-----------------------------------------------------------------------------------------------------------------

16/06/2018

Chuvas, óculos e avôs

fotografia WBJ

Pedro Nunes Baptista
Só quem usa sabe os efeitos da chuva num par de óculos: tal qual um carro sem limpadores de para-brisa, o míope é promovido a quase cego.
Hoje à noite saí para uma volta de bicicleta, com um amigo, e fomos surpreendidos por uma baita chuva, inesperada, forte e bem molhada.
Pedalando de volta, com os óculos cheios de gotas de água e ofuscado pelos faróis dos carros na pista ao lado eu não via quase nada, e vinha lembrando de quando tomei a minha primeira chuva usando lentes de contato, devia ter uns quinze anos. Que maravilha, podia ser o maior pé-d’água que eu me sentia num chuvisquinho sem vergonha, todo molhado, é verdade, mas vendo tudo.
Percebi naquela época que eu media a intensidade da chuva pelo tanto que ela atrapalhava a minha visão, e que o fato de estar molhado era um efeito quase secundário.
Cheguei em casa, meu amigo continuou seu caminho e fui, sujo e feliz (adoro andar de bicicleta) direto para o banho. Saí do chuveiro, me enxuguei, e olhei os meus óculos em cima da pia do banheiro, ainda respingados da chuva. Deveria lavá-los, mas não sei por que comecei a enxugá-los com a toalha de rosto, mesmo sabendo (também só o sabe quem os usa) que inevitavelmente o resultado não seria satisfatório. Nessa hora veio uma lembrança, de mais de trinta anos atrás. Era a minha missa de formatura da oitava série, à tarde. Teve aula de manhã, a igreja era perto do colégio e não voltei pra casa, eu e mais um colega almoçamos na casa de um outro, lá perto. No caminho para a igreja, uma chuvarada. Quase que uma chuveirada. Encharcados, sem tempo de voltar para a casa do amigo (e de que adiantava, se a roupa chique da missa, camisa branca, de botão, já estava toda molhada...) seguimos em frente. Chegando na igreja, os óculos molhados, míope promovido, mal percebi um vulto em pé, sob a marquise da igreja. Só bem perto reconheci: era meu avô, sorrindo ao ver aquele grupo de adolescentes ensopados.
O resto da família já estava lá dentro, ele deve ter saído da igreja para fumar, imagino hoje, trinta anos depois. Na época nem me toquei, lembro te ter achado estranho ele lá fora sozinho, e, encharcado, pensei: - Lá vem gozação!
Tirei meus óculos, comecei enxugá-los na ponta da camisa, tão molhada quanto eles, numa tentativa tão desajeitada quanto infrutífera (só o sabe quem os usa...).
E eis que meu avô, com um carinho que eu nunca tinha visto, toma os óculos das minhas mãos, tira um lenço do bolso e com um cuidado que eu também nunca tinha imaginado começa a enxugá-los. De cima para baixo, percorrendo cada lente lentamente em movimentos retos, completos, perfeitos, e depois repetindo de um lado ao outro, empurrando a água e a sujeira cuidadosamente para fora das lentes. Já não me lembro se ele disse alguma coisa, mas era desnecessário. Naquele instante, assim como agora, ficou óbvio para mim que era uma aula, a experiência de anos sendo passada de avô para neto, de míope para míope. Por fim me entregou os óculos, incrivelmente limpos, e entramos na igreja.
Esse ano faz quinze anos que meu avô morreu. Hoje a saudade veio forte com essa lembrança, forte como há muito não vinha, mas veio como toda saudade deveria ser: feliz, muito feliz.



8 comentários:

  1. Lea Mello Silva16/06/2018, 06:59

    Dom de família de escritores e um neto lembrando do avô !!!
    Gostei muito Pedro e espero que continue a escrever


    ResponderExcluir
  2. Filhão lindo,
    que me fez chorar mansinho e escondido, feliz, muito feliz de ter você!
    Um beijo.

    ResponderExcluir
  3. 1) Boa crônica. Parabéns ao novo colaborador do blog.

    2)A meu ver, esta é a beleza desse espaço virtual, lembranças, relembranças, memórias, vida.

    3) Eu também, na qualidade de míope, lembro de um menino que ia para a escola, de manhã cedo.

    4)O menino apontou em minha direção e exclamou:"Ih ! Pai, olha ali um quatro olhos". O pai sem graça, brigou com o filho. Respondi sorrindo: "Sem problemas..." Ele falou a verdade.

    ResponderExcluir
  4. Flávio José Bortolotto16/06/2018, 10:01

    Prezado Autor Sr. PEDRO NUNES BAPTISTA,

    Belíssima homenagem ao seu ilustre e centenário Avô, que entre tantas boas lembranças, nesta ocasião lhe limpou carinhosamente seus óculos, na entrada da Igreja para a Missa de Formatura, depois da pancada de chuva que lhes tomou de surpresa.

    Só quem usa óculos sabe como são essas coisas.

    Seu ilustre Avô, como nos conta o Editor-Moderador do "Conversas do Mano", Sr. WILSON BAPTISTA JÚNIOR, além da Profissão, tinha como hobby a Fotografia, Arte onde ganhou muitos Prêmios e possuía incrível habilidade com as mãos e na Mecânica, consertando e mesmo construindo, aparelhos de som, móveis, etc.

    Além do que, foi o Patriarca da excelente grande Família que é a Vossa.

    Parabéns e Abraços.

    ResponderExcluir
  5. Moacir Pimentel18/06/2018, 07:29

    Pedro,
    Há textos que nos paralisam o teclado porque são perfeitos, dizem tudo e a eles nada se pode acrescentar. E há outros que nos acomodam à sua beira e dariam dez horas de conversa. É o caso! Também guardo na memória um byte parecido que rola na alameda defronte do pátio do recreio do colégio, onde depois das aulas nos tempos de eu pirralho ficávamos esperando que nos viessem buscar. Quando meu avô materno chegava de visita ao Rio e não encontrava os netos em casa, não tinha paciência para esperar. Ia à escola nos resgatar! Lá do território primário nós o avistávamos de longe, no alto da escada que fazia fronteira com o prédio do ginásio, de terno e fartos cabelos brancos, maior que o mundo. Era um berro só: É O VOVÔ! Saíamos em disparada e como eu sou o caçula dos “meninos”, sempre chegava por último sem que, no entanto, me faltasse espaço naquele abraço.
    A vida deve ser muito complicada para aqueles que, como nós, não tiveram e têm família, essa corrente inquebrantável onde se aprende por mímica a ser gente, homem, marido, pai e avô e a ter “saudades felizes”. Aliás, ainda escuto, de quando em vez e de novo, o querido velho nos perguntando: "Me digam, como confiar nos infelizes?" Não dá! Parabéns, obrigado pela bela crônica e “até mais”.



    ResponderExcluir
  6. Francisco Bendl18/06/2018, 08:03

    As lembranças de um passado que nos traz nostalgia, significa que tivemos momentos de grande envolvimento emocional!

    A crônica muito bem feita do Pedro - seria filho do Mano? -, evidencia uns minutos na sua vida com o seu avô que o jamais iria esquecer, justamente pela ternura e carinho do progenitor para com ele.

    Foi um gesto simples, limpar os óculos, mas de enorme significado pessoal em razão da atenção do avô, os cuidados, a atenção, o bem-estar do neto quanto à visão não estar sendo interrompida.

    Bonito texto, singelo, uma recordação memorável e indelével.

    Meus aplausos pela bela crônica.

    Forte abraço.
    Saúde e paz.

    ResponderExcluir
  7. Pedro, uma bela lembrança de um raro momento de ternura de um avô muitas vezes severo, mas que sempre gostou de vocês, que nos esquenta o coração e reaviva a nossa saudade.
    Obrigado, meu filho.

    ResponderExcluir
  8. Estimado Pedro
    Eu sou o mais velho dessa turma toda que escreve no abençoado blog de seu Pai, onde sou o decano. Oitenta e dois anos!!!...Outro dia, indo embarcar em um avião para visitar minhas irmãs em Goiânia,fui colocado em um "chiqueirinho" de espera dos "idosos plus", de onde saí acompanhado por uma linda jovem (ai meus tempos...)até o assento bem na frente (perto do banheiro...).
    O avião levantou voo, etc...De repente, dei-me conta que, no avião lotado, eu era o único "idoso plus" (o idoso comum - ralé...- tem só mais de 65 anos). Que fazer? Atacar o assunto de frente, limpar a cabeça e tocar para a frente...
    Os italianos têm um excelente ditado para isso:"Se você não tem um avô em casa, alugue um..."
    Pois bem, sou avô de quatro netas, a mais velha com 10 anos, as mais belas do mundo. Casa cheia, uma mulherada barulhenta danada...
    Contudo, sofro muito pois não tenho neto. Um macho pra falar grosso e jogar uma bola comigo...Estou alugando um neto..Pago bem...
    Pedro, não contrato você porque está idoso para o cargo.
    Um abraço fraterno, extensivo a seus pais. Gente boa...
    Domingos

    ResponderExcluir

Para comentar, por favor escolha a opção "Nome / URL" e entre com seu nome.
A URL pode ser deixada em branco.
Comentários anônimos não serão exibidos.