Moacir Pimentel
Quem olha com atenção para essa dolorosa Madame
Benedetta Canals, entende perfeitamente os sentimentos de Pablo Picasso e se
solidariza com ele, coitado, que cobiçou em vão essa deusa que, por acaso, era
a esposa de seu melhor amigo. O que foi inicialmente um “olhar de pintor”
tornou-se um olhar fixo e cativo, hipnotizado e vergonhosamente incapaz de se
desviar. Essa senhora foi pintada em Montmartre em um trabalho que é, na minha
modesta opinião, um dos retratos femininos mais altivos e sedutores da história
da pintura.
Escolhi a tela para abrir o post porque o retrato
de Benedetta ilustra perfeitamente que, ao longo da larga e longa avenida
artística trilhada por Pablo Picasso, de um lado moram as obras pertencentes ao
desenvolvimento intelectual-estilístico do artista, as telas que são o
resultado de seu crescimento e progresso. Já do outro nos acenam e encantam as
telas que brotaram diretamente do enredo biográfico do homem, que só podem ser
entendidas como as notas musicais específicas de sua sonata íntima, anotações
de pé de página em seu diário pessoal. Este retrato claramente pertence ao
segundo departamento.
Quando pintou Benedetta, Picasso já deixara para
trás o seu tristonho período azul para entrar no chamado período rosa no qual o
mundo do circo se tornaria o assunto principal. Apesar de ter as cores mornas,
esse rosto sério e adornado apenas por uma rica mantilha de renda negra está em
desacordo com os temas que ele explorou na mesma época. Nessa pintura, o
artista usou elementos tipicamente espanhóis, que eram recorrentes nas telas
muito populares - porque o exotismo de tudo que era espanhol fascinava os
franceses! - do seu amigo e pintor Ricard Canals que –adivinha? – era o marido
da moça.
Na obra são claras as influências dos grandes
mestres da pintura, pois Benedetta nos traz à mente a espiritualidade
harmoniosa das senhoras de Velázquez e aquele foco que Ingres dava aos rostos
de suas personagens contra fundos lisos e neutros. Mas apesar de ser um ponto
fora da curva cor de rosa ou da cubista, essa Senhora Canals, tão linda com
seus olhos escuros e pele branca, nos sussurra que aí Picasso já fazia a
exploração de um novo limite: o retrato psicológico.
Os retratos de Picasso exemplificam perfeitamente
tanto as surpreendentes vitalidade e variedade da arte dele quanto a revolução
inovadora causada por ela. O artista pintou retratos das sete mulheres de sua
vida - “ufa!” - de familiares, de amigos e de amantes que revelam os seus
processos criativos enquanto se movia livremente entre o desenho da vida, a
caricatura humorística e as tintas expressivas das suas memórias, tudo isso
enquanto esfaqueava a forma, virava-a pelo avesso para depois tornar a colocar
tudo nos devidos lugares. Ele demoliu tudo o que as pessoas acreditavam por
dois mil anos que um retrato deveria ser e, em seguida, continuou pintando mais
retratos.
E, inclusive, pintou uma outra espanhola de
mantilha para chamar de sua, que recebeu do artista um tratamento mais
expressionista, nas proporções atenuadas e contornos que revelam alguma
semelhança com as formas delicadas e alongadas de El Greco. Nunca simplesmente
um cronista de fatos empíricos, Picasso aqui dotou outra mulher com uma
presença poética e quase espiritual. A tela de nome Fernande com uma Mantilha Negra é um trabalho de transição, de
tonalidade subjugada e pinceladas vivas, simbolizando de novo e de forma
romântica as origens espanholas não da Fernande mas do artista.
Pablo Picasso - Fernande à la mantille noire (1905) |
Esse belo rosto de feições abreviadas, no entanto,
já profetiza o crescente interesse de Picasso pelas qualidades abstraídas e a
solidez da escultura ibérica, o que influenciaria profundamente suas obras
subsequentes. Essa pintura mostra afeto e paz enquanto anuncia mudanças.
E antes que você me pergunte quem é a segunda mulher
retratada com uma mantilha, adianto que trata-se da parisiense Fernande
Olivier, a primeira amante de Picasso, aquela que dividiu com ele a pobreza
extrema de um ateliê que mais parecia um armário, enquanto ele pintava Les
Demoiselles d'Avignon.
Porém... deixe que também lhe diga que, enquanto
ele pintava o retrato da primeira senhora de mantilha, a linda Benedetta, os
laços de amizade de Picasso com o pintor Ricard Canals muito se fortaleceram e
que no Bateau Lavoir os dois casais - Picasso e Fernande, e Canals e Benedetta
- estabeleceram uma amizade muito estreita. De acordo com relatos da própria
Fernande, Picasso passava os dias no estúdio de Canals e Benedetta usava de
suas lendárias habilidades culinárias e fazia milagres para alimentar a todos
quando os recursos econômicos eram escassos (rsrs)
Fernande Olivier na verdade nascera Amélie Lang, a
se acreditar na sua certidão de nascimento, na qual o pai é desconhecido. A
julgar pela frequência com que os escritores e atores parisienses usavam
pseudônimos à época, Fernande seguia claramente uma prática da moda. Para os
amigos do Bateau Lavoir, entretanto, ela não fazia nenhum segredo de seu nome
verdadeiro.
Tanto que André Salmon em suas memórias refere-se à
amante do amigo como “la belle Fernande” ou como “la jeune Amélie”. Ela foi a
primeira mulher, além da mãe e das irmãs do artista, a desempenhar um papel e a
ocupar um lugar importantes na vida desse homem, cuja obra sempre esteve
intimamente ligada ao seu mundo privado e interior. E então o relacionamento de
Picasso com Fernande se reflete, é claro, nas muitas obras de arte que sua presença
inspirou.
Aliás, dizem que foi essa moça quem arrancou
Picasso dos sombrios azuis da depressão que enfrentou depois do suicídio de seu
amigo Casagemas. Ao se tornar sua companheira ela o fez mergulhar em tons mais
quentes, mantendo aquecida a cama do artista e, no fogareiro, por maior que
fosse a miséria, uma panela de feijões e batatas cozidos com pedaços de
toicinho, que Picasso dizia que eram “os
ratinhos da Fernande”, referindo-se à fauna circundante. (rsrs)
Pablo Picasso - Portrait de Fernande Olivier au foulard (1906) |
Tudo o que já li sobre o casal Fernande/Picasso me
autoriza a teclar que essa garota realmente acreditava que o companheiro fosse
um gênio mas que não o levava muito a sério e jamais abriu mão da sua própria
perspectiva. Por exemplo, forçada que era a acompanhar o amante, todos os
sábados, religiosamente, para jantar no apartamento da escritora Gertrude
Stein, ela jamais engoliu a americana que, na sua opinião, “queria adotar Picasso, possivelmente para
sua própria diversão”(rsrs)
Para Fernande, Picasso era um mestre, um amante
competente, um empresário pragmático, seu melhor amigo mas também um “baixinho” querido e uma figura cômica. Dizem
que ela resistiu aos avanços do espanhol mesmo depois de se tornarem amantes,
que por meses permaneceu ambivalente, sem se comprometer, sua poderosa atração
por ele frequentemente tendo que lutar com algo próximo à repulsa.
É que Picasso, apesar de ser um gênio, era um homem
de implacável apetite, um indivíduo denso, complicado, veemente, ciumento,
enfim, trabalhoso e Fernande não era mulher de abrir espaço em sua vida para
problemas. Além disso Picasso não era um namorado mas uma comitiva que
compreendia vários amigos e adeptos e devotos e parasitas.
Sabemos disso tudo pela própria Fernande que sobre
esse grande amor escreveu dois livros, dos quais só li o primeiro, com o título
de Picasso et ses Amis - ou Picasso e seus Amigos. As descrições da lavra de Fernande dos anos
compartilhados pelos dois jovens são tão vivazes quanto uma tela cheia de cores
e o discurso dela bate com a real. Você quase pode ver as telas descritas,
sentir o frio, o bafo dos cigarros, o cheirinho do feijão branco misturado com
o da terebintina.
De alguma forma, não faço ideia como, as pretinhas
de Fernande são capazes de explicar cada nova etapa da prática de Picasso,
naqueles anos mais formativos do artista e o fazem com humor, com um
inteligente frescor que nos comunicam não somente as personalidades dela e do
amante, não apenas as idéias que levaram o artista ao cubismo, mas também como
Picasso foi imensamente devedor dos homens e mulheres que foram capazes de
perceber seu talento milagroso quando ele ainda não tinha a noção plena da
própria capacidade criativa nem do imenso carisma.
Graças às memórias de Fernande Olivier – ela
manteve um diário desde criança – pode-se ler, com detalhes divertidos e
informativos, a vida de Picasso no período em que seu trabalho teve seu
desenvolvimento mais dramático. As vivas observações da moça sobre as idas e
vindas de artistas e escritores, pintores e modelos, mecenas e marchands,
colecionadores de arte e loucos de pedra, boêmios, jogadores de cartas e
palhaços que fizeram parte da vida do pintor nos anos anteriores à Primeira
Guerra Mundial são inestimáveis.
A relação do casal e as interações entre eles e os
eventos que afetaram a todos como suicídios e histórias de amor, drogas e
banquetes, exposições e saraus de poesia, viagens e leituras são descritos de
forma direta e envolvente, e são um excelente espelho da “acrópolis cubista”,
como dizia o poeta Max Jacob. Apesar de algumas omissões notáveis nos bytes de
memórias de Fernande - muito pouco é dito, por exemplo, sobre Georges Braque, o
outro pai do cubismo, ou sobre o quadro Les Demoiselles d'Avignon - quem se
interessa pelo desenvolvimento da arte de Picasso e pelo advento do cubismo não
tem como ignorar o que Fernande Olivier tem a dizer.
Durante os sete anos de convivência do casal no
Bateau Lavoir e depois em um apartamento maior no Boulevard de Clichy e durante
os verões que passaram na Espanha ou no campo francês, Fernande passou
praticamente todo o seu tempo ao lado do artista. Não importava onde
estivessem, cabia a ela fazer companhia ao toureiro, cuidar da casa e entreter
seus amigos e, mais importante, proteger sua privacidade quando trabalhava
durante a noite.
Ela descreve as ardorosas atenções do jovem artista
desde o momento em que se conheceram, como ele construiu um santuário para ela
em seu estúdio e da sua alegria quando ela finalmente decidiu morar com ele em
1905. A presença de Fernande, que o artista vigiava ferozmente proibindo-a
inclusive de ir a qualquer lugar sem ele e chegando a trancá-la em casa, era
claramente essencial para Picasso durante esses anos de luta artística e
pessoal.
Ao mesmo tempo ela também revela as dificuldades
que experimentou vivendo com um gênio criativo, cujos humores e ciúmes sombrios
eram frequentemente dirigidos contra ela e, eventualmente, contribuíram para a
ruptura do relacionamento em 1912.
O certo é que as representações de mulheres feitas
por Picasso durante os anos em que ele e Fernande viveram juntos refletem essa
onipresença dela na sua vida, mas é importante reconhecer que o trabalho dele
também revela muitas outras influências e grandes preocupações estilísticas.
Seu processo artístico não era tanto uma questão de observação estrita de
Fernande, mas uma transformação constante da imagem da companheira, através de
experiências repetidas com formas pictóricas diversas, como veremos em futuras
conversas.