Uma esquina do mundo (foto Heraldo Palmeira) |
Heraldo Palmeira
A
temperatura lá fora rodava o zero grau do termômetro, a gente se preparando
para os quatro negativos prometidos para o fim de semana. A lareira da sala
espalhando o mistério do fogo pelos cinco sentidos e afagando nossas sensações
térmicas. As labaredas crepitando felicidade pela eternidade daquela noite
portuguesa.
O som da
casa era universal, vínhamos de diversas partes do mundo: Carlos Santana,
George Benson, Kate Bush, Prince, Sinéad O’Connor, Queen, McCartney e os amigos
do pop inglês revivendo Harrison, Michael e os amigos We are the world, David Bowie, Leonard Cohen, O Terço, Flávio
Venturini, a trilha sonora do documentário Agosto
em Acari – que eu produzi –, Benjamin Clementine, Pink Floyd.
De repente,
o som dos relógios, o pulsar do tempo na música, e a gente ali vivendo a
transformação, o presente como pêndulo de passado e futuro mudando segundo a
segundo. O que seria o momento seguinte está sendo agora e num piscar já se
foi, virou lembrança.
Em casa, novamente em casa
Eu gosto de estar aqui quando
posso
Quando chego em casa
Cansado e com frio
É bom pra esquentar meus ossos
Ao lado da lareira
Aquele
caldeirão de afetos que desconhece fronteiras e idiomas. A linguagem dos
sinais, da comida, dos doces, do café, do tabaco, do vinho, dos sorrisos, dos
olhos, das mãos, da madeira sendo colocada no fogo, dos cliques fotográficos,
dos abraços, dos silêncios, dos cheiros e beijos... Soa universal, é
inteiramente compreensível até de boca fechada. Até quando se abre em frases
mal construídas em idiomas alheios – pouco importa. E a luz dourada, tênue,
discreta como só caberia assim.
Pensei no
tempo em que estive sozinho, em que quis rever amigos e recordações. Mas os
caminhos da vida nos afastaram, perdemos tudo aquilo que um dia doeu de tanta
saudade. E também aquelas pessoas, que já não são as mesmas. Nos tornamos
estranhos quando fomos ficando pela estrada e sumimos nos nossos passados
mútuos.
A grama era mais verde
As luzes mais brilhantes
Com amigos por perto
As noites eram maravilhosas
Mas a vida
roda em mistérios insondáveis. Basta acreditar nisso, acredite. Até parece
magia! A solidão de uma viagem escolhida solitária virada de ponta-cabeça. Um
outro país, vão surgindo pessoas que nunca vi antes (será?), que deviam ser
distantes porque estranhas, mas nunca foram estranhas. Nem distantes. Caminhos
de vida renovados.
Uma mulher
adorável que saiu de alguma página de um livro bom, o sol das noites com sol,
atrai o mundo para o seu mundo. Foi assim que cheguei. E mais não conto, pois
as regras dos reinos encantados não permitem. É preciso encontrar o caminho.
De repente,
despencaram no meu coração meninos do mundo – minha pequena frota dos dois
lados do oceano vai aumentando – que me renovam, que me tomam pela mão. E
saímos em folia pelas ruas, pelos bosques gelados, como se tivéssemos a mesma
idade. Pregando peças, caminhando em nossos silêncios e solidões, saciando
nossas curiosidades pela natureza, nossas necessidades do Divino. Nossos
interesses pelas artes, pelo movimento das pessoas, pelas esquinas da vida,
pelas histórias que escrevemos, por quem somos, pelo passado que parece que
sempre existiu entre nós. Que diabos é isso? Estou garimpando as respostas.
Eu juro que você já me viu
Sim, você já me viu aqui antes,
antes
E então não diga
Não diga o contrário
Esta voz, esta voz em especial
Sim, você já a ouviu antes, antes
Não é à toa
Que a estrada parece tão longa
Porque eu já fiz tudo isso antes
Você sentiu essa sensação
Você já sentiu isso antes, antes
Vejo os
suaves David e Barča – que pode ser Bárbara, mas prefiro o som de Bartcha, é
mais a carinha dela. São amigos, saem de vez em quando, juntos ou não, da
pequena aldeia onde vivem na República Tcheca, e rodam em busca do futuro. Vão
crescendo como gente grande, tentando, aprendendo.
Ele me
emociona falando que enxerga em mim o pai idealizado – ora “my big daddy” ora “mi
papá”, que ele diz me olhando com ternura, beijando meu rosto e tentando
caprichar num português particular –, e generoso faz jantares delicados para todos nós. Ela
bota o olho talentoso em ação para criar fotos lindas por onde passa, virou my sweet baby e começou a me matar de
saudade muitos dias antes de seguir viagem. Ele ainda fica mais um pouco por
aqui.
Barča e David (foto de Heraldo Palmeira) |
Joana é tuga
legítima, virou de sangue no primeiro contato. Sentimos a mesma coisa, como se
a ligação existisse desde sempre. Sonhos à flor da pele, linda, tentando
encontrar as saídas. Acho que não vai demorar, ela já percorre chão por aí faz
tempo, está rondando o terreiro do amanhã.
Joana (foto de Ângela Lisboa) |
Bárbara, a
caçulinha bárbara, uma grande tuga a caminho, força descomunal da natureza.
Esvoaçante, multidisciplinar, um vulcãozinho ainda rodando naquele delicioso
desalinho confiante de quem tem todo o tempo pela frente. Para piorar a
confusão, completamente contaminada pela arte. E humor à flor da pele.
Bárbara (foto de Helena Oliveira) |
Pensei nos
meus meninos (de sangue) do mundo, que estão no Brasil. Na minha Débora, pedaço
adorado de mim, minhas aflições serenadas. A cara de moleca que vai ficando muito mais forte do que eu,
que me permite simplesmente seguir sem pressa
alguma. É indescritível vê-la como a solidez da montanha, como um relojoeiro cuidando dos mais delicados mecanismos sem descuidar de peça alguma.
Pedro, do
mundo como a pedra e o vento, local em qualquer lugar, sempre andando na
direção dos melhores sopros. Refinado, apuradíssimo, casual como a vida, meu
geniozinho de estimação haja lâmpada, haja luar.
Júlia, a
caçulinha do outro lado (de onde estou agora) do Atlântico, a bárbara de lá,
emoção pura, sempre tirando onda, dona do pedaço, minha canção mais nova, minha
glória de ser padrinho – e, por minha conta, pedacinho silencioso de pai.
Débora (selfie de Débora Palmeira) / Pedro e Júlia (foto de Maria do Carmo Palmeira) |
Antes de
chegar em casa passei pelos açoites do frio na rua semideserta, envolta na
neblina que deixa tudo sobrenatural. Mas estava lá em cima, acima de tudo, um
luar imenso dando cartas no céu, como um chamado. Talvez a guiar as estrelas
que fugiram para algum lugar mais quente.
Vou seguir o chamado
E onde é que vai dar?
E onde é que vai dar?
Não sei...
Céu abriga o recado
Que é pra eu me guardar
Mudanças estão por vir
Esperar ser proclamado
O grande final,
O grande final feliz!
Fiquei
pensando como seria estar ali em solidão. Dei de ombros, minha viagem solitária
virou multidão. Pessoas adoráveis que ficaram no calor dos trópicos. Pessoas
adoráveis brotando do frio. Sobre minha cabeça quase um luar do sertão. Não
demora, encontro as estrelas sumidas.
Há um menino
Há um moleque
Morando sempre no meu coração
Toda vez que o adulto fraqueja
Ele vem pra me dar a mão
Bola de meia, bola de gude
O solidário não quer solidão
O solidário não quer solidão
Os meninos
do mundo, meus meninos, resgataram o moleque morando no meu coração. Acharam o chapéu para os dias gelados e de chuva fina - que eu não encontrava -, me levaram onde se fabrica sob medida. Quem sabe,
isso quer dizer amor? Quem sabe o que há por saber? Onde é que vai dar? Quem
sabe...
Pensei no tempo e era tempo
demais
Você olhou sorrindo pra mim
Me acenou um beijo de paz
Virou minha cabeça
Eu simplesmente não consigo parar
Pensar além do bem e do mal
Lembrar de coisas que ninguém viu
O mundo lá sempre a rodar
E em cima dele tudo vale
Quem sabe, isso quer dizer amor
Estrada de fazer o sonho
acontecer
Ah, meus meninos... Vou carregá-los sempre! E daí pra quando eu não estiver mais por aqui? Eles estarão e serão por mim como uma lembrança. E me enxergarão pirilampo fingindo ser estrela debaixo da lua, já está combinado.
Ah, meus meninos... Vou carregá-los sempre! E daí pra quando eu não estiver mais por aqui? Eles estarão e serão por mim como uma lembrança. E me enxergarão pirilampo fingindo ser estrela debaixo da lua, já está combinado.
Daniela, a mulher saída da página de um livro bom (foto de Sandra Peixoto) |
Olhei para a
mulher saída da página de um livro bom, demos uma piscadela, fizemos um brinde
sem precisar levantar taças, felizes pelos meninos se divertindo. Estrada de
fazer o sonho acontecer. Que outra cara eu poderia ter, senão feliz?
Heraldo (foto de Joana Lisboa) |
Trechos de:
Time
(David
Gilmour-Nick Mason-Richard Wright-Roger Waters)
High
hopes (David
Gilmour-Polly Samson)
Condolence
(Benjamin
Clementine)
O
chamado (Marina
Lima-Giovanni Bizzotto)
Bola
de meia, bola de gude (Milton
Nascimento-Fernando Brant)
Quem
sabe isso quer dizer amor (Lô
Borges-Márcio Borges)
Viajante,
ResponderExcluirUma bela canção de amor aos seus meninos e meninas daqui e de além mar, à terra que você está reencontrando e, se o reino encantado te der sorte, à "página de um livro bom".
Que a sua viagem seja sempre assim feliz.
Tábua das boas letras,
ExcluirSem dúvida, os meninos merecem pelo que têm feito nas próprias vidas e nas de quem está por perto. O reino encantado já me deu sorte antes, os "livros bons" estão em toda parte, em papel de seda. E devem ficar muito bem protegidos na biblioteca da vida. A minha viagem seguirá feliz inclusive porque tenho as Conversas para partilhar os rascunhos que a Bic azul risca de vez em quando. Basta achar um papel. Abração.
Heraldo, belo texto que disponibiliza aos jovens amados e a seus amantes velhos um aprendizado comum, que ensina a delicadeza da vida, presente e futura. Obrigado.
ResponderExcluirOlá Heraldo,
ResponderExcluirBelo texto, belas fotos, belas mulheres! E, porque não, belos homens!
Estamos contentes por te saber feliz e amando! Um bom começo para um belo fim de ano!
Até muito mais!
1) Lisboa é tudo de bom !
ResponderExcluir2) Saúde e sucesso !
3)Como sempre, boas palavras concatenadas e antenadas em bela crônica, fotos idem.
Mestre Heraldo,
ResponderExcluirOntem de acordo com o último noticiário da SIC, uma tempestade de nome Ana varreu a t’rrinha de Vila Nova de Gaia a Lisboa! Além das imagens de árvores centenárias derrubadas e de carros danificados ao longo da Avenida Elias Garcia, o âncora anunciou a chegada "em seguidinho" de mais dois temporais já batizados de Bruno e Carmem. Nessas paragens de além mar quando tempestade tem nome, cuidado! Ouso sugerir-lhe que,à beira da lareira, mantendo a sound track e tomando um bom tinto o senhor leia esse livro sossegado (rsrs)
Abração
Lindo texto! É maravilhoso interagir com os encantos dos lugares onde nossa alma se entrega.
ResponderExcluirAmigo de fé Heraldo
ResponderExcluirEssa estada sua em Portugal me fez lembrar a viagem que fiz à "terrinha", em fevereiro de 2000, quando fui acertar, com os velejadores portugueses, o programa de sua vinda ao Brasil
para os festejos do V Centenário do Descobrimento e apresentar a nossa Nau Capitânia.
Também fui sozinho e passei dez dias em inúmeras atividades encarando o frio e dormindo com a luz do sol.
A metade desse tempo foi tomada por uma viagem até Belmonte, terra de Cabral. Para isso, aluguei um carro e visitei as cidades importantes na vida de nosso Descobridor: Santarém, Tomar, Viseu, Belmonte e Castello Branco, em uma experiência inesquecível.
Naquela ocasião, não poderia imaginar que nossa querida Nau viria ser o elo que nos colocaria juntos, encarando as surpresas da vida, em uma sólida amizade, que já completou 20 anos...
Estou encantado com este texto em que você nos apresenta seus mais valiosos tesouros e a forma como interagem. Uma grande lição de vida. Há poesia em tudo...
Um abraço emocionado
Domingos