Moacir Pimentel
Quem olha com atenção para essa dolorosa Madame
Benedetta Canals, entende perfeitamente os sentimentos de Pablo Picasso e se
solidariza com ele, coitado, que cobiçou em vão essa deusa que, por acaso, era
a esposa de seu melhor amigo. O que foi inicialmente um “olhar de pintor”
tornou-se um olhar fixo e cativo, hipnotizado e vergonhosamente incapaz de se
desviar. Essa senhora foi pintada em Montmartre em um trabalho que é, na minha
modesta opinião, um dos retratos femininos mais altivos e sedutores da história
da pintura.
Escolhi a tela para abrir o post porque o retrato
de Benedetta ilustra perfeitamente que, ao longo da larga e longa avenida
artística trilhada por Pablo Picasso, de um lado moram as obras pertencentes ao
desenvolvimento intelectual-estilístico do artista, as telas que são o
resultado de seu crescimento e progresso. Já do outro nos acenam e encantam as
telas que brotaram diretamente do enredo biográfico do homem, que só podem ser
entendidas como as notas musicais específicas de sua sonata íntima, anotações
de pé de página em seu diário pessoal. Este retrato claramente pertence ao
segundo departamento.
Quando pintou Benedetta, Picasso já deixara para
trás o seu tristonho período azul para entrar no chamado período rosa no qual o
mundo do circo se tornaria o assunto principal. Apesar de ter as cores mornas,
esse rosto sério e adornado apenas por uma rica mantilha de renda negra está em
desacordo com os temas que ele explorou na mesma época. Nessa pintura, o
artista usou elementos tipicamente espanhóis, que eram recorrentes nas telas
muito populares - porque o exotismo de tudo que era espanhol fascinava os
franceses! - do seu amigo e pintor Ricard Canals que –adivinha? – era o marido
da moça.
Na obra são claras as influências dos grandes
mestres da pintura, pois Benedetta nos traz à mente a espiritualidade
harmoniosa das senhoras de Velázquez e aquele foco que Ingres dava aos rostos
de suas personagens contra fundos lisos e neutros. Mas apesar de ser um ponto
fora da curva cor de rosa ou da cubista, essa Senhora Canals, tão linda com
seus olhos escuros e pele branca, nos sussurra que aí Picasso já fazia a
exploração de um novo limite: o retrato psicológico.
Os retratos de Picasso exemplificam perfeitamente
tanto as surpreendentes vitalidade e variedade da arte dele quanto a revolução
inovadora causada por ela. O artista pintou retratos das sete mulheres de sua
vida - “ufa!” - de familiares, de amigos e de amantes que revelam os seus
processos criativos enquanto se movia livremente entre o desenho da vida, a
caricatura humorística e as tintas expressivas das suas memórias, tudo isso
enquanto esfaqueava a forma, virava-a pelo avesso para depois tornar a colocar
tudo nos devidos lugares. Ele demoliu tudo o que as pessoas acreditavam por
dois mil anos que um retrato deveria ser e, em seguida, continuou pintando mais
retratos.
E, inclusive, pintou uma outra espanhola de
mantilha para chamar de sua, que recebeu do artista um tratamento mais
expressionista, nas proporções atenuadas e contornos que revelam alguma
semelhança com as formas delicadas e alongadas de El Greco. Nunca simplesmente
um cronista de fatos empíricos, Picasso aqui dotou outra mulher com uma
presença poética e quase espiritual. A tela de nome Fernande com uma Mantilha Negra é um trabalho de transição, de
tonalidade subjugada e pinceladas vivas, simbolizando de novo e de forma
romântica as origens espanholas não da Fernande mas do artista.
Pablo Picasso - Fernande à la mantille noire (1905) |
Esse belo rosto de feições abreviadas, no entanto,
já profetiza o crescente interesse de Picasso pelas qualidades abstraídas e a
solidez da escultura ibérica, o que influenciaria profundamente suas obras
subsequentes. Essa pintura mostra afeto e paz enquanto anuncia mudanças.
E antes que você me pergunte quem é a segunda mulher
retratada com uma mantilha, adianto que trata-se da parisiense Fernande
Olivier, a primeira amante de Picasso, aquela que dividiu com ele a pobreza
extrema de um ateliê que mais parecia um armário, enquanto ele pintava Les
Demoiselles d'Avignon.
Porém... deixe que também lhe diga que, enquanto
ele pintava o retrato da primeira senhora de mantilha, a linda Benedetta, os
laços de amizade de Picasso com o pintor Ricard Canals muito se fortaleceram e
que no Bateau Lavoir os dois casais - Picasso e Fernande, e Canals e Benedetta
- estabeleceram uma amizade muito estreita. De acordo com relatos da própria
Fernande, Picasso passava os dias no estúdio de Canals e Benedetta usava de
suas lendárias habilidades culinárias e fazia milagres para alimentar a todos
quando os recursos econômicos eram escassos (rsrs)
Fernande Olivier na verdade nascera Amélie Lang, a
se acreditar na sua certidão de nascimento, na qual o pai é desconhecido. A
julgar pela frequência com que os escritores e atores parisienses usavam
pseudônimos à época, Fernande seguia claramente uma prática da moda. Para os
amigos do Bateau Lavoir, entretanto, ela não fazia nenhum segredo de seu nome
verdadeiro.
Tanto que André Salmon em suas memórias refere-se à
amante do amigo como “la belle Fernande” ou como “la jeune Amélie”. Ela foi a
primeira mulher, além da mãe e das irmãs do artista, a desempenhar um papel e a
ocupar um lugar importantes na vida desse homem, cuja obra sempre esteve
intimamente ligada ao seu mundo privado e interior. E então o relacionamento de
Picasso com Fernande se reflete, é claro, nas muitas obras de arte que sua presença
inspirou.
Aliás, dizem que foi essa moça quem arrancou
Picasso dos sombrios azuis da depressão que enfrentou depois do suicídio de seu
amigo Casagemas. Ao se tornar sua companheira ela o fez mergulhar em tons mais
quentes, mantendo aquecida a cama do artista e, no fogareiro, por maior que
fosse a miséria, uma panela de feijões e batatas cozidos com pedaços de
toicinho, que Picasso dizia que eram “os
ratinhos da Fernande”, referindo-se à fauna circundante. (rsrs)
Pablo Picasso - Portrait de Fernande Olivier au foulard (1906) |
Tudo o que já li sobre o casal Fernande/Picasso me
autoriza a teclar que essa garota realmente acreditava que o companheiro fosse
um gênio mas que não o levava muito a sério e jamais abriu mão da sua própria
perspectiva. Por exemplo, forçada que era a acompanhar o amante, todos os
sábados, religiosamente, para jantar no apartamento da escritora Gertrude
Stein, ela jamais engoliu a americana que, na sua opinião, “queria adotar Picasso, possivelmente para
sua própria diversão”(rsrs)
Para Fernande, Picasso era um mestre, um amante
competente, um empresário pragmático, seu melhor amigo mas também um “baixinho” querido e uma figura cômica. Dizem
que ela resistiu aos avanços do espanhol mesmo depois de se tornarem amantes,
que por meses permaneceu ambivalente, sem se comprometer, sua poderosa atração
por ele frequentemente tendo que lutar com algo próximo à repulsa.
É que Picasso, apesar de ser um gênio, era um homem
de implacável apetite, um indivíduo denso, complicado, veemente, ciumento,
enfim, trabalhoso e Fernande não era mulher de abrir espaço em sua vida para
problemas. Além disso Picasso não era um namorado mas uma comitiva que
compreendia vários amigos e adeptos e devotos e parasitas.
Sabemos disso tudo pela própria Fernande que sobre
esse grande amor escreveu dois livros, dos quais só li o primeiro, com o título
de Picasso et ses Amis - ou Picasso e seus Amigos. As descrições da lavra de Fernande dos anos
compartilhados pelos dois jovens são tão vivazes quanto uma tela cheia de cores
e o discurso dela bate com a real. Você quase pode ver as telas descritas,
sentir o frio, o bafo dos cigarros, o cheirinho do feijão branco misturado com
o da terebintina.
De alguma forma, não faço ideia como, as pretinhas
de Fernande são capazes de explicar cada nova etapa da prática de Picasso,
naqueles anos mais formativos do artista e o fazem com humor, com um
inteligente frescor que nos comunicam não somente as personalidades dela e do
amante, não apenas as idéias que levaram o artista ao cubismo, mas também como
Picasso foi imensamente devedor dos homens e mulheres que foram capazes de
perceber seu talento milagroso quando ele ainda não tinha a noção plena da
própria capacidade criativa nem do imenso carisma.
Graças às memórias de Fernande Olivier – ela
manteve um diário desde criança – pode-se ler, com detalhes divertidos e
informativos, a vida de Picasso no período em que seu trabalho teve seu
desenvolvimento mais dramático. As vivas observações da moça sobre as idas e
vindas de artistas e escritores, pintores e modelos, mecenas e marchands,
colecionadores de arte e loucos de pedra, boêmios, jogadores de cartas e
palhaços que fizeram parte da vida do pintor nos anos anteriores à Primeira
Guerra Mundial são inestimáveis.
A relação do casal e as interações entre eles e os
eventos que afetaram a todos como suicídios e histórias de amor, drogas e
banquetes, exposições e saraus de poesia, viagens e leituras são descritos de
forma direta e envolvente, e são um excelente espelho da “acrópolis cubista”,
como dizia o poeta Max Jacob. Apesar de algumas omissões notáveis nos bytes de
memórias de Fernande - muito pouco é dito, por exemplo, sobre Georges Braque, o
outro pai do cubismo, ou sobre o quadro Les Demoiselles d'Avignon - quem se
interessa pelo desenvolvimento da arte de Picasso e pelo advento do cubismo não
tem como ignorar o que Fernande Olivier tem a dizer.
Durante os sete anos de convivência do casal no
Bateau Lavoir e depois em um apartamento maior no Boulevard de Clichy e durante
os verões que passaram na Espanha ou no campo francês, Fernande passou
praticamente todo o seu tempo ao lado do artista. Não importava onde
estivessem, cabia a ela fazer companhia ao toureiro, cuidar da casa e entreter
seus amigos e, mais importante, proteger sua privacidade quando trabalhava
durante a noite.
Ela descreve as ardorosas atenções do jovem artista
desde o momento em que se conheceram, como ele construiu um santuário para ela
em seu estúdio e da sua alegria quando ela finalmente decidiu morar com ele em
1905. A presença de Fernande, que o artista vigiava ferozmente proibindo-a
inclusive de ir a qualquer lugar sem ele e chegando a trancá-la em casa, era
claramente essencial para Picasso durante esses anos de luta artística e
pessoal.
Ao mesmo tempo ela também revela as dificuldades
que experimentou vivendo com um gênio criativo, cujos humores e ciúmes sombrios
eram frequentemente dirigidos contra ela e, eventualmente, contribuíram para a
ruptura do relacionamento em 1912.
O certo é que as representações de mulheres feitas
por Picasso durante os anos em que ele e Fernande viveram juntos refletem essa
onipresença dela na sua vida, mas é importante reconhecer que o trabalho dele
também revela muitas outras influências e grandes preocupações estilísticas.
Seu processo artístico não era tanto uma questão de observação estrita de
Fernande, mas uma transformação constante da imagem da companheira, através de
experiências repetidas com formas pictóricas diversas, como veremos em futuras
conversas.
Moacir,
ResponderExcluirAgradeço-lhe pelos retratos que me mostrou no artigo anterior e estou simplesmente fascinada pelos de hoje. Como você bem disse eles ‘ são anotações de pé de página num diário pessoal'. Adoro conhecer as biografias dos artistas porque sem elas é muito mais difícil decifrar a psicologia das obras. Estou ansiosa para ler sobre os retratos cubistas de Picasso mas acho que a excelência dele como retratista não tem nada a ver com o estilo. O que faz os retratos dele fantásticos é capacidade que tinha de ver e mostrar o orgulho de Benedetta numa sobrancelha levantada e a personalidade calorosa de Fernande com as cores etc. Pelo pouco que vi ele não não parou no cubismo. Criou suas próprias regras e continuou pintando amigos e amores como queria. Parabéns por este artigo maravilhoso tão do meu agrado !
Um abraço para você
Flávia,
ExcluirNesse ou no século passado, não conheço melhores retratos do que pelo menos seis da lavra de Picasso, os tardios de Cézanne excluídos e, é claro, os de Matisse chegando bem perto. Porém nada é melhor do que confrontar os retratos das sete senhoras da vida dele – evisceradas à serviço de sua arte - para exemplificar as qualidade e variedade do trabalho desse homem, não importa em que ismo. Ele simplesmente dependia delas - ou da paixão que lhe provocavam - para criar. O fato é que eternizou-as ternas e belas, repuxou-as em formas torturadas, inventou-as nuas, neuróticas e chorosas, cortou-as em pedaços e reconfigurou-as nas telas. Por mais angustiantes que essas imagens sejam, resultaram de dramas da vida real, inspirando a evolução de novas linguagens visuais em dezenas de milhares de pinturas, desenhos e gravuras, nos quais Picasso tentava capturar não apenas a aparência das moças mas a totalidade de seus sentimentos por elas.
Acho interessante que se fale muito pouco da belíssima Jacqueline Picasso - a última e a mais reservada das senhoras do harém - pintada exaustivamente pelo marido. Só em 1963 - aos oitenta anos! - ele pintou-a duas centenas de vezes! Gostava de mostrá-la de perfil, uma clássica beleza mediterrânea com um longo pescoço e porte ereto.
https://arthive.com/artists/3706~Pablo_Picasso/works/196693~Jacqueline_with_flowers
Mas em um segundo desenho, meses depois, ele transformou a jovem mulher, que ainda não completara trinta anos, em sua viúva. Jacqueline foi retratada toda de preto, a cabeça coberta por um lenço, metade do rosto na luz, a outra na sombra, a derradeira das espanholas honorária e talvez a mãe de um filho idoso.
https://arthive.com/artists/3706~Pablo_Picasso/works/487120~Jacqueline_in_a_black_scarf#show
Essas duas imagens resumem os vinte anos que passaram juntos, sem nada do que caracterizara as duas relações amorosas pretéritas: turbulência, violência, sexualidade, lágrimas, traição e angústia. Os retratos de Jacqueline falam, em vez, de domesticidade, de ternura conjugal , de um triste amor face à morte que se aproximava.Aguarde mais retratos pela frente (rsrs)
Outro abraço para você.
Obrigada!
Excluir1)Moacir nos mostra belamente em seu texto que o amor movia a arte de Pablo Pintor: amor ao belo, às mulheres, aos seres humanos, à natureza multicolorida. Parabéns aos dois: Pimentel e Picasso !
ResponderExcluir2)Licença pessoal = estamos na Semana de Corpus Christ e, curiosamente, hoje, 29/05/17 é a Festa Budista do Vesak (Lua Chaia de Maio)qdo celebramos o nascimento, a iluminação e o falecimento de Buda.
3) https://www.youtube.com/watch?v=nUDVOUY_I0Y
Ecumenicamente saúdo as duas grandes datas com um ótimo filme que marcou época.
4)Nosso país anda conturbado, penso que precisamos das mensagens desses dois: Buda e Cristo, para colocarmos no prumo certo nosso cotidiano.
5) Vejam a mensagem da música = Lutar é Orar (pacificamente)!
Antoniji,
ExcluirEu já cheguei à conclusão que no nosso tempo de vida as nossas praias não darão certo. Um grande jornalista, dia desses, escreveu sobre “o fracasso é de um coletivo chamado Brasil”. Ou seja individualmente quem disse que fracassamos? A nossa tchurma já o foi o futuro. Hoje já passamos esse bastão. No meu caso, quatro vezes. Então nos resta tentar ser feliz agora e aqui, como na canção do filme: um happy day de cada vez. E tentar ficar bem longe da estupidez humana nesses tempos sem lei, esperança, autoridade, tolerância e respeito. Sim oremos e filosofemos: "o mal pode gerar o bem afinal só se pode desejar o que não se tem". Se isso acontecer, prometo contar a vocês (rsrs)
Bom feriadão e namastê!
Parabéns a esse incrível Escritor, Viajante desde a juventude e conhecedor profundo das Artes em geral, e em especial da Pintura, porque sabe despertar grande interesse em tudo o que Escreve, mesmo quando escreve sobre Pintura Abstrata.
ResponderExcluirEsse Dom que o sr. MOACIR PIMENTEL tem, de escrever maravilhosamente bem, segundo os Hebreus que a praticam a quase 6.000 Anos, a "mais difícil das Artes", o Escritor Sr. MOACIR PIMENTAL domina perfeitamente essa "mais difícil das Artes", pois que, mesmo a um leitor como eu, nem um pouco versado em Pintura Abstrata, nas sutilezas dos modernos estilos Pictóricos, a gente lê até o fim com o maior prazer.
Saudações.
Prezado Bortolotto,
ExcluirMuito obrigado pelas suas boas palavras. Saber que um leitor do seu quilate lê um dos meus loooongos textos até o ponto final e “com o maior prazer”, é uma imensa honra e um maior ainda incentivo. Confesso que o meu maior receio é justamente entendiar o leitorado. Por isso tento dar aos meus rabiscos o tom e as pausas de uma conversa na mesa do bar virtual. Afinal o objetivo de todas as linguagens é a comunicação e a pintura é só isso: mais uma linguagem.
O modernismo nas tintas foi o resultado de um longo processo intelectual que, na minha opinião, começou lá atrás na virada dos séculos XVI e XVII, com El Greco. A questão é : o observador precisa ter conhecimento de causa para apreciar Dona Arte? Desconfio que ela precisa se defender sozinha, sem explicações e ou legendas. No entanto considero que, especialmente no caso do cubismo, conhecer os objetivos dos crimes fornece um ponto de partida para se pensar nas estranhezas que estamos vendo e que se aprofundarão nos próximos capítulos (rsrs) Portanto e por favor, aperte o cinto, não desanime e continue lendo porque muito mais importante do que a intenção e o resultado de quem faz arte é a interpretação de quem a vê.
Abração
Benedeta é simplesmente bela e o seu texto delicioso apesar dos ratinhos da Fernande kkk Mas não ia ter ‘tons quentes’ ou conversa que me fizessem viver trancada numa casa controlada por um gênio ciumento. Fala sério! No cubismo acho que tem obras que parecem feitas por artistas com pensamentos suicidas mas vou lendo com atenção porque quero ver como são a beleza linda e a beleza feia que você fala kkk Tem hora que penso que a beleza no mundo da arte virou piada, uma coisa idiota e fora de moda. Obrigada!
ResponderExcluirMônica,
ExcluirTodos os vanguardistas das tintas têm nos ensinado há séculos que algo é considerado “bonito” quando está de acordo com o gosto padrão e classificado como “feio” quando confronta a sensibilidade de plantão. A “beleza linda” da Benedetta dá testemunho de que Picasso foi um excelente desenhista e pintor e que, portanto, era perfeitamente capaz de fazer uma pintura realista de qualquer coisa e/ou pessoa. Então, quando das distorções das suas “belezas feias”, é razoável supor que ele estava tentando fazer e dizer outra coisa, certo?
https://upload.wikimedia.org/wikipedia/en/8/8f/Pablo_Picasso%2C_1909-10%2C_Figure_dans_un_Fauteuil_%28Seated_Nude%2C_Femme_nue_assise%29%2C_oil_on_canvas%2C_92.1_x_73_cm%2C_Tate_Modern%2C_London.jpg
Saber o que essa outra coisa era - pintar várias facetas de um objeto tridimensional em um espaço bidimensional – ajuda a enxergar a pintura de uma maneira diferente, a descobrir aspectos do trabalho que não seriam apreciados sem essa compreensão. Como com qualquer coisa na vida, quanto mais você olha, menos você precisa de ajuda. Porém saber porque os caras geometrizaram e sintetizaram e colaram a realidade não fará você , em um passe de mágica, “amar” os objetos desfigurados e/ou as figuras humanas angularizadas, sem as curvas naturais que tendem a torná-las mais esteticamente agradáveis. Mesmo os "sabichões" vão sempre “amar ou odiar” ou ficar indiferentes à uma obra de arte.É você quem decide!
"Obrigado!" e abração
Eu não sabia que em Guernica o touro era o próprio nem que as bombardeadas eram as amantes dele. Faz sentido, rs. Mas isto apenas confirma que ele não estava realmente interessado em retratar coisa nenhuma. Fazia uma espécie de auto-representação obstinada. Um crime brilhante e continuado. Estou exagerando? Si, pero non mucho, rs. Picasso realmente produziu grandes pinturas. Fez uma obra fantástica da vida dele, tornando sua personalidade parte do seu trabalho. Ele é o fim de uma linhagem de megalomaníacos, de indivíduos. Mas seu trabalho é como ouvir a bela música de Louis Armstrong. É o passado.
ResponderExcluirMárcio,
ExcluirAí é que está: a Guernica de Picasso é seu enredo pessoal mas nem por isso deixa de representar o bombardeio aéreo alemão sobre a cidade espanhola na Guerra Civil, certo? Olhando para a tela se pode ver as mães em desespero, as mulheres gritando, os prédios ruindo, os vidros quebrando,os animais emlouquecidos, a morte , o medo e o imenso sofrimento circundante. A presença do sujeito não tomou conta do objeto, não monopolizou a narrativa e o pintor foi capaz de pintar além de si mesmo porque pensava em tudo. Sim a megalomania do cara era inegável mas jamais foi cega, vulgar e brutal. Era pensada e funcional e um enorme talento a fundamentava.Não sei se ele foi o último dos moicanos nos retratos: reencontro Picasso em vários retratos de Beckmann e Freud. Com certeza o toureiro ainda não saiu da arena. Já antes de seguir viagem, ele fascinava Roy Lichtenstein e Robert Rauschenberg e, depois da despedida, por décadas, continuou sendo homenageado por artistas desejosos para registrar o quanto se consideravam seus devedores : nas gravuras de David Hockney, nas imagens de Jean-Michel Basquiat...
http://www.artnet.com/artists/jean-michel-basquiat/untitled-pablo-picasso-bYiyskiNYPcZy619xcgnMw2
nas cabeças de Andy Warhol, nos murais de Banksy, o mago britânico da street art, nas estranhezas de Maurizion Cattelan e nas apropriações de Vik Muniz e por aí vai. Essa galera toda não se concentrou no ícone, no mito Picasso, mas no seu trabalho e na influência real que tinha e tem, sobre artistas bem próximos de nós. Talvez Picasso seja passado para os defensores da arte conceptual. O cubismo foi um caminho desprezado, sim, por muitos pós-modernistas na sua busca pela abstração, uma reação previsível e inevitável para subverter o peso da arte anterior. No entanto, essa rusga bobóide entre o figurativo e a abstração resultou em perda de profundidade. Nós habitamos um século de arte rasa que seria muito mais interessante sem esses falsos dilemas. Picasso é a prova, se é que necessitamos dela, de que um artista deve alimentar-se do seu tempo, dos fatos, das modas, de tudo ao seu redor. A moral da história é uma pergunta: para quê ficarmos entrincheirados em um único e pequeno domínio artístico? Torço para as gerações futuras de pintores levem a sua arte a um novo nível com novos métodos que combinem a energia da pintura abstrata com o impacto direto de uma situação figurativa.
Keep Walking e obrigado por participar!
Mais um texto de leitura agradabilíssima. As pinturas iniciais de Picasso me agradam muito. Já as do período do cubismo são estranhas e não fazem sentido. Por isso lerei seus artigos com satisfação para ver se aprendo. Mas apesar da minha ignorância sou capaz de reconhecer o brilhantismo do pintor que subverteu a arte que desde os gregos tinha que ser verdadeira, tanto que eles não economizaram no quesito exatidão nas estátuas que produziram. Embora eu muitas vezes não a entenda , é a modernidade.
ResponderExcluirSampaio
ExcluirA beleza está por todos os lados e todos continuam tão obcecados por ela quanto em Atenas e vai ver que é por isso que a fotografia está em alta (rsrs) Mas olhar para uma tela cubista é muuuuito bom. A experimentação que Picasso e Braque, cometeram antes da primeira Guerra Mundial, nunca foi uma rejeição do mundo material, visível e "verdadeiro'. Nunca foi uma busca do absoluto, ou do abstrato. Foi uma investigação da realidade e da percepção que resultou na invenção de meios abstratos para alcançar fins representacionais. É por isso que prazer é a palavra certa para descrever a obervação de uma cubice da gema, só que no final do dia, com calma e com um copo à mão, "na boa". Porque o que torna difícil lidar com o cubismo é a tensão do visitante apressado de um museu, preparado para tentar entender racionalmente, em cinco minutos, o que está dentro das molduras. Não rola.
Esse tipo de pintura é um mundo no qual é mister deixar a imaginação divagar, escolhendo um detalhe após o outro, o perfil de um instrumento musical, de uma fruta pendurada no nada, do contorno de um jornal, de algo que parece ser um tampo de mesa. Ou será um peitoril de janela? Algumas formas são delineadas, outras são dotadas de vida tridimensional convencional, outras não estão lá. Mas se a gente olha bem, algo acontece! Uma química no nosso processo de percepção produz o sentimento sólido das coisas que Picasso estava olhando, que ele estava pensando: uvas, uma garrafa, um jornal, uma mesa. Um lugar e uma hora emergem para superfície da tela e nela boiam sempre sombrios mas visíveis e, finalmente, o mundo pictórico é revelado. E isso é muito divertido (rsrs)
Obrigado e abração
Pimentel,
ResponderExcluirEsses quadros de mulheres pintados por Picasso foram antes ou depois do Cubismo?
Porque não percebi nessas pinturas que postaste os traços geométricos, pois são de rostos normais, me deixa chamá-los assim.
A grande verdade é que Picasso foi “o cara”, nas artes.
Um artista pelas obras magníficas que produzia, e um artista como pessoa, diante das inúmeras ocupações e de qualidade que lhe tomavam o tempo.
Obrigado por mais este texto que engrandece o blog Conversas do Mano, tanto pelos temas que vens abordando, pintores e suas escolas, mas também pela excelência dos relatos, dos detalhes, das informações, que compõem os teus trabalhos apresentados aos participantes e leitores deste espaço cultural extraordinário.
Bom, sobre os elogios e reconhecimento pelo que tu vens fazendo, tenho sido pródigo contigo nas palavras, pois também merecidas.
Um grande abraço.
Saúde e paz, extensivo aos teus amados.
Olá Moacir, meu malvado favorito,
ResponderExcluirNão entendi nada quando no início do post você fala da dolorosa Madame Benedetta de Canals diante de um retrato tão belo. Pensei comigo mesma, o cara (você) pirou o cabeção, parece que bebe! Logo nas próximas linhas me apercebi do apressado julgamento. Também quem manda dirigir sua solidariedade para o sr. Editor?
Falando sério, esses retratos são maravilhosos. Sombrio ou colorido, azul ou rosa, com pinceladas de Ingres ou El Greco, cubista ou psicológico, cruel e passional,Picasso é Picasso. E arrebata a todos mesmo quando não gostam de seus trabalhos.
Mas o meu foco agora vai para a Fernande, figura interessante e um pouco contraditória. Como pode ser tão especial, lúcida, e mesmo assim se submeter? Muita paixão...
Mas é facil entender sua implicância com Gertrude Stein. Qual mulher não ficaria diante de uma personalidade forte, dominadora talvez e instigante e como Fernande bem definiu com vontades adotivas para a própria diversão?
Preciso ler esse livro.
Desconfio que você ainda o "tinha à sua beira" quando escreveu este delicioso e bem humorado post. Adorei, como adoro os retratos de Picasso e os "ratinhos de Fernande".
Até muitos mais.
Caríssima Donana,
ExcluirBem... eu bebo! Mas malvado? Tsc,tsc,tsc...Not I. Aqui entre nós e baixinho, é impossível imaginar - sem manifestar solidariedade! - o Sr. Editor como um desperate househusband, tocando a Redação e tentando desacelerar - sem muito sucesso! - a nossa “amuletada” favorita (rsrs) Mas peço arrego! O estoque dá para acomodar o casal! E a senhora se cuide, por favor.
By the way, também sou solidário aos pintores, uns coitados que para realizar seu ofício têm que ter um olhar apurado e levam a vida olhando para todos os lados e por isso mesmo tudo desejam. Tente se colocar, por favor, nos sapatos picassianos diante dessa senhora alheia ? Deve ter sido doloroso (rsrs)
Quanto a escrever rodeado de livros: bingo! Quanto à Fernande as opiniões divergem. Mas todos os biógrafos concordam que era independente talvez devido ao número de maridos e amantes que deixou para trás - antes e depois de Picasso - preferindo se virar sozinha. Ela descrevem como uma mulher alta, bonita, de cabelos ruivos e fartos, olhos verdes amendoados, um corpo de escultura grega, “nádegas belíssimas” e muita preguiça. Exceto nos neurônios, a se acreditar nas pretinhas dela (rsrs) O que se sabe dessa típica garota da vanguarda de Montmartre que para sobreviver modelava nua, é que posou para o namorido do fim da fase azul até os primórdios do cubismo analítico dele. Fisicamente intoxicado pela presença lânguida da amante, Picasso pulou do romantismo poético e rosado para uma nova maneira de pintar. Foram as feições fortes e as formas sensuais da Fernande que, rabiscadas incessantemente em um vasto conjunto de desenhos, o levaram à pintura das Senhoritas. Diz Dona Lenda - de língua ferina! - que enquanto Picasso trabalhava na imensa tela, no calor sufocante de seu ateliê em Montmartre, eles brigaram - ambos os pombinhos eram ciumentos! - e que Fernande o abandonou temporariamente
Muitos acreditam que, consumido pelos ciúmes e furioso, ele teria canalizado a violência emocional para a obra à sua frente, que mudou o curso da arte ocidental. Eu prefiro pensar que, durante sete anos, mesmo na mais absoluta miséria, esa moça trouxe tranquilidade e segurança e aconchego à vida do seu toureiro dividindo com ele - e os ratinhos! - uma bela história de amor. E o resto? E depois da Amélie/Fernande?
Aí a Eva/ Marcelle deu o ar da graça dela e então o cubismo explodiu!
Mas essa é outra conversa!
"Até sempre mais"