Pablo Picasso - Les Demoiselles d' Avignon (1907) |
Moacir Pimentel
As melhores obras produzidas na primeira década do século XX definiram o
caminho da civilização: a Teoria da Relatividade e Les Demoiselles d’Avignon
representam as respostas de dois homens separados geograficamente e
culturalmente - Einstein e Picasso - às mudanças dramáticas que então
atravessavam a Europa como uma onda de tsunami.
Picasso trabalhou em Les Demoiselles d'Avignon,
como nunca antes trabalhara em outra tela. Ele produziu centenas de pinturas e
desenhos como estudos para o quadro durante uma gestação de vários meses, uma
quantidade de trabalhos preparatórios única, não só na carreira dele, mas sem
paralelo em toda a História da Arte.
Ele começou a pintura como uma cena de bordel na
qual havia um cliente, um homem, que de marinheiro foi promovido a um estudante
de medicina com uma caveira nas mãos e depois ao próprio artista. A tela foi
inicialmente concebida como um flash da vida do submundo parisiense
contemporâneo, não tão distante dos trabalhos de Toulouse-Lautrec.
Fisicamente intoxicado pela presença lânguida da
sua então amante, Picasso pulou do romantismo poético e rosado para uma nova
maneira de pintar. Foram as feições fortes e as formas sensuais da Fernande
que, rabiscadas incessantemente nesse vasto conjunto de esboços, o levaram à
pintura das Senhoritas. Diz Dona Lenda - de língua ferina! - que enquanto o
pintor trabalhava na imensa tela, no calor sufocante de seu ateliê em
Montmartre, eles brigaram e a moça o abandonou temporariamente. Muitos
acreditam que, consumido pelos ciúmes e furioso, ele teria canalizado a
violência emocional para a obra à sua frente.
Mas não se pensa em nada disso, ou se faz qualquer
conexão sabichona, quando se fica frente a frente com As Senhoritas d'Avignon
no Museu de Arte Moderna de Nova York.
Foquemos no essencial, ou seja, na visão dessas cinco mulheres
cor-de-rosa enredadas em cortinas prateadas e azuis. Duas delas estão com os
braços levantados para exibir seus seios, olhando para fora da tela com enormes
olhos negros. Uma das moças usa um simulacro de rosto de madeira e surge de
perfil à esquerda da cena pictórica e as outras duas, à direita, exibem
máscaras africanas.
Pablo Picasso - Les Demoiselles d'Avignon (detalhe) |
A figura acima invade a cena saindo de trás da cortina enquanto que a
outra – a mais assustadora! - foi pintada agachada, de perfil e de frente ao
mesmo tempo e em um mesmo espaço da tela, entre as dobras do pano.
Pablo Picasso - Les Demoiselles d'Avignon (detalhe) |
O tema de mulheres nuas, mesmo prostitutas, nada
tinha então de incomum, mas o fato de Picasso ter pintado essas mulheres em
posturas sexualmente agressivas era novo e chocante. A flagrante sexualidade
dessas figuras é turbinada pela influência da arte não-ocidental que é mais
evidente nos rostos de três das mulheres, nas máscaras, que sugerem que a
sexualidade delas não é apenas feroz, mas é também primitiva ou mortal se
conseguirmos, apesar do choque, linkar as imagens às doenças venéreas
transmitidas pelas senhoritas nos bordeis da época, que tanto assustavam os
clientes pois contra elas ainda não havia tratamento.
Em um prato, que desafia as leis da gravidade, da perspectiva e das
direções há uma coleção de frutas descaradamente significativas: uma fatia de
melancia arrebitada, com uvas, uma maçã e uma pera testiculares.
Pablo Picasso - Les Demoiselles d'Avignon (detalhe) |
Os elementos formais incomuns da pintura também
causaram espanto. Picasso abandonara a ilusão das três dimensões, apresentando
um plano de imagem radicalmente achatado que dividira em fragmentos
geométricos. Por exemplo, o corpo da mulher parada no centro é composto de
ângulos e bordas afiadas. Tanto o pano que o emoldura e nele se enrola quanto o
próprio corpo recebem a mesma atenção como se estivessem ambos em primeiro
plano e fossem igualmente importantes.
Essa é uma pintura de nus femininos sem curvas à vista: as silhuetas são
geométricas, os cotovelos afiados como facas, os quadris e seios triangulares.
A pintura é quase quadrada - na realidade, tem alguns centímetros a mais na sua
altura do que na largura – e essa quadratura faz parte do espaço e da simetria
e ajuda a colocar o espectador perdido diante dessa máquina de movimento
perpétuo que nunca perde sua vitalidade.
Pablo Picasso - Les Demoiselles d'Avignon (detalhe) |
Na verdade, olhar para essa imagem significa mover
os olhos constantemente de uma face para outra, de um corpo para outro, de um
lado para o outro, sem que a percepção seja resolvida. Todo mundo já especulou –
e muito! - sobre o significado dessa tela mas nunca se chegou a definir se ela
é uma pintura sobre cinco mulheres, se é sobre a prostituição, se reflete os
medos que Picasso teria das mulheres e/ou das doenças venéreas por ser
promíscuo, se tais medos não seriam só dele ou masculinos de um modo geral.
É complicado transformar essas imagens indizíveis
em palavras. Para interpretá-las talvez a gente precise focar nos olhos das
figuras. Penso que As Senhoritas conversam conosco sobre as aparências. Ninguém
me tira da cabeça que Picasso nos pregou uma peça, e que ele nos olha fixamente
da figura central, cujo olhar é ousado e os grandes olhos assimétricos tem a
autoridade de um auto retrato, apesar das mamas (rsrs) Porque não?
Pablo Picasso - Les Demoiselles d'Avignon (detalhe) |
Essa senhora é muuuuito parecida com Picasso!
É interessante como aceitamos, por exemplo, que
Leonardo da Vinci tenha se auto retratado nas suas mulheres mas jamais ocorreu
aos sabichões que Picasso pode muito bem ter feito o mesmo, de tão doutrinados
que fomos pelas caricaturas do artista como o toreador – olé! – o minotauro, o
pegador, o amante latino, o machão destruidor de mulheres, o voyeur patriarcal.
Seja lá o que ele pintou aí em 1907 é algo que nos olha
com um desprezo furioso. Mas o que o fascinava nessas máscaras africanas talvez
tenha sido a coisa mais óbvia: que as máscaras dissimulam, transformam o homem
em outra coisa - um animal, um demônio, um deus. O modernismo inventado por ele
é uma arte que usa máscaras. Não diz o que significa, não se explica, não é uma
janela, mas uma parede.
Pablo Picasso - Les Demoiselles d'Avignon (detalhe) |
Picasso talvez tenha escolhido o tema do bordel
precisamente porque era um clichê: ele queria mostrar que a originalidade na
arte não está na narrativa, nem na moral, mas na reinvenção formal. É por isso
que penso ser um equívoco ver Les Demoiselles d'Avignon como uma pintura sobre
bordéis, prostituição ou colonialismo. A grande e lamentável tragédia da arte dos
séculos XVII ao XIX, em comparação com o brilho de um Michelangelo, foi
exatamente perder de vista o ato da sua criação.
É disso que Picasso fugia. O modernismo nas artes
significou a vitória da forma sobre o conteúdo. Nessa pintura, o pintor quase
excluiu a tradição da perspectiva ocidental de quinhentos anos, achatando suas
protagonistas em silhuetas de carne em um espaço que não vai a lugar nenhum. É
essa violência visual que liberta seu erotismo, porque apaga qualquer
significado ou narrativa, em um desapego do desejo, sem precedentes na arte.
Após a Primeira Guerra Mundial, André Breton chegou
ao novo estúdio do espanhol, viu Les Demoiselles d'Avignon e reconheceu o
trabalho como a obra-prima moderna definitiva. Breton, o líder dos
surrealistas, viu nela uma ameaça revolucionária do inconsciente, e ele estava
certo.
Mesmo em um mundo que já não adora pintar, esta
pintura é insuperável. Há algo anarquista e implacável nesse trabalho de arte
centenário. As obras de arte envelhecem, se estabelecem e, eventualmente,
tornam-se respeitáveis. Mas, cento e dez anos depois, essa tela de Picasso
ainda é tão nova, tão preocupante, que seria um insulto chamá-la de uma
obra-prima.
Les Demoiselles é uma obra proto ou pré-cubista
pois na sua distorção radical das figuras, na renderização de volumes como
planos fragmentados e na sua paleta moderada, esse trabalho previu algumas das
principais características do cubismo posterior. Talvez
possamos dizer que as Senhoritas inauguraram uma forma revolucionária de
retratar a realidade, que essa pintura histórica quebrou todas as regras
tradicionais que os artistas seguiam desde sempre, especialmente aquela que
definiu a arte como imitação e não como criação.
Virando as costas para a perspectiva e a proporção
harmoniosas, Picasso substituiu-as por múltiplas perspectivas e distorções.
Para a maioria das pessoas, Les Demoiselles foi uma
profanação de tudo que tinha sido considerado sagrado. Elas foram a fenda, a
fronteira, a ruptura do passado e do futuro. Culturalmente, o século XX só
começou em 1907. Afinal James Joyce não rabiscou o seu Ulysses até 1914, quando
Picasso já estava no estágio final do seu cubismo.
As Senhoritas continuam sendo, mais de um século depois de terem
sido inventadas, um ícone do século XX e ainda nos mantêm em cativeiro,
encarando-as em um bordel mental, jamais superadas por nenhuma outra estranheza
cubista cometida depois delas por Georges Braque ou, como na montagem abaixo,
pela Torre Eiffel de Robert Delaunay, pela Amazona de Jean Metzinger, pelo
Homem no Café de Juan Gris, pelo Homem na Varanda de Albert Gleizes, pelo
Estudo para 3 Retratos de Fernand Léger, pelas Duas Mulheres de Diego Rivera ou
quem quer que seja.
Essa rebelião iniciada por Picasso, felizmente, limpou o ar para o que
viria: a liberdade de criar e construir uma nova linguagem pictórica
figurativa. A bem da verdade Picasso quase se jogou na abstração no verão de
1910, na cidadezinha espanhola praiana de Cadaqués, quando pintou algumas telas
de linhas reduzidas que criavam uma sensação de profundidade mas sem a ilusão
de quaisquer formas sólidas. Essa coleção de planos geométricos abstratos e
monocromáticos interligados foi o mais próximo que o pintor conseguiu chegar de
romper a fronteira entre a figuração e a abstração, um Rubicão por ele jamais
cruzado.
Tanto que, quando retornou a Paris, ele mudou de rumo e passou a
adicionar pistas às suas cubices analíticas extremas: um relógio, um bigode,
uma dobra, uma cabeça calva, um lóbulo da orelha, uma nota musical, pequenos
sinais que indicavam a pessoa e/ou o objeto que estava sendo representado. Uma
década mais tarde, quando o abstracionismo passou a fazer barulho, talvez
chateado por não ser mais a vanguarda da vanguarda, o pintor comentou que mesmo
um Picasso tinha que começar a partir de algo concreto (rsrs)
Vale fazer uma anotação de pé de página no sentido de que, da mesma
maneira, Einstein nunca concordou com as altas abstrações das teorias
quânticas. O cubismo é tão espiritual quanto científico. Viver de modo cubista
significaria conviver com a textura, o peso e a beleza fragmentária do mundo.
Seria necessário para sempre apreciá-lo – sei lá! – como fazemos com uma tigela
de frutas (rsrs)
Mas não temos mais tempo para isso e, porque nunca foi completada, a
revolução cubista nunca terminará, como veremos na próxima conversa.
Les Demoiselles d’Avignon é fora de série. Mas foi o que aconteceu depois que fez a pintura virar ícone. O cubismo se tornou o estilo dominante na Europa e o pintor, que era pouco conhecido fora de Montmartre, tornou-se o artista mais famoso do mundo e o seu nome sinônimo de gênio. Que ele tinha talento e que a tela tem mérito não discuto, muito menos com você. Só lamento que Picasso nunca tenha chegado à pura abstração, tornando mais popular a idéia de que a arte poderia existir completamente separada das representações do mundo real. Porque ele também era muito bom para se promover no lugar certo, na hora certa e com as pessoas certas, rs.
ResponderExcluirMárcio,
ExcluirAprecio seus comentários porque conseguem, ao mesmo tempo, ter e não ter um bocado de razão (rsrs) É verdade que o cubismo foi absorvido pelo “mainstream” e que definiu em família - com os ismos seus descendentes - o mercado de arte pelo resto do século XX. Entender como e porquê isso aconteceu não é fácil mas, de fato, não rolou simplesmente porque Picasso era “fora de série". Vincent van Gogh - de talento e radicalismo comparáveis aos do toureiro! - se matou aos 34 anos, dez anos antes de Picasso por os pés em Montmartre, sem nunca ter vendido uma pintura na vida. Porém é equivocado se pensar que o toureiro foi um grande vendedor de suas próprias cubices. Muito ao contrário, ele se esquivou de promovê-las, se recusou a assumir a liderança do grupo de artistas às voltas com o cubismo, não participou sequer das primeiras exposições da galera e só mostrou as Senhoritas após o fim do seu próprio período cubista.
Acho que para entender a explosão do estilo é preciso contextualizar desde o ninho do qual Picasso deu seu salto cubista : uma Montmartre invadida por artistas e - um detalhe que não é desimportante – por poetas, jornalistas e cartunistas formadores da opinião de uma Paris povoada por gente jovem e educada que, desejosa de se distinguir, tinha gostos ousados, frequentava as galerias de arte modernosas, lia as publicações especializadas, debatia as “tendências”, comprava a arte de pintores desconhecidos bem criticados das mãos dos negociantes de arte parisienses e/ou estrangeiros, que competiam ferozmente para encontrar a última novidade e vendê-la pelo preço mais agressivo possível. Nesse contexto a inovação artística se tornou, aos poucos, economicamente viável e a ruptura com o passado começou a ser encorajada para depois ser exigida.
Não é que o brilhantismo do “gênio” tenha sido irrelevante para o sucesso do cubismo , longe disso. É que o talento dele, naquele momento, era o mais adequado. Ele era mais ousado e mais experimental do que seus pares. O cara fez mais de setecentos esboços das Senhoritas antes de escolher um que o satisfizesse! Em um cenário de arte cada vez mais aberto a influências diversas, ele foi atrás das artes etrusca e ibérica pré-cristãs e das máscaras africanas. Em um ambiente de mudanças científicas e tecnológicas ele estudou matemática. Em uma época que romantizava o exótico, ele era um imigrante espanhol que falava pouco francês. Para que uma inovação radical seja bem-sucedida, penso que o momento precisa estar se movendo na direção da novidade mas, principalmente, que quem inova precisa aproveitar o momento. Não posso criticar Picasso por ter conseguido. Quanto à abstração, essa ideia que embora possa ser rastreada até Platão ainda me escapa, os cubistas a perseguiram, sim, mas sempre fazendo da realidade seu ponto de partida e deixando digitais dela nas suas fantásticas tintas. Obrigado por participar.
As ‘meninas’ são mais assustadoras de perto kkk Desculpe! Mas não dá para ser feliz olhando pra estas máscaras sinistras, Moacir. Eu adorei a sua sacada de que Picasso se retratou no quadro, despido de mulher kkk Este olhar dele é uma declaração de guerra a tudo que todo mundo sempre achou bonito. Mas a coisa também é pessoal e perturbadora. Freud explica?
ResponderExcluirVou ler com muita atenção as suas explicações sobre este estilo de pintura mas pela Torre Eiffel que vi detonada na coletiva vou logo avisando que vai ser difícil virar cubista. Obrigada!
Mônica,
ExcluirPara começo de conversa, deusnoslivre! que você fique triste e/ou que “vire cubista”. As caixas de comentários iam ficar muito sem graça! (rsrs) As Senhoritas, de fato, “estão de mal” da boniteza e a tela é sim, horrivelmente magnífica. Acontece que pelas suas audácia e coragem essas ‘meninas’ definiram a arte posterior. Não me lembro de nenhuma outra obra de arte que tenha tido tanta influência. E sabe por quê? Porque tudo se copia e, portanto, sempre foi e será quase impossível fazer algo verdadeiramente novo, em um mundo no qual parecia e continua parecendo que tudo já foi feito. Picasso representou temas velhos de um jeito radicalmente diverso de tudo que já fora pintado sobre a Terra. Só que o que é de fato moderno e voltado para o futuro jamais é, de imediato, carimbado como “bonito”. As estranhezas precisam de um tempo para que nos familiarizemos com elas o bastante para poder traduzí-las. Foi o caso da Torre Eiffel que você não apreciou na versão cubista "detonada". A princípio ela já foi abominada. O escritor francês Guy de Maupassant, por exemplo, não suportava a visão da sua desprezível “inimiga de ferro” tanto que almoçava todos os dias no restaurante que ficava embaixo dela, “ um dos poucos lugares onde eu podia sentar, não ver a Torre e não perder o apetite” (rsrs) Quanto à Freud....
Tem um livro interessante- da lavra de um historiador das artes chamado William Rubin - que elenca as influências, as experiências pessoais e a preparação técnica cuidadosa escondidas por trás dessa tela perturbadora e hermética. O livro nos soletra que ela é sobre uma crise pessoal na vida de Picasso. O autor detalha, passo a passo, através de argumentos fundamentados em fotos, rascunhos, anotações, relatos de amigos e dezenas de esboços preliminares, as forças criativas que forjaram essa obra de arte, na mente do rapaz de vinte e cinco anos. Ele nos conta da separação temporária, mas amarga, de Picasso e Fernande- por causa de uma suposta fascinação dele por uma garota adolescente - das visitas do pintor a um bordel na ausência da amada, das prostitutas deformadas nos últimos estágios da sífilis que ele pintara no Hospital de St-Lazare, do medo que os caras então sentiam das doenças sexualmente transmissíveis e incuráveis, de como Picasso teria criado símbolos fetichistas nesses rostos, fazendo uso das máscaras no sentido freudiano, qual seja o do “eu duplo”, os alter egos alternativos que as pessoas criam como saída para seus pensamentos e instintos e desejos reprimidos. Para Rubin as Senhoritas mascaradas não foram apenas uma reinvenção formal : ele defende que o ponto de virada da arte moderna é, além de uma experimentação intelectual exaustiva, também uma expressão muito pessoal do artista. E conclui afirmando que as máscaras teriam ajudado Picasso a abstrair que a pintura não é apenas um processo estético, mas uma possibilidade de impor uma forma aos receios, de dar outra linguagem aos desejos para melhor lidar com eles. Será? Eu tenho cá as minhas dúvidas mas , como nos desenha o cubismo, TUDO é uma questão de ponto de vista. Fique à vontade para detestá-lo mas, por favor, continue comentando com a graça de sempre (rsrs)
“Obrigado!” e abração.
Moacir,
ResponderExcluirAchei a sua interpretação fantástica! As duas mulheres são irmãs gêmeas de Picasso. Lembrei de um lindo artigo seu sobre a Olímpia de Manet , a prostituta que quase foi linchada porque ousava encarar os visitantes de uma exposição. Esta cena de profissionais do sexo se exibindo deve ter sido muito perturbadora para uma sociedade acostumada a ver quadros de temas históricos, mitológicos e religiosos. Também fiquei curiosa para saber por que Picasso retirou o marinheiro e o médico da luta contra a nudez clássica. Acho que as Senhoritas da colina resumem o que o artista fez antes e o que ele queria fazer depois. As da direita são normais e representam o passado, as duas à esquerda principalmente a acocorada representam o estilo futuro que pela amostra nas fotos finais, promete.
Um abraço para você
Flávia,
ExcluirA sua interpretação passado/futuro/feminista é válida (rsrs) Essas senhoritas não foram retratadas nuas para provar como Picasso pintava bem o corpo de uma mulher: são mercadorias, carne à venda em um bordel, uma soma pela primeira vez organizada da crueldade e da angústia da modernidade. Mas note que mesmo nas figuras supostamente “europeias”, inclusive no/os auto retrato/s, as feições carregadas funcionam como máscaras. Dê uma olhada nas orelhas! A primeira figura à esquerda, embora menos, também é africanizada e a estranheza não tem lado, é geral e irrestrita : todas as senhoritas são chapadas, angularizadas, soltas em um espaço raso e ambíguo destituído de primeiro plano ou de fundo discernível, cujas superfícies se cruzam e interpenetram em ângulos aparentemente aleatórios. Ou seja, essa pintura ao se rebelar inteira contra qualquer senso de perspectiva, qualquer proporção realista ou qualquer sensação de legítima profundidade, gerou o cubismo, que nasceria dois anos depois e inauguraria o futuro.
Para já note como na transição do ontem para o amanhã , os planos afiados adicionam uma sensação de agressividade à composição e como é inquietante que essas mulheres ainda sejam sombreadas de uma forma tridimensional, mas que já não pareçam "reais”. Em quatro delas a futura fragmentação cubista dos objetos é apenas vislumbrada. A exceção é a prostituta agachada, a mais distorcida das cinco, que nos causa uma impressão mais profunda e um desconforto maior porque sua posição é impossível: vemos o corpo da moça por trás - suas costas e nádegas! – mas ela nos olha de frente. Não é uma, mas duas mulheres, como se um plano frontal e outro dorsal estivessem ocupando o mesmo espaço na tela. Os porquês dela ter sido pintada assim, serão parte de outra conversa.
Finalmente, não sei por quais motivos o toureiro deletou da composição final seus alter egos, presentes - decentemente vestidos! - nos rascunhos. Imagino que, mesmo em Montmartre, não se fazia Michelangelos como antigamente (rsrs)
Outro abraço para você
Pimentel,
ResponderExcluirObrigado pela leitura extra do artigo “Rumo à Modernidade”. Posso imaginar o susto da rapaziada diante de mulheres despidas mas tão pouco sensuais. Acho que Les Demoiselles além de agredir as tradições da pintura, as normas da sociedade e o bom gosto francês, também chocaram pelas suas características estrangeiras e primitivas. Talvez as críticas ao quadro tivessem algum racismo e xenofobia, quando o colonialismo da França estava no auge na África e no Pacífico.
Sampaio,
ExcluirO seu comentário me lembrou, primeiro, de uma anedota - talvez fantasiosa! – que jura de pés juntos que foi durante uma esbórnia que durou vinte e quatro horas no Bateau Lavoir, que Picasso, muito bêbado, mostrou aos amigos - mais bêbados ainda! - as suas Senhoritas pela primeira vez. E que ao vê-las Georges Braque - próximo de um coma alcoólico devido ao absinto consumido! – teria gritado: “Galera, depois DISSO, todos nós vamos ter que beber alcoól puro! “(rsrs)
Em seguida, você nos dá uma interpretação diversa dessas imagens, linkando-as a um softpower às avessas: em vez da primorosa arte francesa colonizar a primitiva arte africana, a última colonizara a mente de Picasso (rsrs) Bem, os pintores eram colecionadores de arte africana mas não seria a primeira que se adora publicamente aquilo que se odeia secretamente.
Eu tive oportunidade de ver, na Ásia, umas máscaras parecidas que eram vendidas como artesanato mas que já tinham sido, em um passado não muito distante, objetos de arte criados por culturas primitivas, com um propósito sagrado: a proteção contra os "espíritos malignos" ou, mais especificamente, as doenças. Lembro que elas tinham nomes impronunciáveis que significavam Sr. Sarampo, Dona Catapora e por aí vai (rsrs) Então... sempre que contemplo Les Demoiselles d’Avignon me vem à mente a noção que aquele povo tinha de que as máscaras agiam como mediadoras entre os seus usuários e as forças desconhecidas e hostis circundantes. E a leitura que faço é que esse toureiro, nesse bordel, morria de medo desses touros (rsrs) Obrigado e um abraço.
Olá Moacir,
ResponderExcluir"Cara, você é rochedo, tá ligado?", ou mais ou menos assim. Ligadíssimo, ao que parece.
Paradoxo: se a gente sabe ler, ao topar com os dizeres Não Leia, já leu. Acho que é tudo na vida, não adianta lutar contra com o que já foi visto, ouvido ou sentido. Veio para ficar, para influenciar pensamentos e atitudes, mesmo sem saber ou querer.
Assim é na arte, todos influenciando ou sendo influenciados. Normal.
Cézanne para Picasso foi fundamental. Assim como as máscaras primitivas africanas e tudo da cultura negra. Essas atingiram Picasso como um avassalador sexo selvagem.
No Les Demoiselles' pelo que você disse, Cézanne traz respostas para os problemas surgidos com a obra. E parece que o amigo Braque, mais metódico e suave, vem para amenizar a anarquia cometida. Juntos construiram o cubismo.
Prefiro o cubismo agressivo do Picasso à suavidade cubista de Braque. Falta nesse o excesso de vigor do outro.
O que é abstrair? "Como bem disse o pintor até um Picasso para começar tinha que partir de algo concreto". Como teria sido se chegasse lá? Não era sua praia.
De tanto apreciar, "as pretinhas" estão ficando cinzas e a tigela de frutas vazia à espera de refill.
Estudei, viu?
Até sempre mais.
Caríssima Donana,
ExcluirPense em um comentário “maneiro”! A senhora não precisa “estudar”: nasceu sabendo e até profetiza posts futuros (rsrs) Fazendo uso do meu quase inexistente poder de síntese eu diria que essas senhoritas iniciaram um enorme rebuliço, fazendo com que tudo, de repente, parecesse obsoleto. Na verdade o cubismo apenas teve vários desdobramentos domésticos – o orfismo e o surrealismo - e apelidos istas enquanto cruzava as fronteiras: o futurismo italiano, o vorticismo inglês, os suprematismo e construtivismo russos e o expressionismo alemão.
Sim, concordo que todos ismos devem muito a Paul Cézanne. Decerto que, desse Mestre, os cubistas pegaram emprestadas a geometrização das formas bem como a perspectiva diferenciada mas não só eles "colaram" na tarefa de casa. Nas suas pinturas maduras ele demonstra a compreensão de que nada existe isoladamente, que as coisas têm cor e massa e que, com esses atributos, é claro que afetam umas às outras.A tensão entre realidade e ilusão, reprodução e abstração, fato e invenção é o que torna tão gratificante a obra de Cézanne.
https://i.redditmedia.com/i4FnXYbAC686bPCW2giVMdr4RIFrP9cKp5-3pI0ZUZY.jpg?s=d62966a6f0d7bfca1f14d367a805be10
Essa visão inquieta é um conjunto brilhante de vislumbres e hesitações e reconsiderações e formas se estilhaçando. A intensidade do olhar e a severidade da mente de Cézanne enquanto ele tenta ver e de alguma forma compreender a "essência" dessa montanha diante dele é uma das lutas mais emocionantes e reveladoras da história da arte. Foi ISSO aí, esse legado, que conduziu a pintura à modernidade. Quando a gente olha para esses grandes remendos de cor reunidos em paisagens, sabe que a “abstração” não foi inventada por uma revolução russa. Não sei se ela foi “lançada” por um primo neandertal numa caverna da Espanha mas com certeza tem suas raízes não-figurativas mas altamente simbólicas na civilização humana primitiva. Mas ela também foi alimentada por todos os artistas capazes de intuir - como El Greco - e depois de perceber – como Cézanne - que, por mais que tentassem pintar a natureza, as cores que lhe davam eram as das suas próprias mentes. Para mim “abstrações” são a harmonia visual de Whistler , os poemas de luz de Monet, as últimas tintas de Turner, as cores de Matisse e o cubismo mais analítico, a quase abstração de Picasso e Braque, um diálogo que, de tão importante, terá um ou dois – quiça três? – posts para chamar de seus (rsrs) Não duvido que “o homem cria por abstração” mas para mim a conversa rola melhor com referências à realidade , aquele lugar onde se come um bom bife com fritas e de onde não saio nem a passeio (rsrs)
"Até sempre mais"
1)E eu? que não sei comentar artisticamente estas postagens educativas do Pimentel, viajo no tempo e eis-me adolescente lá no Gama, DF.
ResponderExcluir2) Elas eram lindas, maravilhosas trabalhadoras dos cabarés que eu visitava e me falavam cada pedaço proeminente dos atraentes corpos:
3)"Meus seios são de Luziânia" dizia uma; "Minhas pernas de Formosa" bradava outra; "Meu bumbum de Unaí, exclamava uma terceira; e mais as impublicáveis". Assim elas identificavam sorridentes suas cidades de origem, numa algazarra que nos marcava a idade.
4)Pensei em escrever um romance, nessa época eu despertava literariamente. Nunca escrevi, ficou na memória.
5) E na hora de irmos embora, os colegas me chamavam: Pi - cá - sô = Pi era o meu apelido por causa do 3,14 que acertei na prova de matemática; cá era o vem cá, e sô era a gíria local em Goiás.
6)O grande artista Picasso, quem diria, virou o Pi - cá - sô !
Antonioji,
ExcluirUm belo comentário! Quem disse que você tem que comentar as cores da arte em pauta? Uma das mudanças cruciais trazidas pela modernidade foi exatamente esse redirecionamento do significado artístico, essa atribuição do ônus da “tradução” de uma obra de arte para a relação entre ela e o seu observador e não para aquela entre ela e o seu criador. A arte passou a ser vista menos como uma declaração pessoal do artista e mais como um desafio para o espectador responder e, ao fazê-lo, dar significado ao trabalho. Ou seja, é um troço pessoal, tem a ver com a estrada e com os bytes de boas memórias.
Que bom que você e as suas "senhoritas" se divertiram soletrando a vida. Confesso que nos meus anos de “desbunde” - de 71 a 73 - a galera fazia de motel ou o carro “roubado” do pai ou as areias do Leme. Isso mesmo! Naquele tempo na Zona Sul do Rio se caminhava a pé e se namorava de madrugada! Mas às cinco da manhã, depois de amores eternos de uma só noite e, é claro, do sanduba de lombinho de porco com abacaxi no Cervantes, a gente fazia escala nos bares frequentados pelas “meninas” em Copacabana, para combater a ressaca com rabo de galo - cachaça com cinzano - bater papo e rir das histórias dos babacas dos “burgueses” que as representantes da mais velha "classe trabalhadora" da Terra, tinham que suportar. Depois voltávamos para casa assobiando com a certeza de que, no fundo, o mundo não teria solução. Mas as músicas de ontem me visitam hoje e, como você fez, eu rebobino o filme e constato que, apesar de tudo - dos pau de araras ou da falta hippie de rumo - a inocência era a marca da nossa geração e fico feliz como o carinha sem noção e juízo que fui naqueles difíceis mas tão bons e bem vividos tempos passados.
Por fim e por favor e post a post, nos escreva esse romance do Gama.
Muita "gratidão" e namastê
Prezado Autor Sr. MOACIR PIMENTEL,
ResponderExcluirEsse hábil Escritor, viajante do Mundo desde a juventude e conhecedor das Artes, especialmente a Pintura, Sr. MOACIR PIMENTEL, neste "As senhoritas da Colina", nos dá informações sobre a transformação da Pintura Representativa Clássica para a Pintura Abstrata, no caso o Cubismo do qual um dos pioneiros e maior Artista foi PICASSO, com seu grande quadro pioneiro: "Les Demoiselles d'Avignon" (1907), aqui detalhado de forma compreensiva pelo Sr. MOACIR PIMENTEL.
Com o aparecimento da Fotografia, que não muito longe previa-se que seria a cores, os Artistas Pintores perderam o grande mercado cativo de imortalizar Pessoas através da Pintura. Era preocupante.
Na virada do Século XIX para o XX, o Mundo foi varrido por um tsunami de novas Teorias, como a da Relatividade de EINSTEIN (1905) que trabalhava com a quarta dimensão, o Tempo, o qual seria também variável conforme o Sistema de Referência Utilizado na observação, mandando toda a Lógica Aristotélica para o espaço, as Teorias da Psiqueanálise de FREUD, etc, etc, tudo isso gerando nos Artistas a nova forma de Pintura Abstrata, entre elas o Cubismo.
O problema era que a Arte tem sempre que expressar a Beleza e a Harmonia, e como ver Beleza e Harmonia no Abstracionismo, especialmente no Cubismo nascente de PICASSO?
Isso é o que nos ensina o Sr. MOACIR PIMENTAL, tornando simples um Assunto que é tremendamente complexo.
Abração.
Nossa "Secretária" digitou errado seu Nome no último parágrafo.
ResponderExcluirIsso é o que nos ensina o Sr. MOACIR PIMENTEL. Desculpe.
Prezado Bortolotto,
ExcluirA você eu só tenho que agradecer. É um privilégio, repito, ter um leitor como você nesse passeio pela “nova forma de Pintura Abstrata”. Porque você "abstrai" muito bem: deleta os entretantos e mira nos finalmentes de um texto (rsrs)
Mas sim concordo que “abstrair” é um verbo complexo. Acontece que o bicho homem tem mania de separar as ideias das circunstâncias ligadas ao espaço e ao tempo, de se distanciar dos objetos e das particularidades da existência para, em seguida, torná-las gerais. O abstrato, afinal, expressa algo que só existe no pensamento, na teoria e não na prática do indivíduo. Mas note que a história humana pode ser contada através das nossas abstrações. Nós abstraímos ao usar o som para representar com fonemas tudo nesse mundo, abstraímos quando representamos a vida nas paredes das cavernas com cores, formas, linhas, pontos e inventamos a arte, abstraímos quando misturamos numa só, essas duas novidades, ou seja, quando botamos cor nos sons, forma nos fonemas, linhas às sílabas, ordem pictórica nas vocalizações, e criamos a palavra escrita. O tempo também foi uma abstração mas talvez a matemática seja o melhor exemplo da nossa vocação abstracionista: os números não são objetos físicos e sim objetos linguísticos, gerados por abstração durante o ato de contar qualquer coisa.
O jeito cubista de pintar é só mais uma abstração, um sistema que tenta revelar visualmente o entrelaçamento dos fenômenos, o tempo no espaço, os processos em vez dos estados estáticos de ser. Trata-se de uma arte voltada para a interação de diferentes aspectos entre a estrutura e o movimento, entre os sólidos e o espaço ao seu redor, os signos feitos na superfície da tela e a realidade mutável que representam.
Não vou teclar mais nada agora pois cometeria um baita de um spoiler mas adianto-lhe que apelidei essa moça aí, de cócoras, de "Senhorita Espaço-Tempo" e que trataremos dela nos próximos capítulos (rsrs) Por favor continue lendo.
Abração
Pimentel,
ResponderExcluirPerdão pelo meu atraso neste comentário.
Problemas me levaram à capital, e somente cheguei agora à tarde.
Serei rápido:
Os quadros são feios de Picasso.
Assim eu os interpretava antes de ler os teus textos sobre pintura.
Olhando, agora, depois de eu saber um pouco a respeito do Cubismo e da história desse gênio da pintura, convenhamos que pintar da forma como o espanhol fazia não só era difícil, mas uma arte própria, de alguém que se diferenciava dos demais, e tinha o seu estilo pessoal inconfundível.
Obrigado por mais este artigo sobre Picasso e sua arte inigualável, que se soma aqueles outros que estão devidamente arquivados, e que perfazem uma quantidade já apreciável de obras da tua autoria e de informações imprescindíveis para quem quiser consultá-las eventualmente.
Um forte abraço.
Saúde e paz.
Chicão,
ExcluirNão se desculpe, por favor, todos nós temos vidas para viver e eu também só consegui agora lhe agradecer pela atenção que dispensa aos meus arrazoados. Não, não foi nada fácil para Picasso e sim, a forma como o espanhol fez as artes dele foi única. Só que nelas fica claro que Picasso avançou por tentativa e erro, suas falhas impulsionando o progresso, sua experimentação compulsiva apontando novas direções.
Acho que pensamentos originais não brotam do éter - @#$%&@!!! - e que é a realização humana do passado que define o caminho do futuro e nunca apenas o brilho da inteligência individual.
Sei que você não aprecia os aforismos mas, so sorry, durante séculos, eles vêm bajulando a inteligência coletiva e jurando de pés juntos que a originalidade nada mais é que uma imitação criteriosa. Albert Einstein - de quem conversaremos em seguida! – achava que a “criatividade sabe como esconder suas fontes"(rsrs). Os avanços na arte cometidos por Picasso foram o resultado das idéias das gerações de mestres que o precederam embora a criatividade dele tenha sido sim um trabalho duríssimo, um lento caminho de adições e subtrações, de foco e simplificação. É por isso que, ainda que as cubices nem sempre nos sejam esteticamente agradáveis, elas são inspiradoras. Como não achar uma beleza o cérebro humano funcionando a todo vapor?
Obrigadíssimo e abração.