|
Pablo Picasso - La Femme aux Pains (1906) |
Moacir Pimentel
Pode lhe
parecer uma bobice minha escrever tanto sobre um só lugar desse tão vasto
mundo, mas é emocionante se estar e voltar onde sabemos que tantas coisas que
apreciamos foram pensadas, discutidas, planejadas e realizadas. Em Montmartre,
com certeza e de quebra, foram pintadas muitas das grandes telas da humanidade!
Foi lá que
Pablo Picasso pintou sua amada Fernande carregando pão – na tela que inaugura o
post - antes de escapar da marcação cerrada da moça e flanar com Georges Braque
pelas vielas do bairro. Georges com um boné verde à la Wilbur Wright e Pablo
com um dos seus famosos chapéus “cloche”
comprados no mercado Le Havre que não tiravam das cabeças nem para almoçar nas
mesas ao ar livre dos bistrôs, discutindo os voos dos irmãos Wright e de Santos
Dumont, combinando fazer esculturas de papel inspiradas em suas máquinas
voadoras.
Foi ali que
Cézanne geometrizou a natureza, que Picasso, Georges Braque e Juan Gris - os
pais do cubismo – pintaram e colaram as suas bizarrices em série, que Matisse
pintou a Alegria de Viver e depois passou a descer a colina para ver no Bateau
Lavoir o trabalho de Picasso e Braque, “a
arte dos pequenos cubos” – e esse chiste do artista é uma das origens do
termo “cubismo”.
|
Pablo Picasso - L'usine de briques à Tortosa (1909) |
Foi por
lá que Guillaume Apollinaire e Max Jacob escreveram seus versos e foi bem ali
que André Salmon pregou:
“Tudo é possível, tudo é realizável, por todos e em todos os
lugares”.
Montmartre
não é um lugar mas uma filosofia. Tudo bem que os pintores podem e devem ser
visionários e que muitas vezes viajam até mesmo na vanguarda do conhecimento
científico. Mas no caso específico do cubismo, um dos seus santos milagreiros
foi o matemático amador Maurice Princet.
A “matemática
cubista” é uma das famosas histórias do bairro e, bem assim, mais uma de suas
coloridas anedotas. Explico: qualquer galeria de arte de respeito, nas
imediações da Place du Tertre, terá entre os seus cartazes uma caricatura
colorida de um sujeito raivoso rasgando o casaco de uma jovem e bela mulher.
Esclareceram-me que se tratava de um tal de Maurice Princet, enlouquecido de
ciúmes, porque Alice Géry, sua esposa, se apaixonara doidamente pelo pintor
André Derain.
Alice é
descrita de forma controversa na mitologia do bairro e na literatura artística.
Dona Lenda diz que a moça teria sido “a
amante notoriamente infiel de Maurice Princet” pois enquanto namorava o
rapaz, também estaria envolvida com Picasso, para quem modelava e que a
retratara no desenho A Jovem Inclinada. Já Dona História afirma que Alice foi
realmente “lançada” no círculo artístico de Montmartre pelo toureiro e que seus
traços angélicos e ar deprimido pareciam encarnar o ideal feminino da fase azul
do pintor.
|
Pablo Picasso - Jeune fille accoudée (1903 / 1904) |
Nesse
retrato frágil a tristeza diz presente embora a causa específica da melancolia
da vítima nos escape, permanecendo deliberadamente indefinida. Na fase azul
Picasso criava um vazio em torno das suas mulheres, acentuando a intensidade
das emoções e chamando a atenção para os rostos e pescoços, deixando o resto do
corpo loooongo e indefinido. Mas ele teve três modelos durante esse período -
Madeleine, Margot e Alice - e muitas vezes mesclou os traços fisionômicos das
três, misturando os olhos de uma com as maçãs do rosto da outra e com a boca da
terceira, criando assim uma perfeita “mulher azul” (rsrs)
Gertrude
Stein descreveu Alice Géry como uma criatura que mais parecia uma Madona “com grandes olhos e cabelos encantadores e
uma certa qualidade selvagem”. Já Fernande Olivier, então companheira de
Picasso, nos garante que durante sete anos Alice fora, sim, fiel a Princet.
Então, em março de 1907, para adquirir um certo grau de respeitabilidade e ser
promovido no trabalho - quem vivia em pecado com a amante não era exatamente
aplaudido - Maurice decidiu se casar e o casal se mudou-se para os arredores de
Paris.
Apesar de
sua aparência frágil e desanimada no desenho de Picasso, Alice era uma mulher
forte, que não tinha medo de viver sua vida como bem entendia. Sucede que a
senhora se entediou mortalmente longe do rebuliço de Montmartre e, depois de
apenas seis meses de lua de mel, conheceu André Dérain e - @#$%&@!! – deram
início a um romance turbulento que fulminou seu primeiro casamento e tornou-se
o seu segundo. Alice e Dérain nunca mais se separaram nessa vida até a morte do
pintor em 1954.
Mas esse
post não é sobre Madame Alice Dérain e sim sobre o primeiro marido traído:
Maurice Princet. Apesar de ganhar muito bem a vida no ramo dos seguros, ele era
um sujeito de extensa cultura matemática que batia ponto todas as noites nos
cafés e cabarés de Montmartre. O homem era um dos mais fieis clientes do Le
Lapin Agile, onde é descrito sentado na sua mesa preferida reservada pelo
proprietário Frédé, com um caderno e uma caneta nas mãos, fazendo anotações e
resolvendo equações.
Francis
Carco, no seu livro de memórias dos primeiros anos do século XX de nome The Last Bohemia: From Montmartre to the
Latin Quarter - A Última Boêmia: de Montmartre ao Quartier Latin - se
lembra de Maurice sempre bem vestido, um cavalheiro zombador e melancólico,
possuidor “de inteligência e charme
professoriais e dono de uma mentalidade que poderia tornar-se cáustica e
diabólica”. Exatamente o tipo de criatura que era mais do que bem vinda no
Bateau Lavoir (rsrs)
Todos os
artistas e autores envolvidos no cubismo foram, durante um certo tempo,
matemáticos amadores que consideraram a pintura como uma aventura intelectual
com o objetivo específico de reduzir as formas à geometria. Só que a exploração
do espaço feita por Picasso foi mais além e empregou as noções de espaço em
quatro dimensões que lhe foram descritas justamente por Maurice Princet.
Os dois
homens foram apresentados, é claro, por Alice em 1905, mas a essa altura da
história, Princet já era também muito amigo do pintor, escultor e poeta Marcel
Duchamp que, à época, era vizinho do espanhol e enturmado com outros artistas e
intelectuais como Guillaume Apollinaire e Max Jacob que então viviam no
pardieiro conhecido como Bateau Lavoir.
Embora
Princet nunca tenha sido uma figura central e carismática da malta vanguardista
ele frequentava os rapazes e participava de suas discussões e sessões de
haxixe, e visitou Picasso durante os momentos críticos da primavera e do verão
de 1907, quando o toureiro estava lutando com as Senhoritas d'Avignon. Ele
permaneceu na órbita dos artistas até que sua mulher o deixou definitavamente
para morar com André Derain. Cabisbaixo, o pobre homem se afastou de
Montmartre, mantendo-se próximo apenas do pintor Jean Metzinger.
André Salmon
escreveu que Princet:
“Se preocupava especialmente com os pintores que desdenham a
perspectiva antiga. Ele os elogiava por não mais confiarem na óptica ilusória”.
Minha falta
de vocação para as exatas não me atrapalha na abstração do fato de que já nas
últimas décadas do penúltimo século, vários artistas demonstravam um grande
interesse pelo tempo. Isso mesmo: o tempo! O meu pintor impressionista
predileto, o grande Claude Monet, bem que tentou representar a passagem do tempo
em suas tintas em diferentes séries de telas. Ele capturou as mudanças dos
choupos a cada hora do dia e a cada estação do ano.
|
Claude Monet - Peupliers (detalhe) / Les trois arbres, automne / Peupliers au bord de l'Epte / Les trois arbres, eté |
Depois fez o
mesmo com os palheiros de trigo, os campos de papoulas, as catedrais francesas,
as Torres de Westminster refletidas no rio Tâmisa e os nenúfares no seu jardim
em Giverny. Ao pintar todos esses lugares em diferentes momentos do dia e/ou
épocas do ano ele buscava registrar a influência temporal na pintura.
Os
experimentos com a luz feitos pelos pintores impressionistas coincidiram com
importantes descobertas modernas nas ciências físicas, revelando-nos a dinâmica
da luz como uma forma de energia. Ali foi estabelecido um paralelo notável: o
conhecimento humano e a nossa vida na prática evoluem simultaneamente.
Não precisa
ser nenhum gênio em ciência para entender a teoria de Einstein, concebendo a
ideia de espaço-tempo como uma entidade unificada, composta por uma variedade
de quatro dimensões: três espaciais e uma temporal.
Primeiro,
precisamos lembrar que vivemos em um mundo de três dimensões, certo? Segundo,
imaginar alguém acidentado, digamos, em uma cordilheira precisando ser
resgatado. Para ser localizada essa pessoa precisaria indicar onde está na
geografia circundante, fornecendo sua latitude, sua longitude e a altitude em
que se encontra nas montanhas em relação ao nível do mar.
Entretanto,
há mais uma importante informação que deve ser indicada: o momento em que a
criatura poderá ser encontrada nesse determinado local. E aqui se elabora um
importante raciocínio: o tempo pode ser tratado como uma quarta dimensão embora
nela, por enquanto, só possamos andar para frente... (rsrs)
Porém quando
se trata da percepção fundamentada em princípios científicos, os hábitos
enraizados não conseguem dar lugar facilmente às novas possibilidades, que
desafiam a consciência imbuída de tradições obsoletas, assim como a nossa vida
temperada pela aprendizagem pretérita.
Vale lembrar
que a pintura ocidental tivera seus pressupostos científicos estabelecidos no
Renascimento. As leis da perspectiva que dominavam a arte ocidental na virada
dos dois últimos séculos e cujas insuficiências Braque e Picasso expuseram
cabalmente em Montmartre tinha sido formulada fazia mais de quatrocentos anos,
pelos arquitetos renascentistas Leon Battista Alberti e Filippo Brunelleschi
dois séculos antes dos conceitos de gravidade e do tempo terem sido
estabelecidos por Isaac Newton no século XVI.
Alberti e
Brunelleschi redescobriram os princípios da perspectiva cônica - que depois de
terem sido estudados pelos gregos e romanos ficaram esquecidos durante toda a
Idade Média - restabelecendo na prática o conceito de ponto de fuga e a relação
entre a distância e a redução no tamanho dos objetos. Seguindo os princípios
ópticos e geométricos enunciados por Brunelleschi, os artistas da época puderam
reproduzir objetos tridimensionais no plano bidimensional com surpreendente
verossimilhança.
Esse sistema
de perspectiva inventado em Florença no século XV é uma taquigrafia para a
maneira como as coisas pareciam, uma ficção brilhantemente utilizável da
aparência do mundo, pois mostrava como as imagens podem ser consistentes e
lógicas: o que está mais longe parece menor do que aquilo que está próximo.
Mas apesar
do mundo sempre ter estado em movimento ao nosso redor, durante milênios nos
contentamos em ver-lhe apenas as superfícies e é por isso que em Montmartre
Dona Arte ainda mostrava o tempo independente do espaço, ou seja, cada obra de
arte representava, ao fim e ao cabo, um momento diferente.
O certo é os
rapazes de Montmartre - os pintores modernos! -, na sua busca de expressão,
antipatizavam muitíssimo com a rígida pintura acadêmica. Foi aí que Maurice Princet
entrou na conversa e encontrou solo fértil tanto que a História das Artes o
apelidou de “o matemático do cubismo”, aquele que desempenhou um papel
importantíssimo no primórdios do movimento que rompeu com a tradição e abriu
alas para todas as muitas novidades pictóricas posteriores.
Quando
conheceu Princet, o toureiro estava interessado em novas formas estéticas,
estudava a pintura de André Derain e a nova concepção de arte presente na obra Le Bonheur de Vivre, de Henri Matisse.
|
Henri Matisse - Le bonheur de vivre (1905) |
Picasso, que
acreditava que seus trabalhos não eram nem tão bons nem tão vanguardistas,
estava tentando caminhar na direção de um novo estilo de pintura que
enfatizasse mais a concepção em vez da observação.
Ele refletia
sobre vários elementos tais como a geometria de Cézanne, as esculturas ibéricas
primitivas que contemplava no Museu do Louvre, as máscaras africanas. E fazia
tudo isso resmungando que a arte representava o que sabia e não o que realmente
percebia, sonhando promover uma miragem: uma fusão de uma arte dele, que
valorizasse mais conceitos e ideias do que os objetos e a sua representação
física, misturada com a arte ibérica primitiva. Complicado!
Nessa
encruzilhada há registros históricos que comprovam o peso da matemática
introduzida por Maurice Princet no trabalho dos cubistas. O pintor fauvista
Maurice de Vlaminck, por exemplo, escreveu:
“Eu testemunhei o nascimento do cubismo, seu crescimento, seu
declínio. Picasso foi o obstetra, Guillaume Apollinaire, a parteira, Princet, o
padrinho”.
Maurice
Princet estudava longamente as novas matemáticas e geometrias, conversava sobre
elas com Max Jacobs que, por sua vez, se reportava ao seu vizinho Picasso o
qual, de imediato, vislumbrava possibilidades de novos esquemas pictóricos e
corria para trocar ideias com o crítico de arte Apollinaire, que se apressava a
escrever sobre o tema e a coisa se espalhava e se propagava e Montmartre engravidou
do cubismo.
Também o
pintor Jean Metzinger, nas suas anotações confirma a importância de Princet nos
primeiros passos do movimento:
“Maurice Princet se juntava a nós com frequência. Embora muito
jovem, graças ao seu conhecimento de matemática, ele nos deixava interessados
pelas novas visões sobre o espaço que haviam sido abertas por Schlegel e alguns
outros. Princet estava interessado em matemática avançada, em particular no
trabalho de Poincaré e, em geral, em geometrias não-euclidianas”.
Voilà! Foi
Maurice Princet quem apresentou aos artistas de Montmartre e, em especial, a
Pablo Picasso o trabalho “Ciência e
Hipótese”, uma obra de reflexão filosófica e científica publicada em 1902
da lavra do brilhante matemático francês Henri Poincaré e com eles debateu
detalhadamente sobre as geometrias não euclidianas e sobre o conceito da “quarta
dimensão” e outros temas matemáticos que fascinavam a galera.
Henri
Poincaré, descrito como “o último dos universalistas”, foi um sujeito versátil:
na matemática ele estabeleceu a base para a teoria do caos, na física seus
métodos matemáticos ainda são usados no estudo de partículas elementares, na
filosofia sua cartilha para explorar as teorias científicas ainda é controversa
e na psicologia da criatividade ele estudou o funcionamento do inconsciente.
Longe de ser
um cientista estereotipado, um Professor Pardal meio maluco, o pensamento de
Poincaré estava mais próximo do de um artista: era espontâneo, pouco
consciente, mais como um sonho do que racional, parecendo mais adequado para
obras de pura imaginação. Portanto, não é de surpreender que Picasso também
tenha se inspirado em seu trabalho.
Tudo bem que
o substantivo abstrato “povo” já tinha vislumbrado de relance as tais das
dimensões em paragens gregas, simbolizadas no universo de arquétipos e
essências pela Alegoria das Sombras de Platão (rsrs) No começo do século XX os
matemáticos tentavam explicar às gentes a ideia de uma quarta dimensão
invisível para a percepção, fazendo uma alegoria com os prisioneiros daquela
caverna: assim como aqueles homens e mulheres acreditavam, erroneamente, que o
mundo em duas dimensões de sombras que viam projetadas na parede fosse o real,
a nossa percepção de um mundo em 3D seria apenas uma visão empobrecida de uma
realidade em quatro dimensões.
No entanto,
só no cubismo esse pensamento foi expressado artisticamente, quando os pintores
passaram a tentar pintar, de forma simplicada, a miríade infinita de ângulos,
as múltiplas perspectivas que teoricamente enxergariam de uma quarta dimensão,
de onde seria possível se ver todas as dimensões ao mesmo tempo.
Para
perceber como as ideias artísticas se misturaram com as preocupações
científicas da época, basta saber que o físico francês Poincaré no seu livro -
considerado um dos precursores da Relatividade - buscou entender a
simultaneidade, a natureza do espaço e do tempo, debruçou-se em estudos sobre a
velocidade da luz e a medição do tempo, e explicava como se podia representar o
mundo em quatro dimensões.
Poincaré
argumentava que nós só sabemos que os objetos têm três dimensões porque os
vemos sequencialmente em diferentes perspectivas. E jurava de pés juntos que,
assim como se pode fazer em uma superfície plana – uma tela! - a perspectiva de
uma figura em três dimensões, da mesma forma se poderia representar a mesma
figura em quatro dimensões, imaginando sequencialmente as perspectivas
diferentes que teria caso fosse vista por alguém se deslocando em um espaço de
quatro dimensões.
Em 1902
Henri Poincaré já insistia que, longe de ser universalmente ou absolutamente
verdade, a geometria euclidiana que, em Alexandria, tinha definido a
matemática, era apenas um dos muitos sistemas possíveis e que as suas três
dimensões não eram as únicas que poderiam ser concebidas mas, isso sim, o
conjunto mais conveniente de hipóteses para negociar a vida. Pensar em três
dimensões era prático.
Picasso
tinha inquietações muito semelhantes às dos cientistas que, como Einstein,
estavam trabalhando na fronteira do conhecimento. Ele se debatia em busca de
soluções estéticas novas no epicentro do debate sobre representação versus
abstração, dos desenvolvimentos tecnológicos da época - o avião, o telégrafo, o
automóvel, os avanços implacáveis da fotografia e o cinema - dos novos
conceitos matemáticos e geométricos - como os poliedros complexos - dos debates
sobre as quatro dimensões. Tudo isso, entrava no caldeirão que o espanhol
revirava.
O toureiro
ficou particularmente impressionado com as sugestões de Poincaré, nos conta
Princet, sobre como ver e representar essa quarta dimensão em páginas
bidimensionais. Mas como projetar as diferentes perspectivas na tela? A
sugestão de Poincaré era criar uma de cada vez, mostrando-as em sucessão.
Picasso queria retratá-las todas de uma vez. O certo é que, ouvindo Maurice Princet,
o espanhol percebeu que essa nova geometria oferecia a linguagem que precisava
para se expressar. Só que superou o professor do professor...
Mas isso
contaremos noutra conversa.