A festa de Babette (imagem Nordisk Film) |
Heraldo Palmeira
Era mais um
aniversário, quase encostando nos sessenta. Bem vividos, podia afirmar.
Percalços, dores, dissabores? Claro! Quem passou sem eles? Afinal, trata-se da
velha e boa vida, cheia de altos e baixos. E planos.
No final da
tarde, amigas recentes enviaram um bolo delicado e delicioso. Enorme surpresa.
Sinal de que os afetos ainda valem a pena, estão vagando por aí prontos para
serem capturados e cultivados para amanhã e depois de amanhã.
O
restaurante (que vive cheio) ainda não estava cheio, era cedo da noite. A
amizade com os da casa garantiu a reserva dos quatorze lugares por aquela meia
hora a mais, para ajuste do relógio biológico aos sabores que viriam a seguir.
O
aniversariante chegou antes da hora para evitar contratempos. Trazendo a
tiracolo os joelhos bichados, a novíssima dor no ombro, os quilos a mais
adquiridos por anos a fio de vida sedentária, que estão diminuindo por esforço
próprio – “é preciso melhorar as taxas”, disse-lhe o médico amigo, como um
professor cobrando melhores notas na matéria.
E daí para
esses acessórios do tempo? Estava feliz porque foi sendo feliz aos poucos ao
longo da vida – por sorte e pelo esforço próprio de sempre buscar as
contingências certas, o que realmente importa.
Os da
família, pequena, chegaram em seguida. O grupo foi se formando devagar, a
maioria em casais. Eram todos velhos amigos, o grisalho ou branco nas cabeças
dava a pista do tempo de convivência. Um ou outro fora da confraria pelo menos
sabia dos outros. Exceção às três meninas, ligadas ao grupo e ao
aniversariante. Elas quiseram vir de bom grado, talvez prevendo que iriam se
divertir muito.
Os presentes
certeiros trouxeram a delicadeza do bem-querer dentro das embalagens.
Havia muitos
conhecidos em outras mesas, a cidade ainda mantém essa característica, quase
todos conhecem quase todos. Razão para muitos cumprimentos, reencontros,
conversas rápidas.
Sem combinar
nada, não beberam álcool. Preferiram água, água de coco, sucos e refrigerantes.
De repente, iniciaram uma deliciosa brincadeira – puxada pelo aniversariante –
de mudarem de cadeiras. Um jeito de todos ficarem perto de todos, fazer a
conversa rodar na mesa enorme e não ficar presa em subgrupos.
E riram e
riram e riram, como há muito não faziam. Com gosto, sem censura, sem se
preocupar com nada ao redor. Quase crianças. E encheram aquele salão com tanta
alegria...
E o
aniversariante disse que não precisavam mais cantar o “Parabéns...”, pois outros
cinco aniversariantes fizeram a velha canção soar a plenos pulmões. E ele,
moleque, agradecia a cada cantoria alheia. “Assim já é demais, cantaram uma vez
e teve bis, tris e quadris! E mais uma quinta!”.
No meio da
algazarra, soava de mansinho a trilha sonora espetacular da casa, em seu
equipamento refinado – de longe, o melhor da cidade. A música sempre teve
grande importância na vida daquele grupo, alguns deles envolvidos com a cena
cultural. E, por coincidência, ali na mesa estavam os dois responsáveis por
aquele projeto de sonorização do restaurante.
É como um
sol de verão
Queimando no
peito
Nasce um
novo desejo
Em meu
coração
É uma nova
canção
Rolando no
vento
O tempo lá
fora parecia ter parado um pouquinho para que aquele tempo ao redor da mesa passasse
mais devagar. Não dizem que a felicidade é a soma de momentos felizes?
O mar bem
mais adiante não era visível dali, mas estava lá abaixo com o vento de uma nova
canção, com o sol guardado para o dia seguinte.
– Quero
saber como será quando os pratos chegarem. Quando fizemos o pedido, eu estava
acolá, na ala do camarão do chefe. E agora já estou sentado quase do outro
lado. Será que eu consigo, pelo menos, um frango do lado de cá? – preocupou-se
o professor gaiato, que havia lecionado a meio mundo que estava no restaurante.
– É verdade
que você já dava aula de química aos índios quando os portugueses chegaram? – e
seguia o rodízio de lugares e gracejos.
– Estou com
vontade de ir ao banheiro, mas tenho medo de sair e perder meu lugar – disse,
agarrada à bolsa, a mulher que já havia rodado meia mesa e conseguira sentar
outra vez ao lado do marido. Gargalhada geral.
– Se eu
fosse você, esperava até os pratos estarem servidos, é mais seguro – respondeu
um prudente sentado à frente.
Mais uma
pérola da trilha sonora e o aniversariante olhou com ternura para seus amigos,
tentando rever todos num tempo de antes, quando eram jovens.
Você lembra
Lembra
daquele tempo
Eu tinha
estrelas nos olhos
Um jeito de
herói
Era mais
forte e veloz
Que qualquer
mocinho de cowboy
Você lembra
Lembra, eu
costumava andar
Bem mais de
mil léguas
Água da
fonte
Cansei de
beber
Pra não
envelhecer
Como
quisesse
Roubar da
manhã
Um lindo pôr
de sol
Olhou para
aquelas meninas, tão lindas, guardiãs da juventude, que não faziam a menor
ideia do que é envelhecer. E nem precisavam mesmo, teriam tempo de sobra para
essa aventura. Até porque a velhice não é dada a espalhafatos, vem chegando
silenciosamente, não se percebe sua instalação, apenas que está instalada.
Olhou para a
mulher que refletia seus olhos. Era bom rejuvenescer.
Os sabores
da cozinha famosa desfilaram absolutos, naquela certeza de que são o que sempre
foram e continuarão sendo. Ao fim, chegaram os garçons naquela farra boa, o
pequeno bolo, a música repetida pela sexta vez entre palmas. E todos os
gracejos cabíveis.
Vela
soprada, apagada. E ninguém estava interessado em ir embora. E foram ficando
mais um pouco, avançando sobre a hora de fechar as portas do lugar. E começaram
a se levantar e a prolongar as conversas, de pé. E foram se despedindo e
convocando novos encontros para o mais breve. E foram saindo para as separações
adiadas até o limite, cada um voltando para sua própria vida, o tempo voltando
a rodar inclemente.
O
aniversariante viu seus amigos indo embora, sozinho no silêncio da falta de
risos, caminhando até o carro. Não quis pensar no tempo, a idade ensina que é
preciso otimizar esse item precioso. Não quis sentir saudade, estava mais
interessado em apostar nas alegrias.
Pensou nas
urgências sem sentido da juventude e na liberdade que chega com o
envelhecimento. Pensou no movimento dos afetos, os que se perderam pelo caminho
e os que chegaram inesperados.
O salão
vazio, lá dentro, quase às escuras, contraponto à claridade do poste de iluminação.
As marcas do rosto refletidas na vidraça lateral do restaurante. Profundas,
superficiais, relevo irregular de uma vida.
Pensou na
glória de ser imperfeito, no desejo de ganhar asas. Ainda escapava pelas
frestas da porta a trilha sonora.
O poder que
nos levanta
A força que
nos faz cair
Qual de nós
ainda não sabe
Não há pedra
em teu caminho
Não há ondas
no teu mar
Não há vento
ou tempestade
Que te
impeçam de voar
Trechos de:
Canção de verão (Luiz Guedes-Thomas Roth)
Sapato velho (Mú Carvalho-Cláudio
Nucci-Paulinho Tapajós)
Dona (Gutemberg Guarabyra-Renato Sá)
Fui lendo e entendendo cada palavra de um aniversariante diante do envelhecer
ResponderExcluirE fiquei feliz de encontrar a jovialidade e energia do escritor
Parabéns pelo otimismo e alegria
1) Escreve muito bem, eu já falei isso antes e repito.
ResponderExcluir2)A foto do filme ótimo, Babette, gostei muito, uma reflexão sobre o tempo.
3) Letras de músicas decorando o texto.
4)Parabéns Heraldo; o Mano pode recitar Gonçalves Dias, adaptando-o: "Meu blog tem Palmeira, onde encanta o leitor...".
Ah, meu querido HP, que delicada cena, que preciosa descrição. Obrigado por essa pequena joia que me acabou o coração. Amplexos saudosos.
ResponderExcluirOlá Heraldo,
ResponderExcluirTanto tempo sem lhe ver por aqui e você aparece insistindo em escrever tão bonito.
"A delicadeza do bem-querer nas embalagens e o tempo parado um pouquinho para passar mais devagar". Tão lindo, tão poético, tão verdadeiro, encantou-me a alma. E me fez feliz.
E "estava feliz porque foi sendo feliz aos poucos ao longo da vida..." Como pode você já saber disso se é tão jovem? (Terá nascido velho, como eu?) Encantei-me de novo. E de novo ao longo do texto.
E ao final, o vento e a tempestade da música que não impede de voar, me lembrou outras palavras já gastas e tristes
E
E se me crescem as asas
e não posso voar?
Se o cheiro do vento me chama
e não posso vagar?
Se o azul do mar na areia branca
quer molhar meus pés
e não posso andar?
....
Quero sempre muito mais. Não economize!
Até então.
Prezado Autor Sr. HERALDO PALMEIRA,
ResponderExcluirParabéns pela bela Crônica descrevendo seu aniversario do início da madureza ( +- 60), com amigos e parentes.
O Autor também faz boa análise dessa fase da Vida, quando já percorremos um certo caminho e temos outro tanto pela frente.
Nessa fase geralmente nos sobra mais tempo para Estudar uma vez que podemos nos dedicar menos ao Mercado.
E o Sr.HERALDO PALMEIRA, estuda e escreve muito bem. E escrever bem e' a mais difícil das Artes segundo os Hebreus que a praticam a quase 6.000 Anos.
Feliz Aniversário e Saudações.
Bela a crônica de Heraldo.
ResponderExcluirFrases bem feitas, essência nostálgica no tema apresentado, as reminiscências de um passado que se vai longe são sempre bem-vindas, ainda mais quando alegres, felizes, indeléveis.
Para quem beira os setenta, e sou um deles, as recordações de encontros familiares em torno de uma enorme mesa comemorando aniversários ou festas durante o ano é reviver cenas que jamais esqueceremos.
Portanto, aplaudo a obra em tela porque pontual e adequada à época que alguns dos comentaristas e articulistas estão vivendo, cujas lembranças impulsionam a existência para seguir em frente homenageando exatamente aqueles que já se foram e nos deixaram um legado de magníficos encontros e de festas maravilhosas!
Cumpre-nos fazer o mesmo com nossos filhos e netos, de modo que pensem o mesmo de nós quando nos encontrarmos com os que hoje homenageamos em textos eivados de saudade, e que tanto abrilhantaram as nossas vidas, colorindo-as com suas elegâncias de personalidades ímpares, acompanhadas pelas satisfações de pessoas que também nos amavam e queriam estar ao nosso lado.
Abraços, Heraldo.
Saúde e paz.