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29/05/2018

As amadas do toureiro



 
Pablo Picasso - Portrait de Madame Benedetta Canals (1904)
Moacir Pimentel
Quem olha com atenção para essa dolorosa Madame Benedetta Canals, entende perfeitamente os sentimentos de Pablo Picasso e se solidariza com ele, coitado, que cobiçou em vão essa deusa que, por acaso, era a esposa de seu melhor amigo. O que foi inicialmente um “olhar de pintor” tornou-se um olhar fixo e cativo, hipnotizado e vergonhosamente incapaz de se desviar. Essa senhora foi pintada em Montmartre em um trabalho que é, na minha modesta opinião, um dos retratos femininos mais altivos e sedutores da história da pintura.
Escolhi a tela para abrir o post porque o retrato de Benedetta ilustra perfeitamente que, ao longo da larga e longa avenida artística trilhada por Pablo Picasso, de um lado moram as obras pertencentes ao desenvolvimento intelectual-estilístico do artista, as telas que são o resultado de seu crescimento e progresso. Já do outro nos acenam e encantam as telas que brotaram diretamente do enredo biográfico do homem, que só podem ser entendidas como as notas musicais específicas de sua sonata íntima, anotações de pé de página em seu diário pessoal. Este retrato claramente pertence ao segundo departamento.
Quando pintou Benedetta, Picasso já deixara para trás o seu tristonho período azul para entrar no chamado período rosa no qual o mundo do circo se tornaria o assunto principal. Apesar de ter as cores mornas, esse rosto sério e adornado apenas por uma rica mantilha de renda negra está em desacordo com os temas que ele explorou na mesma época. Nessa pintura, o artista usou elementos tipicamente espanhóis, que eram recorrentes nas telas muito populares - porque o exotismo de tudo que era espanhol fascinava os franceses! - do seu amigo e pintor Ricard Canals que –adivinha? – era o marido da moça.
Na obra são claras as influências dos grandes mestres da pintura, pois Benedetta nos traz à mente a espiritualidade harmoniosa das senhoras de Velázquez e aquele foco que Ingres dava aos rostos de suas personagens contra fundos lisos e neutros. Mas apesar de ser um ponto fora da curva cor de rosa ou da cubista, essa Senhora Canals, tão linda com seus olhos escuros e pele branca, nos sussurra que aí Picasso já fazia a exploração de um novo limite: o retrato psicológico.
Os retratos de Picasso exemplificam perfeitamente tanto as surpreendentes vitalidade e variedade da arte dele quanto a revolução inovadora causada por ela. O artista pintou retratos das sete mulheres de sua vida - “ufa!” - de familiares, de amigos e de amantes que revelam os seus processos criativos enquanto se movia livremente entre o desenho da vida, a caricatura humorística e as tintas expressivas das suas memórias, tudo isso enquanto esfaqueava a forma, virava-a pelo avesso para depois tornar a colocar tudo nos devidos lugares. Ele demoliu tudo o que as pessoas acreditavam por dois mil anos que um retrato deveria ser e, em seguida, continuou pintando mais retratos.
E, inclusive, pintou uma outra espanhola de mantilha para chamar de sua, que recebeu do artista um tratamento mais expressionista, nas proporções atenuadas e contornos que revelam alguma semelhança com as formas delicadas e alongadas de El Greco. Nunca simplesmente um cronista de fatos empíricos, Picasso aqui dotou outra mulher com uma presença poética e quase espiritual. A tela de nome Fernande com uma Mantilha Negra é um trabalho de transição, de tonalidade subjugada e pinceladas vivas, simbolizando de novo e de forma romântica as origens espanholas não da Fernande mas do artista.
Pablo Picasso - Fernande à la mantille noire (1905)

Esse belo rosto de feições abreviadas, no entanto, já profetiza o crescente interesse de Picasso pelas qualidades abstraídas e a solidez da escultura ibérica, o que influenciaria profundamente suas obras subsequentes. Essa pintura mostra afeto e paz enquanto anuncia mudanças.
E antes que você me pergunte quem é a segunda mulher retratada com uma mantilha, adianto que trata-se da parisiense Fernande Olivier, a primeira amante de Picasso, aquela que dividiu com ele a pobreza extrema de um ateliê que mais parecia um armário, enquanto ele pintava Les Demoiselles d'Avignon.
Porém... deixe que também lhe diga que, enquanto ele pintava o retrato da primeira senhora de mantilha, a linda Benedetta, os laços de amizade de Picasso com o pintor Ricard Canals muito se fortaleceram e que no Bateau Lavoir os dois casais - Picasso e Fernande, e Canals e Benedetta - estabeleceram uma amizade muito estreita. De acordo com relatos da própria Fernande, Picasso passava os dias no estúdio de Canals e Benedetta usava de suas lendárias habilidades culinárias e fazia milagres para alimentar a todos quando os recursos econômicos eram escassos (rsrs)
Fernande Olivier na verdade nascera Amélie Lang, a se acreditar na sua certidão de nascimento, na qual o pai é desconhecido. A julgar pela frequência com que os escritores e atores parisienses usavam pseudônimos à época, Fernande seguia claramente uma prática da moda. Para os amigos do Bateau Lavoir, entretanto, ela não fazia nenhum segredo de seu nome verdadeiro.
Tanto que André Salmon em suas memórias refere-se à amante do amigo como “la belle Fernande” ou como “la jeune Amélie”. Ela foi a primeira mulher, além da mãe e das irmãs do artista, a desempenhar um papel e a ocupar um lugar importantes na vida desse homem, cuja obra sempre esteve intimamente ligada ao seu mundo privado e interior. E então o relacionamento de Picasso com Fernande se reflete, é claro,  nas muitas obras de arte que sua presença inspirou.
Aliás, dizem que foi essa moça quem arrancou Picasso dos sombrios azuis da depressão que enfrentou depois do suicídio de seu amigo Casagemas. Ao se tornar sua companheira ela o fez mergulhar em tons mais quentes, mantendo aquecida a cama do artista e, no fogareiro, por maior que fosse a miséria, uma panela de feijões e batatas cozidos com pedaços de toicinho, que Picasso dizia que eram “os ratinhos da Fernande”, referindo-se à fauna circundante. (rsrs)
Pablo Picasso - Portrait de Fernande Olivier au foulard (1906)

Tudo o que já li sobre o casal Fernande/Picasso me autoriza a teclar que essa garota realmente acreditava que o companheiro fosse um gênio mas que não o levava muito a sério e jamais abriu mão da sua própria perspectiva. Por exemplo, forçada que era a acompanhar o amante, todos os sábados, religiosamente, para jantar no apartamento da escritora Gertrude Stein, ela jamais engoliu a americana que, na sua opinião, “queria adotar Picasso, possivelmente para sua própria diversão”(rsrs)
Para Fernande, Picasso era um mestre, um amante competente, um empresário pragmático, seu melhor amigo mas também um “baixinho” querido e uma figura cômica. Dizem que ela resistiu aos avanços do espanhol mesmo depois de se tornarem amantes, que por meses permaneceu ambivalente, sem se comprometer, sua poderosa atração por ele frequentemente tendo que lutar com algo próximo à repulsa.
É que Picasso, apesar de ser um gênio, era um homem de implacável apetite, um indivíduo denso, complicado, veemente, ciumento, enfim, trabalhoso e Fernande não era mulher de abrir espaço em sua vida para problemas. Além disso Picasso não era um namorado mas uma comitiva que compreendia vários amigos e adeptos e devotos e parasitas.
Sabemos disso tudo pela própria Fernande que sobre esse grande amor escreveu dois livros, dos quais só li o primeiro, com o título de Picasso et ses Amis - ou Picasso e seus Amigos. As descrições da lavra de Fernande dos anos compartilhados pelos dois jovens são tão vivazes quanto uma tela cheia de cores e o discurso dela bate com a real. Você quase pode ver as telas descritas, sentir o frio, o bafo dos cigarros, o cheirinho do feijão branco misturado com o da terebintina.
De alguma forma, não faço ideia como, as pretinhas de Fernande são capazes de explicar cada nova etapa da prática de Picasso, naqueles anos mais formativos do artista e o fazem com humor, com um inteligente frescor que nos comunicam não somente as personalidades dela e do amante, não apenas as idéias que levaram o artista ao cubismo, mas também como Picasso foi imensamente devedor dos homens e mulheres que foram capazes de perceber seu talento milagroso quando ele ainda não tinha a noção plena da própria capacidade criativa nem do imenso carisma.
Graças às memórias de Fernande Olivier – ela manteve um diário desde criança – pode-se ler, com detalhes divertidos e informativos, a vida de Picasso no período em que seu trabalho teve seu desenvolvimento mais dramático. As vivas observações da moça sobre as idas e vindas de artistas e escritores, pintores e modelos, mecenas e marchands, colecionadores de arte e loucos de pedra, boêmios, jogadores de cartas e palhaços que fizeram parte da vida do pintor nos anos anteriores à Primeira Guerra Mundial são inestimáveis.
A relação do casal e as interações entre eles e os eventos que afetaram a todos como suicídios e histórias de amor, drogas e banquetes, exposições e saraus de poesia, viagens e leituras são descritos de forma direta e envolvente, e são um excelente espelho da “acrópolis cubista”, como dizia o poeta Max Jacob. Apesar de algumas omissões notáveis nos bytes de memórias de Fernande - muito pouco é dito, por exemplo, sobre Georges Braque, o outro pai do cubismo, ou sobre o quadro Les Demoiselles d'Avignon - quem se interessa pelo desenvolvimento da arte de Picasso e pelo advento do cubismo não tem como ignorar o que Fernande Olivier tem a dizer.
Durante os sete anos de convivência do casal no Bateau Lavoir e depois em um apartamento maior no Boulevard de Clichy e durante os verões que passaram na Espanha ou no campo francês, Fernande passou praticamente todo o seu tempo ao lado do artista. Não importava onde estivessem, cabia a ela fazer companhia ao toureiro, cuidar da casa e entreter seus amigos e, mais importante, proteger sua privacidade quando trabalhava durante a noite.
Ela descreve as ardorosas atenções do jovem artista desde o momento em que se conheceram, como ele construiu um santuário para ela em seu estúdio e da sua alegria quando ela finalmente decidiu morar com ele em 1905. A presença de Fernande, que o artista vigiava ferozmente proibindo-a inclusive de ir a qualquer lugar sem ele e chegando a trancá-la em casa, era claramente essencial para Picasso durante esses anos de luta artística e pessoal.
Ao mesmo tempo ela também revela as dificuldades que experimentou vivendo com um gênio criativo, cujos humores e ciúmes sombrios eram frequentemente dirigidos contra ela e, eventualmente, contribuíram para a ruptura do relacionamento em 1912.
O certo é que as representações de mulheres feitas por Picasso durante os anos em que ele e Fernande viveram juntos refletem essa onipresença dela na sua vida, mas é importante reconhecer que o trabalho dele também revela muitas outras influências e grandes preocupações estilísticas. Seu processo artístico não era tanto uma questão de observação estrita de Fernande, mas uma transformação constante da imagem da companheira, através de experiências repetidas com formas pictóricas diversas, como veremos em futuras conversas.


26/05/2018

Ora bolas!




Ana Nunes

De criança não fui de esportes. Pedia dispensa da aula de educação física, maior bobeira. E uma vez, de passagem, ainda levei uma bolada na cabeça. Freud explica.
Mas hoje... deixo amigos na mão por causa de um jogo de vôlei. Coisas da idade? Às vezes penso que sim. Que velhinho não gosta?

Já fui fissurada por Fórmula 1. Fissura essa que o lindo Sena levou com ele. Será que eu era apaixonada era por ele? Pode ser. Adorava o circuito alemão de Nürburgring que passava por florestas verdes e lindas, dava até para sentir o sussurro do vento mexendo as folhas. E que foi tirado pelo perigo das retas. Imagine, retas fatais! E as curvas, nada?
Mônaco, com certeza! Paisagens e curvas nunca dantes imaginadas. Entrada escura de túnel e freadas sem sutilezas.

Futebol... fogo apagado em Marselha onde éramos chamados Les Enemis! Caramba, se o inimigo era o Roberto Carlos arrumando as meias e o Ronaldo “doente”, não precisava de amigos. Nem ousamos sair do hotel, e o Mano tinha uma festa de encerramento do congresso  num barco. Também queríamos jantar num pequeno restaurante que estava fechado. Enemis de merde! Galicismo flagrante, é que palavrão em francês é menos feio.

Natação, o esporte que pratico. Que me salva das dores artríticas e me  faz tranquila, ensolarada e feliz! À espera de um novo Cielo batendo no peito e uma outra  Maria Lenk para me animar nos dias frios da velhice. Morrer como ela entre pés de pato e palmares deve ser a glória!
Minha reserva de sonhos entre peixinhos coloridos.
Basquete, ainda quero entender muito. Motivada pelos Oscar e Hortência, a Cestinha,  da nossa história. E os saltos  de vara , bela russa Isinbayeva, nossa não menos bela Fabiana Mürer, o cavalo, as barras paralelas, as argolas do forte Arthur Zanetti, orgulho nosso! Patinação artística... confesso que perco noites de sono só para assistir e arrepiar.




E que falar do gentleman Federer, galante, elegante e bonitão? Um gentleman como bem define Maria Ester Bueno, inesquecível essa pelos belos jogos e alegria deixada  gravada na história do país. Passei horas intermináveis vendo duelos de Federer, o suiço, com Nadal, tourinho jovem trazido das terras de Picasso.

Paixão, paixão mesmo, compartilhada há  muito com Mamacita, é o vôlei. Perco festa, perco almoço, perco até a cabeça. E me enamoro dos meninos jogadores e quero adotar as meninas jogadoras. Nossos times com a cara do Brasil de cores todas misturadas, tem branquelo do sul além dos importados, tem morenice cubana abraçando neguinhos e negões do nosso Brasil varonil (será ainda?), até amarelos corrompidos de branco e preto. Sem classes sociais, uns vindos de cima privilegiados, outros do mundo destituído. No conjunto, bonitos mesmo quando feios, com seus sorrisos brancos e bem tratados e suas correntinhas de ouro. Ou correntonas no pescoços cubanos e movimentos precisos de gigantes bem treinados. Os saques e bloqueios do Lucão Machadão como fala o comentarista esportivo Sérgio Maurício, “no capricho!” As passadas dos levantadores Bruninho e William, o Mago. Wallace e suas diagonais curtas e longas, laterais estreitas e certeiras. O jogo está difícil? Passa para Wallace ou Lucareli, eles resolvem! Maurícios e Felipes, Thiago, Isaac no saque, uma lista sem fim e o Murilo agora de levantador. Serginho que deixou saudade na seleção. Essa mesma que parte em busca de um novo título na agora chamada Liga das Nações, onde já coleciona muitas e mais muitas medalhas de ouro com o bravo e bravo Bernardinho.
Vão ficando mais velhos e vão virando treinadores. E aparece um assim feroz como o Bernardinho, que pula, morde bola, perde os óculos e a compostura. Mesmo quando está ganhando! Ou sereno e comportado como o Zé Roberto, um mártir no meio de tanta TPM!

E as meninas?  Lindas e vaidosas com seus cílios rimelados, sobrancelhas prefabricadas e unhas multicoloridas. Cabelos quase todos compridos e mechados, ou californizados, amarrados em rabos e  franjas cheias de presilhas. Uniformes justinhos  mostrando bundinhas redondas e pernas bem fortes.
Tem cubanas atrevidas, filipinas cor de chocolate, japonesas de gritinhos finos, chinesas altas da Ling Ping, a única treinadora mulher chamada de Mão de Ferro quando ainda jogava, turcas de nomes bonitos, russas brancas e poderosas, alemãs louras de olhos bem pintados de preto, tem sérvias e holandesas e francesas, tem cabelos amarelos e vermelhos cor de ferrugem, outros pretos lisos ou cheio de cachinhos que balançam e se espalham alvoroçados quando suas donas dão pulos críveis porque vistos. Tem Tandara, uma explosão de força que ninguém segura. A leveza eficiente da Gabi e a técnica refinada da Fê Garay e  Fabiana, morena alta e bonita com carinha do Piu-Piu “eu vi um gatinho, vi sim, se vi.” Tem Drussyla, Amanda, Roberta e  Dani Lins, tem Bia e companhia. As líberos fantásticas como  Gabizinha, versão feminina do Serginho, a gordinha Suelen que foi acreditada sempre e emagreceu horrores e hoje faz defesas incríveis na seleção brasileira. A competitiva Jaqueline e as gêmeas Nicole e Monique, nunca sei quem é quem, que muitas vezes se pegam em quadras rivais. Ainda a bela Rosamaria, Thaísa, Juciely, Adenísia, Natalia. E muitas outras que a lista é longa.

Elas treinam, jogam e jogam, viajam o país e o mundo e ainda arranjam tempo e espaço para casar e fazer filhinhos. Um arroubo de vida!
E tem a transexual Tifanny, sinal positivo de uma época de menos preconceito. Mas fico pensando se é justo com as adversárias, uma vez que cresceu como homem, desenvolveu força muscular de homem antes de se tornar mulher. Acho que vai sempre ser mais forte. Assunto polêmico. Mesmo assim fico contente com esse passo dado.

E tem os árbitros e juízes de linha, tem video check , tempos pedidos e tempo técnico, bola de check, bola de pipe, bola de meio fundo, dois toques, condução, linha dos três, invasão. E entre esses termos técnicos e meu copinho vou me virando, dando palpites e “ajudando” os comentaristas, Marco Freitas, meu queridinho. E sabidão das coisas. E muitas vezes acerto e eles me repetem e me respondem.

E viva o vôlei!
E viva o tênis para os metidos e burgueses!
E viva o basquete para os fazedores de cesta!
E viva a natação para os da água!
E viva a Fórmula 1 para os apressados! 
E viva o futebol que também sou brasileira!





23/05/2018

A Deusa

Casamento da Marli e do Chico (acervo Francisco Bendl)


Francisco Bendl
Quando um casal se une em matrimônio, além do amor que os motivou a viver juntos, indiscutivelmente o humor se faz necessário nesta relação que pretende ser longa e, supostamente, a única.
Não acredito que dois resmungões, dois mal humorados, consigam viver uma existência exitosa. Torna-se impossível, ainda mais se imaginarmos que um ou outro ou ambos, acordem pela manhã com o mundo atravessado em suas gargantas!
- Bom dia, meu carma.
- Sai prá lá, velho chato!
Quando eu me casei, há quase quarenta e oito anos, afora o amor e paixões que eu tinha pela Marli – e ainda sinto, porém agora estáveis tais sentimentos -, prometi que eu lhe daria uma vida de emoções.
Percebi nesta declaração que seus olhos brilharam, imaginando aos vinte anos quais seriam essas emoções prometidas...
Dez anos depois, os três filhos já crianças, ela se aproxima de mim e diz:
- Chico, cumpriste com a tua promessa, de me dares uma vida de emoções!
Animado pelo reconhecimento, empolguei-me:
- Eu não te disse?!
- Sim, só que estas emoções não seriam em forma de hoje estarmos morando e amanhã uma ação de despejo; um dia se tem dinheiro para comprar alimentos, depois não se tem; agora as roupas dos filhos são transferidas do primogênito para o do meio e deste para o caçula, a ponto que o mais velho está quase nu!!!
Ela continuava a me dizer o quanto estava feliz:
- Eu tenho vergonha de ir trabalhar de chinelos de dedo, usando o mesmo vestido e blusa! Quando que vais dar um jeito nisso, homem do inferno?!
- Amada minha, e vivermos de um modo sem graça, sem emoções, sem altos e baixos?!
- Que altos e baixos, se eu só conheço os subterrâneos da vida?!
O humor tem sérios inimigos, aprendi com o tempo, principalmente quando a mulher não nos entende!
Mas a situação melhorou, e já podíamos residir um ano no mesmo endereço, sem maiores sobressaltos.
Certa feita, inventei de entrar em casa correndo, esbaforido, berrando;
- Ganhei na loto, ganhei na loto! Arruma as malas!
- É para pegar roupas de inverno ou de verão?
- Todas, pois tu vais embora!!!
Mais uma vez fui alvo da incompreensão da amada esposa quando vi que as minhas duas cuecas e um par de calças voaram da sacada até a calçada!
Tive mais trabalho do que eu supunha para a Marli entender as brincadeiras, e mais ainda me preocupei quando ela exclamou:
- Não preciso ganhar prêmio algum para que alguém me leve desta casa, choramingou!
Querendo me chamar à atenção, continuou:
- E se eu soubesse que tu eras tão pobre, eu não teria me casado contigo, para passar o trabalho que estou tendo nesta vida, reclamava.
Eu não podia permitir que o ambiente ficasse tão negativo e contra mim.
Contra-ataquei:
- É, mas não foi por falta de aviso!
- ???
- Eu sempre te disse que tu eras tudo que tenho!!!
A Marli sorri fácil. Seus olhos esverdeados mostram o quanto ela se diverte comigo, a ponto que diz que eu ainda consigo fazê-la dar boas gargalhadas, apesar de o seu humor ser instável.
Ontem, antes de deitar, ela se olha no espelho e comenta:
- Estou tão feia, magra, acabada ... preciso de um elogio, Chico.
- Marli, a tua visão está ótima!
Escapei por pouco de receber a escova na cabeça!
Volta e meia, certamente pelo convívio, ela me prega uma peça.
Dia desses, eu alternava o jogo de futebol com um filme para MUITO adulto.
Lembram do Império dos Sentidos?
Sexo explícito, cenas que nunca se vira antes ...
Pois a Marli ia e vinha, e eu para disfarçar disse:
- Não sei se vejo o jogo ou o filme.
- Por favor, assiste ao filme!
- Por quê?!
- Futebol tu sabes jogar!!!
Ainda estou em dúvidas se ela foi irônica, sutil ou quis me dar um recado, não sei.
Os primeiros anos de casamento foram naturalmente os mais divertidos.
Bastava eu chegar de viagem ou após um dia de trabalho, que dávamos início ao rala e rola, como se diz.
Lembro-me que estávamos no sofá, quando o vizinho do prédio ao lado estava nos vendo.
Ela envergonhada, claro, não sabia o que fazer e, braba, exclama:
- Temos de comprar uma cortina rapidamente, pois e se este imbecil me vê trocando de roupa ou vindo do banho nua?
- Amoreco, se ele te ver trocando de roupa ou nua, ele é que vai comprar a cortina!
A consequência foi um terrível golpe baixo!
Com o tempo, alguns hábitos se tornam arraigados. Momentos que queremos e precisamos para nós mesmos.
O meu era ler o jornal aos domingos pela manhã, atento, compenetrado.
A Marli estava na janela do apartamento, onde volta e meia observava o casal de vizinhos da frente.
Foi quando ela se dirigiu a mim, que não lhe dava a atenção devida e se sai com esta:
- Chico, percebeste como mora o casal da frente? Parecem dois namorados. Todos os dias quando ele chega em casa, ele traz flores para ela, abraça-a, e os dois ficam se beijando apaixonadamente. Por que não fazes o mesmo?!
- Marli, dá licença, eu mal conheço essa mulher!!!
Segundos depois o meu jornal estava em chamas!!!
Falando sério, agora:
As mulheres são fontes inesgotáveis de doações delas mesmas quando abdicam de suas existências pessoais em favor de outro ser humano, pois me vem à mente os filhos deficientes, que somente as mães conseguem dar-lhes amor porque o pai invariavelmente abandona a família nessas circunstâncias, os dependentes químicos, e situações que exigem grande resistência ao sofrimento – distantes obviamente, da trágica condição de irreversibilidade de algumas -, e me lembro também dos presídios durante o horário de visitas.
Filas enormes de pessoas portando sacolas contendo alimentos, bebidas, roupas, cigarros, remédios, correspondências, e a maioria delas é de mulheres.
Lá estão as mães, irmãs, tias, namoradas, esposas, madrinhas, vizinhas, filhas, as avós, que conseguem superar suas idades avançadas para levarem aos netos o seu carinho, apoio, afeto e, principalmente, o perdão a esses homens privados da liberdade como punição pelo que fizeram à sociedade, e vejo poucos homens na fila, meia dúzia, se muito.
Demonstrações incontestáveis de amor incondicional, onde novamente são as mulheres que suportam o sofrimento com estoicismo, denodo e amor, com muito mais galhardia e coragem que nós, os homens, o tal sexo forte.
Mulheres, seres especiais, notadamente as mães, exemplos vivos de sentimentos que os homens não entendem, que não conseguem dimensionar, e que estão à frente desses acontecimentos que exigem solidariedade, conforto e compreensão para quem delas tanto precisam.
Sempre as mulheres, as benditas mulheres.
Na tentativa de ser agradecido à Marli pelo que representa para mim e nossos filhos, certa feita perguntei-lhe se jamais havia pensado como teria sido a criação do mundo ou do Universo, se no lugar de um Deus houvesse uma Deusa.
Pois, reza a Bíblia, o castigo que Deus infligiu às mulheres quando Eva, induzida pelo demônio, come o fruto proibido, desobedecendo ao Criador e levando Adão a cometer o mesmo erro.
Conforme diz a coleção de livros religiosos, o Todo Poderoso condenou o homem a ganhar o pão com o suor do seu rosto e a mulher a parir com dor.
Não houve a segunda chance.
Deus foi implacável, e expulsou o casal do Paraíso.
Pois bem, como que ela – a Marli - teria imaginado o mundo sendo obediente e cultuando uma Deusa, perguntei-lhe?
- Bom, em princípio, eu não teria feito o homem do barro. Eu usaria outro material, mais resistente, mais sólido, que quando chorasse não se derretesse todo – alfinetou.
Sem perder a chance, rapidamente contestei-lhe:
- E de onde que vocês, mulheres, viriam, pois na obra de Deus a mulher surgiu de uma costela de Adão!?
- Evidente que a Deusa não iria utilizar o material que fizera o homem, pois teria feito as mulheres através de um modelo exclusivo, mais maleável conforme o clima, mais precioso, mais elegante, e que jamais o tempo iria plantar as suas rugas. Afinal de contas, a mulher daria sequência à criação!
Achando eu interessante a criatividade quanto às formas como Adão e Eva teriam sido elaborados, continuei:
- Só isso?
- Não, claro que não – a Marli responde rápida. Indiscutivelmente a Deusa nos teria dado vida no céu, sob sua permanente proteção e carinho, embaixo de suas imensas e impermeáveis saias e cores da moda. O filho que não a obedecesse, que errasse novamente e mais uma vez não agisse de forma correta, quem sabe levaria uma palmada ou não comeria sobremesa ou deixaria de ver o futebol na TV, haja vista que a nossa interminável paciência e imensurável compreensão (das mulheres), jamais a Deusa iria aplicar a punição de fazê-los descer à Terra para viver com o demônio, e justamente a sua obra maior, o casal de humanos!
E quanto ao capeta, indaguei?
- Ai dele, do danado, se ele se metesse à besta com um dos Seus filhos. Seria esmagado sem dó nem piedade por Ela, a Deusa, a Mãe de todos!
- Então a humanidade se veria livre das tentações do demônio - eu quis saber?
- Indiscutivelmente que a humanidade seria melhor, pois resguardada do mal desde o início, amada a partir de sua criação e não jogada à própria sorte, ameaças de fogo eterno, castigos horríveis ou de retornos intermináveis a novas vidas como aprendizagem ou desenvolvimento espiritual se não obedecer, servir e amar ao seu Deus (?!), nosso futuro seria mais esperançoso, nossas vidas teriam mais sentido, os sofrimentos infinitamente menores, afinal de contas já estaríamos vivendo no céu, portanto seria somente uma questão de nos adaptarmos ao ambiente – falou com firmeza!
Comecei a achar interessantes seus argumentos, pois a minha intenção inicialmente era imaginar uma situação hilária, com Deus sendo substituído por uma Deusa, e na ótica de uma mulher!
No entanto, a Marli comentava a respeito dessa fantasia com alegações muito fortes, que me deixavam impressionado com as suas razões.
Sem que eu perguntasse, ela seguiu:
- Olha, Chico, a história da religião monoteísta se mistura à história da mulher, pois este mesmo Deus que a punira impiedosamente no passado, iria precisar dela e de seus préstimos mais adiante e, simplesmente, para ser a mãe de Seu Filho!
- De fato, Deus poderia...
- Ouve, não fala – advertiu. Se nós, mulheres, tivéssemos o espírito masculino, certamente Maria teria aproveitado a ocasião quando foi comunicada pelo Arcanjo Gabriel de que seria Mãe de Jesus para negociar com o Todo Poderoso, no mínimo para que a liberasse das dores do parto!
- Bem colocado.
- Eu disse, fica quieto e ouve! Maria consentiu e se manteve calada, respeitosa. Não só sentiu as dores do parto como sofreu terrivelmente com o caminho que seu Filho iria trilhar.
- Posso fazer uma observação?
- Não! Deus é masculino. Seus critérios de justiça e sentimentos pra com os humanos são discutíveis, em meu juízo, respeitosamente, pois o Criador quase que aniquilou com a humanidade em algumas ocasiões, tais como o Dilúvio e depois Sodoma e Gomorra!
- Bom, na condição de pai ele teria de punir os filhos que teriam ido para o caminho do mal...
Ela não me respondeu, e proferia as suas palavras com muita convicção:
- Sem querer ser herege, Chico, ouvimos desde crianças sobre o desentendimento celestial entre Deus e Lúcifer – este último tendo se rebelado contra a vontade divina -, que este seu anjo resplandescente fora condenado a ser o senhor das trevas, o diabo, sendo o seu destino habitar este planeta, a Terra.
- Sim, e daí?
- Tu não tens jeito, né? Espera eu terminar... que coisa! Tem um mistério, presta atenção: Não sabemos se foi uma função que Deus determinou ao amaldiçoado ou foi opção do próprio demônio, que os homens e as mulheres seriam permanentemente tentados a se desviar do caminho da salvação pela besta, em razão exatamente da liberdade que o belzebu iria desfrutar e poder de influência que lhe seria característico sobre a humanidade. Não temos conhecimento se foi ordem de Deus para o diabo agir dessa forma ou se foi esperteza demoníaca nos atazanar a vida!
Nessas alturas, eu me encontrava extasiado com as explicações, mesmo que fruto de sua imaginação, mas que havia questões que geravam dúvidas era indiscutível.
Arrisquei indagar:
- Sim, mas como que Deus resolveria o problema do diabo?
- A bem da verdade é que Deus poderia ter resolvido o imbróglio com satanás desde o início, se quisesse. Bastaria que tivesse vontade de exterminar com o desobediente e maldoso ou enviá-lo para outro lugar no Universo, menos aqui, na Terra, mas Ele não agiu dessa forma. Não só a vida do capeta foi poupada (por muito menos o Senhor dos Exércitos dizimou milhares de humanos) como foi permitido que este ente impuro tentasse até mesmo a vida do Filho de Deus no deserto por quarenta dias e noites!
Envolvido neste raciocínio, que eu ouvia como sendo original, curioso, dei sequência ao exclamar:
- Por que Deus agiu dessa forma?
- A figura divina de Deus é masculina, repito, assim como a do diabo. Não existe o gênero feminino simbolizando diretamente o mal, não há a “diaba” ou a demônia. Todavia, tanto o bem quanto o mal são simbolizados como figuras masculinas, isto é, se por um lado o amor divino que Ele tem por nós acarreta algumas contradições e dúvidas, o mal é absoluto, sádico, covarde e permitido, o que é infinitamente pior!
A Marli continuava, empolgada, caminhando de um lado para outro fazendo as suas observações quanto à criação, se elaborada por uma Deusa:
- Razão pela qual ao nos criar – a meu ver – certamente deveria ter sido diferente o local da nossa criação, deveria ser no céu, livre do satanás e seus poderes maléficos (se alguém apressadamente disser que o Paraíso era o melhor lugar feito por Deus para nós, lembro que o demônio já o habitava, tendo sido no Éden que a pobre da Eva foi enganada pelo belzebu que se travestira de cobra). Lá em cima avaliaríamos muito melhor a situação do diabo e, diante desta ameaça permanente de eterna danação, dificilmente no céu iríamos pecar, ainda mais ao lado do Senhor a nos orientar quando necessário e proteger!
O assunto tinha ido longe demais, pensei.
A Marli está divagando muito e, lá pelas tantas, vai sobrar pra mim algum tipo de “castigo”, eu previa!
- Tá, agora chega dessa tua Deusa, afirmei.
- Não tá gostando, é? Pois vou continuar, e tu vais me ouvir até o fim! Lamentavelmente não foi desta maneira que surgimos à vida, longe do demônio e ao lado do Pai. Fomos feitos na Terra, onde já habitava o gramunhão, o mal personificado mas, surpreendentemente, com liberdade de ação e propósitos para prejudicar a obra mais recente de Deus e colocada no Paraíso por Ele, Adão e Eva. Insinuar-se para a coitada da mulher em forma de serpente para enfeitiçá-la não foi complicado – aliás, não consigo entender esses poderes concedidos ao satanás, inclusive de se transformar no que quiser. Deveríamos ter esta mesma condição para enfrentá-lo, no mínimo, ou seja, cada vez que ele se apresentasse do jeito que imaginasse poderíamos também alterar a nossa aparência ou, investidos de autoridade na defesa da criação divina, repeli-lo com força e determinação sempre que necessário. Quem dera que portássemos as mesmas armas do demônio, claro que eficientes somente para enfrentá-lo, inócuas contra nós mesmos. O resto já sabemos com relação ao nosso castigo como homens e à desafortunada Eva.
Colocando as duas mãos nos cabelos e empurrando-os para trás, como que atribulada por algum pensamento desconfortável, a Marli saiu-se com esta:
- Pobre mulher. Naquele momento crucial ao ser expulsa do Paraíso, humilhada e envergonhada, Deus talvez não tenha se dado conta o suficiente da importância que a mulher teria para os seus planos no futuro, haja vista que ela seria simplesmente o agente que Lhe possibilitaria materializar o Espírito Divino em homem, uma parte Sua transformada em matéria, e que Ele havia condenado inapelavelmente a parir com dor. Sem maiores análises de Deus quanto à punição que dera à mulher quanto a ser exagerada ou até mesmo desnecessária – afinal de contas o mentor intelectual do destino da Eva tinha sido o satanás, que também provocou que a cobra pagasse o pato e que fora inescrupulosamente usada por ele com explícita má intenção, o dissimulado e perverso ser das trevas não foi punido, sequer admoestado! Deus foi injusto, pois utilizou dois pesos e duas medidas. Ora, enquanto Lúcifer tinha sido criado no céu e desceu para este planeta depois de errar contra Ele, nós, humanos, Deus já nos criou na Terra, e só subimos ao céu se não errarmos, e com toda a pressão e invencionice do safado a nos dificultar o objetivo. Deus simplesmente nos deixou convivendo com o satanás nos seus próprios domínios e sujeitos às tentações e influências do maligno!
Querendo terminar com a ilusão que eu sugerira, cujo desenvolvimento me surpreendeu, arrisquei:
- Só se deixa tentar pelo satanás quem quiser ou que se deixa seduzir...
- Tens razão. Quem pode me dizer que tu não és o capeta em forma de gente, Chico?!
Fiquei na sala, sentado na minha poltrona, assistindo TV, quando tive uma ideia brilhante:
- Marli – e olhei para ela com um semblante sugestivo -, erguendo as sobrancelhas e esfregando as mãos, quem sabe hoje à noite trocamos de posição, eim, eim?!
- Grande ideia, Chico, genial! Tu ficas lavando a louça e eu sentada no sofá!!!
Aborrecido, frustrado, afinal das contas eu inventara a história da “deusa”, isto é, impulsionei algum desejo reprimido de a Marli querer justiça para as mulheres, pensei na última tentativa de eu lucrar um pouco com a história.
Esperei que ela deitasse, sedutora na sua camisola e cabelos soltos, aquele cheiro próprio, inebriante, aproximei-me e disse sussurrando em seu ouvido:
- Marli, minha amada, minha deusa, estou sem cueca...
- Não te preocupes, amanhã coloco uma na máquina para lavar, e agora me deixa dormir!
Ah, essas mulheres, imagino se fossem mesmo deusas - pobre de nós, frágeis homens!


20/05/2018

O toureiro da colina

Pablo Picasso - Auto retrato com paleta (1906) - imagem www.pablopicasso.org


Moacir Pimentel
Para quem não teve ainda o prazer de conhecer, apresento Pablo Diego José Francisco de Paula Juan Nepomuceno María de los Remedios Cipriano de la Santísima Trinidad Ruiz y Picasso, ou simplesmente Pablo Picasso, o pintor, escultor e desenhista espanhol que foi reconhecidamente um dos mestres da arte do século XX, um dos artistas mais famosos e versáteis de todo o mundo, tendo criado mais de cinquenta mil trabalhos, não somente pinturas, mas também colagens, esculturas, cerâmicas, gravuras, desenhos, cenários de teatro, usando todos os tipos de materiais.
A pintura que cumprimentou você à porta do post é o famoso Auto Retrato de Picasso com a Paleta pintado em 1906. É uma obra posterior à fase azul do artista mas ainda pré-cubista, de modo que seu cabelo não é azul marinho mas de um negro ibérico apropriado e os olhos, as orelhas e o nariz do jovem Picasso ainda estão virados para uma única direção (rsrs) Embora nesse rosto já haja uma qualidade de “paisagem”, um quê de máscara, Picasso é instantaneamente reconhecido.
Ao misturar as tintas nesse retrato o pintor fez uma clara homenagem a uma outra tela anterior, de tema e título idênticos, só que pintada pelo grande Cézanne. Ambas as obras comunicam uma mesma austeridade, as idênticas concentração e paixão que ambos os pintores, auto retratados, experimentavam por seus ofícios.
Paul Cézanne - Auto retrato com paleta - 1890 (imagem wikiart-org)

Além disso, ao posar com as suas ferramentas de trabalho, Picasso se colocou ombro a ombro não apenas com Cézanne mas com Goya e Velázquez, os seus mestres espanhóis idolatrados, dentro de em uma tradição de retrato clássico de muitos séculos.
Esse auto retrato do toureiro é o trabalho ideal para ilustrar um post que conversa sobre o retrato, sobre o pintor e sobre alguns retratos de Picasso. Mas o que mais me intriga nele é o fato de ter um parentesco qualquer com o retrato triunfante que o artista fez da escritora Gertrude Stein, no mesmo ano.


Ele pintou o retrato de Gertrude quando a era vitoriana mal acabara e sabedor de que, desde o Renascimento, o retrato feminino fora regulado por ideais de beleza e papéis sociais restritos. Ainda assim, ele virou todas as regras do jogo de cabeça para baixo e de pernas para o ar e reinventou o retrato quando, para expressar sua extrema força de caráter, deu a Gertrude não as feições que ela tinha na real, mas a cara de uma deidade ancestral, transformando o rosto da amiga em uma máscara de pedra.
Essa obra prima, revolucionária e desconfortável, desafiou os moldes do retrato ocidental e da representação das mulheres na arte e foi o primeiro passo de um desmantelamento abrangente de tudo que de arte até então se sabia.
A Gertrude eternizada nessa tela não é nem velha nem jovem, sexual ou submissa. Ela simplesmente está no comando de sua identidade, desse rosto de pedra que faz dela algo novo sobre a Terra. Ela é moderna e poderosa como um daqueles ídolos da Ilha de Páscoa de autoridade enigmática.
Pablo Picasso - Retrato de Gertrude Stein - 1906 (imagem wikipedia.org)

Pintado em cores apagadas e silenciadas, o corpo largo dessa senhora enche a tela de Picasso. Sua forma volumosa se impõe, mesmo sentada em um sofá desbotado, pelo jeito como ela apoia os braços e as grandes mãos nas dobras da saia, ao se inclinar rigidamente para frente. Em contraste com a massa arredondada da figura, o rosto tem uma qualidade plana, um efeito aumentado pelo tratamento geométrico dos olhos, nariz e boca e pela modelagem escura que distingue seus contornos angulares do resto da cabeça e do corpo.
A estranha interpretação do pintor da fisionomia de Gertrude Stein reflete, sim, a influência da arte africana e ibérica na cabeça dele mas também faz menção à incapacidade da arte de revelar a verdade sobre um indivíduo. Como muitos artistas europeus à época, Picasso olhava atentamente para a antiga arte primitiva não ocidental como fonte de inspiração, devido à noção colonialista de plantão que considerava as culturas “incivilizadas” mais espiritualmente autênticas do que as europeias.
O artista não somente admirava as qualidades formais dessas influências escultóricas antigas e estrangeiras, como também acreditava que eram mais capazes de comunicar significados e pensamentos mais profundos do que aqueles transmitidos através das tradições estabelecidas pela arte ocidental. Ao trabalhar o retrato de Gertrude Stein nesse estilo primitivo, Picasso reivindicou o direito de representar a mulher como ela realmente era e não apenas graças à semelhança das suas tintas com a mera aparência física dela, que ele rejeitou.
Em 1904, quando Picasso alugou em Montmartre um estúdio em um prédio antigo e em ruínas no número 13 da Rue Ravignan, entrou em contato com o pintor francês Henri Matisse, o preferido do bairro, bem como com a expatriada americana Gertrude Stein, cujo irmão Leo acabara de comprar do seu colega e concorrente fauvista o famoso quadro a Alegria de Viver, fato que deixara o competitivo espanhol roxo de inveja.
Como a sólida criatura da pintura sugere, Gertrude Stein era uma formidável presença na Paris do início do século XX. Além de uma escritora influente, ela era também uma importante colecionadora de arte e famosa pelos saraus que promovia, reunindo em seus salões alguns dos mais brilhantes artistas, escritores e intelectuais de Paris.
Ela tinha trinta e um anos e Picasso vinte e quatro quando se encontraram e as personalidade e a aparência da moça tanto fascinaram o pintor que pouco depois de conhecê-la, no outono de 1905, ele pediu para retratá-la.
Tudo bem que o toureiro esperava cultivar uma amizade com a rica americana cujo gosto pelo estilo inovador e colorido de Matisse o incomodava. Mas acima de tudo e em contraste com as cores brilhantes e os tons sensuais das telas do outro pintor, Picasso queria criar um retrato de e para alguém inteligente no qual lhe fosse possível demonstrar os primórdios das distorções angulares e da experimentação com as formas que caracterizariam sua obra através da invenção do cubismo.
Diz Dona História que, durante o resto daquele inverno, todas as tardes Gertrude subia a colina até o Bateau Lavoir, onde modelava pacientemente, ao lado da fornalha enferrujada do estúdio do pintor, sentada em um grande sofá quebrado, no qual essa mulher monolítica sem quaisquer acessórios femininos “baixava” e assumia a mesma postura autoritária.
O certo é que durante esses meses de exposição diária da modelo ao pintor e vice versa nasceu um poderoso elo entre os dois: um respeito mútuo implacável, um profundo sentimento psíquico que nada tinha de amoroso e que muitas vezes nem mesmo era amigável, mas que foi muito além da amizade. Um sentimento que floresceu, apesar de todo tipo de intrigas e brigas até meados da década de 1930. O certo é que Gertrude Stein foi, inquestionavelmente, uma das mulheres mais importantes na vida de Picasso.
E assim, sob o olhar implacável da modelo, o artista lutou com a tela como se Gertrude fosse uma esfinge – “Decifra-me, ou te devoro!” - cuja imagem possuía a chave do futuro de sua arte. Convenhamos que Gertrude não era fácil! Era a antítese das belezas elegantes da Belle Époque com seus pescoços de cisne envoltos por gargantilhas de pérolas e suas cinturinhas finas. Ela vivia rodeada de belas amigas, dizia que as masculinidades de Picasso e Matisse eram daquela dos gênios (?) e projetava uma nova e controversa imagem feminina.
Se o conceito de uma “nova mulher” intrigava Picasso, não era porque esse misógino de carteirinha – um namorado amoroso, um amante infiel e um marido cruel! - tivesse muita simpatia pela causa da emancipação das mulheres, mas devido à compulsão que ele tinha de criar novas imagens para tudo. Ele perseguia uma visão que nas tintas sintetizasse os sexos na mesma linha da sua insistência de misturar a frente e o verso de uma mulher e o rosto e os órgãos genitais (rsrs) Nos desenhos que ele cometeu de 1907 a 1908 moram idéias para algo que só posso descrever como uma mulher fálica.
O certo é que quanto mais Picasso era ofuscado pelo ego de Gertrude mais dificuldade tinha para administrar o seu retrato. Ele se colocara não só diante da tarefa hercúlea de pintar uma criatura muito peculiar mas de um desafio quase insuperável: além de aceitar a personalidade assustadora da modelo, ainda teria que conciliar Ingres e Cézanne e derrotar Matisse (rsrs)
Complicado!
Depois de mais de três meses de luta incessante à medida que a primavera avançava, incapaz de pintá-la como desejava, Picasso declarou que já não conseguia nem mais olhar para a amiga e/ou para a tela:
“Eu não consigo ver você!”
Obrigado que fora a admitir a derrota, apagou o rosto da moça na tela, jogou a toalha e escafedeu-se para curtir o verão na Espanha.
E lá, longe da presença opressiva de Gertrude, ele conseguiu vê-la claramente: encontrou a chave do enigma e finalmente vislumbrou a fisionomia perfeita para a sua criatura, nas características faciais bem afiadas de um antigo contrabandista que morava em uma remota montanha dos Pireneus e que ele repetidamente desenhou naquele verão, para poder pintá-las de memória quando voltasse a Paris, no retrato de Gertrude.
Disse Gertrude nos seus escritos que, assim que retornou da terra natal, Picasso sentou-se defronte a tela e, em um passe de mágica e em um instante de total inspiração - @#$%&@!!-  pintou seu rosto sem nem mesmo tê-la visto de novo.
Não foi bem assim. Relatos sugerem que o artista ainda labutou com as tintas algumas semanas. Mas é provável que a fonte da inverdade da autora tenha sido o próprio pintor para encobrir algo que a modelo nunca deveria suspeitar: o fato de Picasso ter resolvido de forma angulosa a fisionomia da amiga e colecionadora de suas telas e concluído o retrato que hoje é visto como um dos marcos do início do cubismo, simplesmente porque visualizara o real semblante da poderosa e temida Gertrude Stein, na castigada cara de um camponês espanhol de noventa anos (rsrs)
O certo é que sobre o seu retrato ela escreveu:
“Para mim, sou eu. E é a única reprodução de mim, que é sempre eu”.
A arte de Picasso é criticada porque esperamos que ela seja muito mais fácil e rasa do que ele foi. O maior artista do século XX foi, na realidade, um pintor dos mistérios da percepção e do ser. Sua visão, bem compreendida, é a mais libertadora já criada na arte. Um opressor das mulheres? Será? Olhe novamente, por favor, e de novo até a próxima conversa sobre mais retratos do toreador.