Belo Vale, Itabirito (fotografia Ana Nunes) |
Ana Nunes
Hoje não falo de Minas bela, recatada e do
lar. Penso antes nas cores dos montes e barrancos que descem com a chuva e
abrem fendas grandes e coloridas. São fendas chamadas voçorocas ou simplesmente
ocas. Na poesia da natureza são as “feridas do solo”. É aí que mora esse texto,
nos pigmentos naturais.
Ao se mostrarem, essas fendas oferecem uma
linda gama de cores. Cores claras de argilas lavadas pelas águas. Ou
avermelhadas tingidas de óxidos de ferro. Para mim se apresentam quase como
peças de carne com suas fibras alongadas. Outras rosas ou azuladas, amareladas
e cinzentas, marrons e negras... Cores caminhantes dos óxidos de ferro,
manganês, matéria orgânica, minerais e uma intensa atividade biológica.
Porque natureza é vida! E assim deve ser
sentida e cuidada.
A preparação artesanal é uma tradição. Já os
primitivos fizeram seus lindos desenhos em cavernas, as maravilhosas pinturas
rupestres de Lascaux na França, Altamira na Espanha. Assim, com carvão e terras
coloridas, aglutinadas com gordura animal ou resina vegetal, esses antepassados
chamaram suas caças e invocaram fertilidade. E essas pinturas chegaram até nós
graças à estabilidade química dos pigmentos usados.
Além deles, os pintores antigos.
Quem nunca viu em filmes esses pintores
clássicos fazendo seus próprios pigmentos como A Moça de Brinco de Pérolas
amassando lápis lazúli num maravilhoso e caro azul para os olhos e mãos hábeis
de Vermeer?
Além de histórias douradas e herói
esquartejado e poemas românticos de amores perdidos, ainda além de suas belezas
naturais (sou bairrista sim, com muito orgulho), minha terra é um celeiro dessa
arte dos homens primitivos. Bem pertinho de Belo Horizonte há pinturas
milenares em cavernas e paredões de pedra.
Pinturas na Serra do Cabral (fotografia Alberto Einstein Ferreira) / Na Serra da Capivara (fotografia Vitor 1234) |
Somente na região metropolitana são cerca de
duzentos sítios arqueológicos com esses vestígios prehistóricos. Parque
Estadual Cerca Grande em Matozinhos, Lapa Vermelha em Lagoa Santa, Parque
Estadual do Sumidouro em Pedro Leopoldo, Gruta de Maquiné em Cordisburgo, Pedra
Pintada em Cocais. E muitos outros mais que nos encantam com as pinturas desses
antepassados longínquos. Maravilha!
Nessa terra de montanhas, vento e chuva com
sol dourado, os pigmentos da terra variam de amarelo-ocre até o preto passando
pelo vermelho, roxo e verde.
Belo Vale, Itabirito / Mina da Morgan em Rio Acima (fotografias Ana Nunes) |
Visitei em Morro Acima a Morgan, uma indústria
antiga de ingleses importados bonitos com seus biotipos alongados enfiados em
camisas xadrez e calças de cores combinadas, que produz os óxidos de ferro
vermelho e ocre. O pigmento é recolhido usando-se escavadeiras, transportado em
caminhões até os moinhos. Fornos são usados para a secagem e esteiras rolantes
para a embalagem.
Fábrica de pigmentos Morgan (fotografia Ana Nunes) |
E sejam assim industrializados ou colhidos
manualmente, os pigmentos aí estão pertinho de nossas mãos e cheios de cor para
alegrar a vida. É só ajuntar colegas de ofício, garrafas de água, uns biscoitos
e frutas, uma van, Kombi também serve, pázinhas e sacos de plástico para o
transporte do material encontrado. Ah, e muita energia e humor (até porque
gente mal humorada é obra de Satã) para subir e descer barrancos. No caso de
uma chuva mais ou menos inesperada usar os sacos de lixo em capas criativas.
Todo mundo Bob Esponja. Na volta sim, o bicho pega. Porque cansados e
carregando pedaços de natureza.
fotografia Ana Nunes |
Até agora tinha ar de picnic, bonito,
tranquilo, liberdade e verde. Ar puro de montanha. E começa o trabalho de
verdade. Tipo trabalho escravo. Material separado por cores mais uniformes,
limpeza das amostras, trituração ou moagem, todo mundo martelando com soquete,
pilão ou moinho de bola até virar pó fino. Depois vem o refino. E é um tal de
peneirar, escaldar e decantar, escaldar e decantar, escaldar e decantar... e
coar. E por para secar. O sedimento mais fino vai para a aquarela, o mais grosso
para o guache, o pastel, a tinta para alvenaria. E haja ficha técnica com os
dados do pigmento, caso contrário vira a maior bagunça!
Acabou? Nada disso. Escolha do aglutinante ou
ligante como goma arábica, CMC, cargas, agente umectante, fungicida como timol,
óleo de cravo, formol. Para o afresco, pintura executada enquanto a argamassa
ainda está fresca, o pigmento é aplicado em mistura com a água.
Potinhos fechados e etiquetados, pastéis
enrolados em papel manteiga e material base estocado para depois.
Lindas tintas, tudo organizado. Mãos à obra!
Para falar a verdade verdadeira mesmo é muito
mais fácil ir a uma loja de importados e se maravilhar com o material exposto.
E, se estiver abonada, como diria o meu professor Vlad Poenaru importado lá das
terras dos vampiros, comprar uma aquarela Winsor & Newton ou Cotman,
pincéis Kolinsky de pelo de marta e papéis de algodão gramatura 300 Arches, Montval, Fabriano,
todos com lindas marcas d'água. E se o dinheiro estiver curto, o que é
frequente hoje em dia, vá de Pentel, Tigre e Canson comum.
O importante é experimentar e se divertir!
Até mais.
Que aula ! Como não querer participar e divertir com as cores
ResponderExcluirAs ilustrações estão ótimas !
Uma artista e seus dons ! Temos que aplaudir 👏
Querida Léa,
ExcluirJá nos divertimos muito entre cores aqureladas, não foi?
Obrigada pelo comentário, sempre gentil e motivador.
Beijo.
O texto interessante e – como sempre – excepcionalmente bem feito de Ana, me aguçou a curiosidade para deixar uma questão no ar:
ResponderExcluirComo que seria este planeta, a sua terra, que pisamos, cultivamos, e dela colhemos os frutos para nossa sobrevivência, se não fosse colorida?!
Monocromática ou duas e mais outra cor?!
A própria palavra, “colorida”, já significa um espetáculo à parte, por exemplo:
Vida colorida, uma existência feliz, radiante;
Filme colorido, que motivou o espectador ir ao cinema, e admirar as cores em tela grande;
Espetáculo colorido, ou seja, esfuziante, alegre.
As cores que usamos nas roupas, as que mais preferimos, os tons de milhares de cores usadas nos veículos, nos aviões, nos navios.
As cores dos eletrodomésticos, e os aperfeiçoamentos tecnológicos das TVS 4k, que dão vida às cores, tornando-as quase como o olho humano na perfeição de suas reproduções ...
As cores das cortinas, dos lençóis, das colchas, das toalhas de banho e mesa ...
As cores dos sofás, das poltronas, dos assentos, das cadeiras, das peças que compõem um banheiro bem agradável com seus tapetes, cobertura do vaso, cortina do chuveiro ...
As cores do ser humano!
Branca, negra, amarela, vermelha, cor de cuia, morena jambo, loira ou loura, loira de farmácia, também. Da mesma forma as cores do cabelo, desde preto graúna, cor de trigo, caju, castanho, ruivos, acinzentados, fios brancos, até mesmo pintados na cor de vinho!
O mundo é uma explosão de cores, onde as duas que mais nossos olhos estão acostumados é o verde e o azul, que na verdade não é a cor do céu mas, vá lá.
E as cores dos nossos olhos, que enxergam essas tonalidades que não temos ideia de quantas existem?!
Olhos azuis, verdes, castanhos, pretos, esverdeados, azulados, e brancos, quando a catarata os invade ...
Até a água tem cor??!!
Azul, verde, marrom, branca, transparente ...
E as cores que pintamos os prédios, seus telhados, portas, muros, as garagens ...
Qual seria a mais bela de todas as cores que conhecemos?
A cor do ouro, do diamante, do rubi, da esmeralda, da opala ...?
E que lindas as cores dos animais!
O tigre, então, dá a impressão que Deus foi muito generoso com a beleza dessa espécie!
O urso Panda?
As araras coloridas e a famosa azul?
Os papagaios, verdes, vermelhos, amarelos ...
E que tal a cauda do pavão quando aberta, mostrando o esplendor da Natureza com suas cores belíssimas e únicas?!
E dos gatos angorás, brancos?
Dos siameses e seus olhos coloridos?
E de um cavalo baio ou tordilho ou malhado?!
E a dos cães, tipo o maravilhoso pelo do Golden Retriever?!
E tem cada vira-lata bonito ...
E as cores do sol, ora dourado, amarelo, avermelhado ... e que tal o pôr do sol ou quando desponta pela manhã com seu fulgor e vida?!
Por falar nisso, qual seria a cor da vida?
Do amor?
Do afeto?
Do ódio?
Da vingança?
(Continuo)
Certa feita, um cego havia perguntado como que poderia saber sobre as cores através do tato.
ResponderExcluirUma pessoa inteligente, sensível, pegou-lhe a mão e a colocou sobre um cubo de gelo, dizendo que era azul, frio; fez o mesmo com um palito de fósforo aceso, que o deficiente físico passou o dedo rapidamente, para dizer que seria o vermelho, quente. Da mesma forma, passou-lhe no rosto um ramo de grama macia, e disse que era o verde.
Brilhante ideia.
A Ana não me surpreende mais com suas crônicas maravilhosas, que nos faz pensar, meditar, e brotar ideias e pensamentos que jamais teríamos durante nossos dia a dia (eu, pelo menos, nunca me imaginei escrevendo sobre cores).
Curiosamente, as palavras também têm cores!
Escrevemos com tinta azul, preta, vermelha, verde, marrom, lilás, roxa, rosa ... e temos os lápis coloridos, que nos encantavam quando éramos crianças!
Os idosos perderam esta alegria das cores, substituindo-as pelo cinza? Pelo opaco? Pelas sem graça cores pastéis?!
Bom, o meu time é o Internacional, de Porto Alegre, que tem as cores vermelha e branca!
Parabéns, Ana, pelo texto, pela mensagem, pelas cores exuberantes desta tua obra, que admirei muito e me fez meditar a respeito.
Aliás, este é o papel do verdadeiro escritor, quando nos faz pensar, dar asas à imaginação, quando nos obriga a brotar de dentro de nós mesmos ideias e pensamentos que jamais nos passariam pela mente, ainda mais coloridos!
Um forte abraço, Ana.
Muita saúde e paz, extensivo aos teus amados e, espero, que estejas re recuperando bem da cirurgia, e voltes a caminhar normalmente o mais breve possível, em Cinemascope e Technicolor!!
Francisco dos Pampas,
ExcluirVocê extrapolou. Foi muito além do combinado!
E se meus escritos te fizeram refletir e escrever essa maravilha estou contente demais.
Prometo andar em Cinemascope e technicolor. Projeto imediato.
Muita saúde e paz para você também para, entre outras coisas, perambular por aqui e por ali com muitos escritos mais.
Caríssima Donana,
ResponderExcluirNo seu caldeirão de feiticeira a senhora cozinhou esse post com todas as especiarias necessárias para agradar o meu paladar! Brava! Quantos bytes de memória! Sabe? Certa vez voltando de férias nordestinas nosso pai desviou da rota e nos levou para conhecer, primeiro a Gruta de Maquiné e, em seguida, Brasília. De Kombi! É que tradicionalmente a família tem se mantido fértil! (rsrs) Eu não sei se ele teve a intenção de nos fazer compreender a fabulosa viagem da nossa espécie do seu mais primordial capítulo ao mais moderno. Mas o fato é que da “oca” nas entranhas da Mãe Terra que já nos serviu de morada até a curvas de concreto da capital abraçando a “eternidade finita” do cerrado, eu fiquei impressionado. Jamais esqueci nem o brilho da estalactite branca nem a beleza do anjo suspenso entre os semi arcos.
Em seguida, a senhora dispara com os desenhos rupestres das Sistinas mineirins. Covardia! Sou viciado nesses pontos e linhas, mãos e os símbolos universais, e nos animais com volumetria e sobreposições! Que maravilha que é a segunda das linguagens humanas inventada pelos primeiros pintores da humanidade que hoje Dona Arqueologia defende terem sido os nossos primos, homus porém Neandertais. E jura que as mulheres também fizeram essa festa nas cavernas! Psiu! Isso foi um spoiler!
Através do seu texto e fotos pela primeira na vida eu cacei, separei por cores, moí, triturei, peneirei, escaldei, decantei, coei e sequei nesses fornos aí os “sedimentos” para as lindas tintas do meu encanto. Seu professor me lembra do meu, um renascentista nazista que fazia os alunos desenharem narizes por semanas a fio e depois e pela ordem: orelhas, bocas e olhos. Quanto o cara me falou que MÃO era um “trem” muuuuito difícil e que , portanto, nos tomaria meses, eu chutei o pau da barraca e as partes jamais viraram um todo e mundo perdeu um artista (rsrs)
Como agradecer por esse belíssimo passeio com retorno “Bob Esponja” ?
Não tem como.
“Até muito mais”
Olá Moacir,
ExcluirEstou aqui feliz entre bolhas de especiarias mexendo meu caldeirão feiticeiro.
Feliz por este caldo, tanto tempo adiado, ter agradado paladares refinados. E mexendo entre bolhas para ver se saem outras poções. Trabalho árduo!
Sua viagem aventura, porque uma viagem assim de crianças, pais, merendas , paradas para os chichis urgentes é sempre uma aventura, ente oca e concreto deve ter sido marcante. Bytes de memória! O que seria de nós sem eles?
Seu professor nazista não conseguiu impedir o artista. Entre pretinhas e tintas coloridas, entre filhos e netinhos você o é.
Continue lendo e serei grata sempre!
Até sempre mais.
ExcluirDesculpe, xixi errado. Onde estou com a cabeça? No pé ou na idade?
1) Os textos da Ana são revestidos de Poesia, de Arte, fotos no 10 !
ResponderExcluir2)Está de parabéns o editor por "aceitar" a participação da Poetisa Ana. Sucesso à dupla !
Olá budista feliz,
ExcluirMelhor do que o editor me aceitar é voces terem me aceito. E terem me estimulado sempre. Sou insegura.
Hoje fiquei sabendo através da minha irmã daqui que uma amiga dela ficou amiga do blog depois de topar com um texto seu sobre budismo. Legal demais, não é?
Obrigada pelos elogios. Obrigada pelo comentário.
Até mais
Prezada Autora Sra. ANA NUNES,
ResponderExcluirA grande Artista Plástica e não menos excelente Escritora Sra. ANA NUNES, nos leva a admirar as maravilhosas cores que o solo montanhoso e metalífero deste grande Estado de Minas Gerais, apresenta.
As lindas fotos mostram um pouco desta bela e variadíssima pigmentação, à mostra nos cortes do terreno.
Também o seu Artigo nos informa de importantes Pinturas pré-Históricas em Cavernas e Paredões Mineiras da Serra do Cabral e na Serra da Capivara, entre outros, conforme Fotografias.
Eu não sabia da existência dessas Obras de Artes primitivas, mas já bem feitas, pelos nossos primeiros habitantes Indígenas. E somente na grande Região Metropolitana de Belo Horizonte-MG são mais de 200 Sítios Arqueológicos.
Como o Brasil é grande e diversificado.
Em seguida a Sra. ANA NUNES nos fala da produção manual de pigmentos especiais feitos artesanalmente, e industrialmente como a Empresa MORGAN LTDA de Morro Acima-MG, uma das mais tradicionais.
Coleta, limpeza das amostras, moagem, refino, e por último a secagem/embalagem.
Mas tudo isso não teria sentido, não fossem o Talento de Artistas como a Sra. ANA NUNES, que usando de sua criatividade Artística, fazem maravilhas com as Cores.
Saudações.
Olá Flávio Bortolotto,
ExcluirSempre fico contente de encontrar você aqui. Acho que tenho medo de você sumir de novo!
Esses trabalhos primitivos são mesmo muito bonitos, combinando o pigmento da terra com o paredão de pedra. E reveladores como o é a pintura de cada época. Disso nos falam muito bem os textos do Moacir.
Obrigada pelo comentário tão elogioso. Isso ainda vai me fazer mal...(rsrs)
Até mais.