de Rubem Braga, que li
quando era menino e foi responsável pela minha paixão da vida inteira pela
aviação.
Mas muito mais do que de aviação falavam nas entrelinhas os livros de
Saint-Ex (como o chamavam seus amigos) à medida em que fui lendo, crescendo,
relendo e compreendendo. E até hoje, quando releio qualquer um deles, alguma
coisa de novo se apresenta ao meu espírito.
Saint-Exupéry ficou conhecido no Brasil principalmente como um autor
para crianças, por causa de seu livro O Pequeno Príncipe, um enorme sucesso
mundial de publicação e que, por décadas, era citado por todas as nossas
candidatas a miss quando perguntadas sobre seu livro preferido.
O Pequeno Príncipe, que parte de um acontecimento real, quando ele e seu
mecânico Prévot decolaram à noite de Bengazi no seu avião Caudron Simoun (o vento do deserto) numa etapa
de um voo para tentar bater o recorde de velocidade entre Paris e Saigon, e
caíram depois de quatro horas e pouco de voo, enganados pelas más condições de
tempo, num platô no deserto do Saara, perdendo no acidente a água e a comida, e
de onde foram salvos três dias depois por uma caravana de camelos, a par de ser
uma encantadora história para as crianças é (dizem alguns, e eu acredito) uma bela
carta de amor do autor para sua mulher Consuelo, escrita quando andavam
estremecidos.
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O Caudron Simoun caído no deserto (fotografia Bureau d'Archives des Accidents d'Avions) |
Eu acho Saint-Exupéry um autor difícil de traduzir. Isso porque ele
escrevia e reescrevia suas páginas até que cada palavra nelas fosse a única que
poderia estar ali naquele lugar. Com seu peso e seu sentido perfeitos. Como ele
escreveu, no seu Terre de Hommes:
Il semble que la perfection soit atteinte
non quand il n’y a plus rien à ajouter, mais quand il n’y a plus rien à
retrancher.
(Parece que se atinge a perfeição, não quando não há mais nada a
acrescentar, mas quando não há mais nada a cortar)
Não dá para mudar nada numa página dele. E ele nunca escreveu nada,
ficção ou não ficção, que não estivesse solidamente ancorado na sua experiência
de vida. De uma vida em que ele sempre esteve de peito aberto na linha de
frente de tudo aquilo em que participou. Era um intelectual, um estudioso, mas
fundamentalmente um homem de ação.
Embora seus estilos sejam muito diferentes, ele partilhava com
Hemingway, outro de meus autores preferidos, a vida de ação e o fino
burilamento por trás de uma escrita aparentemente fácil.
A história de vida do autor é tão interessante e aventureira quanto seus
livros, e por isso permitam-me uma digressão. Depois de contar hoje um pouco de
sua vida, numa próxima conversa falarei dos seus livros, que me olham das
minhas estantes enquanto escrevo.
Antoine-Jean-Baptiste-Marie-Roger de Saint-Exupéry nasceu em 1900 em
Lyon, filho do Conde de Saint-Exupéry, de antiga linhagem de cavalheiros do
Limousin, e de sua mulher Marie de Fonscolombe, de linhagem provençal. Perdeu o
pai muito cedo, aos quatro anos. Depois de uma infância folgada nos castelos de
suas duas avós, estudou num colégio jesuíta até a entrada da França na Primeira
Grande Guerra, em 1914, quando sua mãe se mudou para Paris para chefiar uma
equipe de enfermeiras. Transferido para outro colégio (dessa vez dos padres
maristas) lá ficou até conseguir seu bacharelado (que na França tem um
significado diferente daqui, é uma prova difícil que se faz ao final do ensino
médio para só depois de aprovado poder tentar a universidade). Mas antes disso,
aos doze anos, fez seu primeiro voo (à revelia de sua mãe) como passageiro de
um avião. Imaginem o que deve ter sido a sensação, para um menino de doze anos,
de voar num daqueles aeroplanos que mais pareciam um papagaio-caixa com um
motor, poucos anos depois dos primeiros voos de Santos Dumont e dos irmãos
Wright...
Voltando desse voo o garoto escreveu o que é seu primeiro poema
conhecido:
“Les ailes frémissaient sous le souffle du soir
Le moteur de son chant berçait l'âme endormie
Le soleil nous frôlait de sa couleur pâle.”
Numa tradução livre:
As asas tremiam ao sopro da tarde
O canto do motor ninava a alma adormecida
O sol nos tocava com sua pálida cor.
Não sabemos qual foi a reação de sua mãe quando ele voltou de seu
passeio de bicicleta até o campo de aviação e contou o que tinha feito...
O rapaz Antoine se preparou para ingressar na Escola Naval, onde tirou a
mais alta nota em matemática no exame de admissão mas foi reprovado por uma
nota baixa justamente na prova de... redação :)
Depois disso, entrou na Escola de Belas Artes, para estudar arquitetura.
Mas antes de completar dois anos foi chamado para o serviço militar e designado
para um regimento de aviação, onde ficou como mecânico. Não podia se formar
piloto porque não tinha o brevê de piloto civil (não tente entender os
regulamentos militares franceses da época...)
Então pagou de seu bolso algumas aulas num aeroclube e, com menos de
duas horas de instrução, pegou sem autorização um avião Sopwith e decolou
sozinho, pousando miraculosamente pouco depois, inteiro mas com o assoalho da
cabine em chamas. Seu comandante no regimento lhe disse: “Você nunca vai se matar num avião, porque se isso fosse acontecer teria
sido hoje”...
Depois desse começo pouco auspicioso conseguiu tirar seu brevet e se
tornar aluno-piloto militar. Tornou-se piloto de caça, voando até o final do
serviço militar.
Quis fazer carreira na aviação militar francesa, mas a família de sua
noiva não quis saber disso e ele desistiu. Depois de passar dois anos em
trabalhos de escritório, sem vontade nem sucesso, publicou numa revista sua
primeira história, L’Aviateur (O
Aviador) e pouco depois entrou como piloto na Compagnie Générale d’Entreprises Aeronautiques, que depois se transformou na Aéropostale
e mais tarde seria fundida com outras companhias francesas dando origem à atual
Air France. A companhia estava começando a abrir as linhas de correio aéreo na
França e nas colônias francesas, usando alguns aviões que tinham sobrado da
Primeira Guerra Mundial.
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Um Breguet 14, um dos primeiros aviões da Aéropostale. Em baixo das asas se veem os compartimentos onde se colocava o correio
(fotografia www.memoire-aeropostale-com) |
Daí em diante sua carreira de piloto (que necessariamente terei que
resumir muito) e a de escritor se entrelaçam. Começou levando o correio de
Toulouse, no sul da França, a Casablanca, no Marrocos. Aí passou a chefe de
escala em Cap Juby, na costa sul do Marrocos, onde tinha o duplo papel de
assegurar as relações da empresa francesa com o governo espanhol, que então
dominava a região, e de fazer o resgate dos pilotos e aviões forçados a pousar
de emergência no deserto e feitos reféns, e às vezes assassinados, pelos chefes
árabes hostis.
Durante esse tempo escreveu o romance Courrier Sud (Correio Sul). Do Marrocos Antoine foi para Buenos
Aires, de onde a Companhia começava a abrir as linhas da América do Sul, de
Natal até a Patagônia, e a ensaiar os primeiros voos noturnos, numa época em
que as comunicações por rádio eram rudimentares e o radar e o GPS estavam muito
longe de serem inventados.
Durante esse trabalho realizado com seus amigos Jean Mermoz e Henri
Guillaumet, dois pilotos que marcaram a história da aviação francesa, Saint-Ex
escreveu seu romance Vol de Nuit (Vôo
Noturno). E foi em Buenos Aires que ele ficou conhecendo Consuelo, a
salvadorenha com que se casaria pouco tempo depois.
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Saint-Exupéry (esquerda) e Guillaumet na frente de um avião Laté-28 da Aéropostale (fotografia Collection Musée Air France) |
De volta à África, passou a fazer o voo entre a França e a Algéria em
hidroaviões, e mais tarde desligou-se da Aéropostale e passou um tempo trabalhando
como piloto de provas numa fábrica francesa de aviões em Toulouse.
Em 1934 entrou para a Air France, que tinha incorporado a Aéropostale,
como encarregado de voos de estudo e de conferências para divulgar a companhia.
No ano seguinte tentou bater o recorde de velocidade Paris-Saigon, e caiu no
deserto, o acidente de que falamos atrás. Nos dois anos seguintes, enquanto
continuava a abrir linhas na África, encontrou tempo para voar por duas vezes
ao front da Guerra Civil Espanhola, como correspondente de guerra para jornais
franceses. E um ano depois começou a escrever o que é talvez seu maior livro, Citadelle (Cidadela), a história de um
senhor de uma tribo bérbere contada na forma dos ensinamentos do chefe ao seu
filho.
Em 1938 partiu para tentar um raid Nova Iorque-Terra do Fogo, novamente
em seu Simoun e acompanhado do mecânico Prévot. Numa das etapas, ao decolar da
Venezuela, o avião, pesado demais pelo excesso de combustível, caiu deixando-o
gravemente ferido com o crânio fraturado, fraturas múltiplas no braço e em
estado de coma.
Um mês e meio depois saiu do hospital e foi para Nova Iorque, em
convalescência, onde começou a escrever o Terre
des Hommes, publicado no início de 1939 e que lhe trouxe a fama como
escritor.
No mesmo ano, com a ameaça de guerra, voltou para a França. Pouco
depois, a convite de seu amigo Guillaumet, acompanhou-o num voo de teste no Lieutenant de Vaisseau Paris, um
hidroavião Latécoère 521 de seis motores que foi o primeiro “jumbo”
transatlântico, de Biscarrosse, na França, a Nova Iorque, ida e volta.
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O "Lieutenant de Vaisseau Paris" (foto San Diego Air and Space Museum) |
No mesmo ano, com a aproximação da guerra, como capitão da reserva, voltou
à ativa, recusou ficar em terra nos serviços de informação e assumiu um posto
num esquadrão de reconhecimento aéreo a longa distância, Seu antigo chefe na
Aéropostale, agora oficial de patente mais alta, querendo poupá-lo, mandou
reconduzi-lo à aviação civil, Saint-Éxupéry recusou e o seu esquadrão partiu
para a guerra. Com a derrota dos franceses o grupo voou para a Algéria para se
reunir aos franceses livres. Antoine foi desmobilizado e no final de 1940 conseguiu
viajar para os Estados Unidos, onde se dedicou a escrever Pilote de Guerre (traduzido para o inglês como Flight to Arras – Voo para Arras e um enorme sucesso nos Estados
Unidos) e a tentar mobilizar a opinião pública americana em favor da França.
Enquanto tentava voltar para a Algéria para lutar escreveu Le Petit Prince (O Pequeno Príncipe).
que ilustrou com suas aquarelas e Lettre
à um Otage (Carta a um Refém). Só em maio de 1943 conseguiu se reunir aos
seus companheiros. O seu esquadrão tinha sido equipado com os aviões Lockheed F-5B,
que eram caças bimotores P-38 Lightning transformados em aviões de
reconhecimento equipando-os com motores mais potentes para funcionar em grandes
altitudes e retirando as armas e a munição para diminuir o peso e permitir mais
velocidade e lugar para as câmaras fotográficas (naquele tempo muito grandes).
Nesses aviões desarmados é que as missões de reconhecimento eram realizadas,
esperando, um tanto otimistamente, que esse aumento de velocidade os ajudasse a
escapar dos caças inimigos que estavam sempre à espreita.
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Saint-Exupéry na carlinga de seu P-38 (foto John Philips) |
Depois de três meses de voo as autoridades americanas, que achavam que
ele, por sua fama, era valioso demais para correr riscos, aproveitaram-se de
que a idade máxima regulamentar para pilotar os P-38 era de trinta e cinco anos,
proibiram nosso amigo de voar e obrigaram-no a voltar à reserva.
Mas depois de passar vários meses importunando seus superiores ele conseguiu
ser chamado por um coronel seu amigo para voar em um esquadrão de bombardeiros,
onde o limite de idade era mais dilatado, e assim que voltou à ativa perseguiu
o general americano que comandava as operações aéreas no Mediterrâneo até
conseguir permissão para voltar ao seu esquadrão de reconhecimento, só que essa
permissão veio com a condição de não voar mais do que cinco missões.
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Saint-Exupéry em seu P-38 em missão perto da costa da Sardenha (fotografia John Philips) |
Como depois de sete missões ele não mostrava sinais de querer parar, o
Alto Comando resolveu contar a ele os planos do desembarque na Normandia,
porque assim não poderia mais voar para não se arriscar a ser capturado sabendo
dos planos altamente secretos. Conseguiu licença para realizar uma derradeira missão
antes que fizessem isso, e em 31 de julho de 1944 decolou com seu avião da sua
base na Córsega para fotografar Grenoble e Annecy, na França ocupada. Seu avião
desapareceu do controle do radar perto da Côte D’Azur, e não se teve mais
notícia dele.
Por cinquenta e seis anos não se soube o que aconteceu
com Saint-Éxupéry. Até que em 1998 um pescador marselhês apanhou em sua rede
uma pulseira de prata gravada com os nomes dele, de sua mulher Consuelo e do
seu editor americano. Depois desse achado as buscas foram retomadas e se
concentraram nessa região, e afinal mergulhadores encontraram os destroços de
um avião, a pouco mais de oitenta metros de profundidade, que em 2004 conseguiram
identificar como sendo o P-38 que ele pilotava.
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fotografia Musée de lÁir et de l'Espace - Le Bourget |
A pulseira e a parte do avião que se conseguiu trazer à superfície estão
hoje no Musée de l’Air et de l’Espace
de Le Bourget, perto de Paris. Até hoje não se sabe conclusivamente o que
aconteceu com o aviador. Nenhum vestígio do seu corpo foi encontrado. Dois
diferentes pilotos alemães disseram ter abatido um P-38 naquele dia naquela
região, mas os registros da Luftwaffe não confirmam nenhum dos dois. O estado
dos destroços encontrados não permitiu identificar furos de bala, nem dizer que
eles não existiram. Se Saint-Ex não tiver sido abatido, pode ter tido uma falha
de motor, ou ter desmaiado por falta de oxigênio (o voo a grande altitude
consumia muito oxigênio, e ele, aos quarenta e quatro anos, precisava de muito
mais do que um piloto mais jovem). Talvez nunca venhamos a saber.
Quando penso na última missão de Saint-Ex me lembro das suas palavras no
final da sua última carta, recebida por um amigo depois de sua morte:
“A volta é um milagre. Eu conheci a pane,
o desmaio por acidente de oxigênio, a perseguição pelos caças e o incêndio em
voo. Não me creio muito avaro e me sinto um carpinteiro competente. É a minha
única satisfação. E também a de passear, um só avião e sozinho a bordo, por
horas e horas por sobre a França, tirando fotografias. Isto sim é estranho
(...)
Se eu for abatido, não me lamentarei por
ter perdido nada. O formigueiro do futuro me apavora e detesto sua virtude de
robôs. Eu, eu fui feito para ser um jardineiro...”