Presidentes da FIFA, Rússia, França e Croácia na premiação da final da Copa 2018 (fotografia newkerala.com) |
Heraldo Palmeira
A cada Copa do Mundo, o mundo da bola se reúne numa festa de dar
gosto – principalmente para os cofres da Fifa.
Além do jogo da bola, uma grande diversão paralela é ver e ouvir
os especialistas e suas verdades virando pó a cada partida. Antes de começar o
torneio e até os primeiros movimentos do jogo de abertura, a Rússia era quase
ridicularizada pelos jornalistas esportivos. Passadas duas partidas e oito gols
marcados, embalou a própria população e iniciou uma trajetória surpreendente
que só parou na Croácia, numa quarta de final espetacular, definida na crueldade
dos pênaltis.
A empolgação de Islândia, Croácia e Irã contaminaram a torcida,
mesmo sem qualquer chance de ir muito além. México e Alemanha naquele jogo
histórico, Portugal e Espanha numa epopeia que mostrou Cristiano Ronaldo na
versão extraterrestre que ele costuma encarnar, foram os primeiros momentos
eletrizantes do torneio.
O grande balaio tecnológico foi aberto, quebrou um velho tabu em
favor da inovação e colocou definitivamente no jogo o VAR-Video Assistant
Referees, sistema auxiliar da arbitragem que permite revisar jogadas polêmicas,
mudar decisões de campo e até resultados dos jogos. Já poderia estar presente há
muito tempo, ajudando a evitar vexames que entraram no imaginário popular, como
a tal La mano de Dios de Maradona – ele
mesmo uma lenda que tomou gosto pelo ridículo.
O avançar da tabela foi eliminando os grandes astros, aqueles que
teriam na Copa seu momento supremo, mas foram condenados à solidão do fracasso.
O mesmo tipo de solidão que ilhou Cristiano Ronaldo à frente de um
Portugal pouco inspirado e incapaz de lhe dar assistência nos jogos seguintes. Ficou
impossível carregar um time inteiro nas costas.
E o mundo também viu se repetir a apatia de Lionel Messi vestido
na camisa argentina, sua incapacidade de demonstrar emoção, algo que realmente
irrita o argentino tradicional, daquele enlouquecido por futebol. Tão
apaixonado que fingiu não ver que o time não passava de um elenco de problemas
que nem mesmo o supercraque seria capaz de resolver sozinho.
Na verdade, a seleção argentina que foi a Rússia era um saco de
gatos, um amontoado de patotas de velhos jogadores que sequer deveriam ter sido
convocados. E há muitos anos, o futebol dos hermanos
paga o preço da bagunça na AFA, bem similar ao que ocorre na CBF, ambas com
aquele aspecto de antro sempre driblando suspeitas, denúncias e vexames.
Depois, renovou-se mais uma das lendas urbanas que atravessam
copas e copas: o famoso pé-frio de Mick Jagger. Desta feita, espalharam que ele
estaria na Rússia torcendo pela Argentina, cuja seleção chegou à Rússia no
mesmo avião utilizado pelos Stones em sua turnê europeia, com direito àquela
atrevida língua vermelha estampada na fuselagem. Deu no que deu! I can't get no satisfaction.
Pior para o futebol, que viu dois de seus artistas geniais
deixarem a Rússia em clima de despedida e sem nunca terem levantado a taça
maior da profissão. É do jogo, mas não deveria ser.
Antes de começar a Copa, eu tinha uma convicção: se o Brasil
jogasse como vinha desde as Eliminatórias, a taça era uma possibilidade
considerável. E a última partida de preparação, aqueles 3x0 contra a Áustria,
era quase um roteiro porque os austríacos tinham estilo de jogo similar ao da
Suíça, nosso primeiro adversário.
Mas o Brasil foi assustador contra uma Suíça sem qualquer
inspiração, revelando todos os desequilíbrios táticos e emocionais que nos
apavoram na hora H. Detalhe: chegamos a temer a Costa Rica, senhoras e
senhores. Isso não é para qualquer um! Também pudera, ficamos emaranhados em
bobagens como fragilidades emocionais de jogadores e inexperiências
generalizadas.
O torneio foi avançando e o mundo foi confrontado com as surpresas
da Coreia, a alegria emocionante do Panamá contagiando sua torcida para
festejar gols raros nas derrotas retumbantes. Japão e Polônia vaiados
fragorosamente por praticarem o antijogo em benefício dos resultados.
Inglaterra e Bélgica fizeram lá seu joguinho de comadres, pelo mesmo motivo. E
a gente fica imaginando a situação de um torcedor que gastou os tubos para
chegar à terra dos czares e assistir a um jogo do seu país, e encontrar em
campo a presepada desses dois jogos, inclusive times reservas.
E chegaram as oitavas, época de choro, ranger de dentes e passaportes
dos derrotados em jogos mata-mata sendo carimbados por ter chegado a hora de
voltar para casa. Como dizem os cronistas, vira outro campeonato onde não se
contam pontos, só vale ganhar.
Na primeira leva, a destroçada Argentina depois da correria dos
meninos da França, que também deu lá seus apagões. E Portugal, mesmo com a
super arma CR7, por não resistir ao Uruguai do principesco Edinson Cavani. Que no
jogo seguinte viu morrer seu time quando ficou refém da panturrilha e o goleiro
Fernando Muslera entregou a rapadura num frango monumental. Não seria mesmo
Luis Suárez, o velho canibal que desapareceu em campo, que teria futebol
suficiente para resolver sozinho.
Definidos os semifinalistas, a taça estava disponível para Bélgica,
Croácia, França ou Inglaterra. Mais um momento de hegemonia europeia
indiscutível. Pelo menos, quatro seleções que jogaram bom futebol na Rússia,
nenhuma delas adotando retrancas ou catimbas. Menos mal para o esporte.
Passo seguinte, a Inglaterra perdeu para a Bélgica num jogo
insosso de quem está apenas cumprindo tabela. Um jogo que revelou Harry Kane,
artilheiro da Copa e inflado a Hurricane
pela imprensa, mais assemelhado a Bruce
Kane – personagem solene e atrapalhado de Chico Anysio –, tal sua
incapacidade de fazer alguma coisa relevante nas partidas mais difíceis. E o
time de sua majestade voltou para casa sem assunto novo, falando da velha Jules
Rimet erguida em 1966. Em casa. Com um gol duvidoso.
No lado belga, alguém levantou a teoria conspiratória de que a
súbita notoriedade de Romelu Lukaku não agradou alguns companheiros mais
famosos de time, já que a bola não lhe chegou muito nos últimos jogos,
especialmente na última disputa – o homenzarrão foi substituído, não quis saber
de conversa e foi embora direto para o vestiário. Saíram todos com a melhor
colocação do país em copas, uma medalha de bronze no peito, e a federação meteu
US$ 22 milhões nos cofres como prêmio pelo inédito terceiro lugar.
Depois da notícia de que aviões explodiriam as nuvens ao redor de
Moscou, para que uma possível tempestade não molhasse o grande dia, França e
Croácia entraram em campo numa tarde calorenta e de umidade alta, para resolver
quem era o maioral da bola até a próxima Copa.
Fizeram o esperado grande jogo, com os olhos do mundo pousados
sobre Kylian Mbappé. Começou morno, chato, com domínio inicial da Croácia, e
incendiou a partir do primeiro gol francês. Ivan Perisic empatou e saiu
mostrando a coxa esquerda inteira de músculos, e eu até temi que, logo, os maluquetes
de plantão transformassem em gesto político algo que não passava do desabafo do
jogador mostrando que estava recuperado da contusão naquele local, que quase o
tirou da decisão.
No segundo tempo, a França ligou sua máquina de moer em cima de um
adversário extenuado por três prorrogações e um rosário de decisões por
pênaltis, chegou aos 4x1 pelos pés de Antoine Griezman, Paul Pogba e Kylian
Mbappé. O que fez seu goleiro Hugo Lloris entrar no clima do “já ganhou” que
conhecemos tão bem no Brasil, e resolver driblar exatamente Mario Mandzukic
dentro da pequena área. Ele, que fizera gol contra no primeiro tempo, estava
louco para zerar seu passivo e mandou a bola para as redes, num dos gols mais idiotas
já vistos num mundial. E que serviu para dar sobrevida à Croácia, que para
sorte dos franceses foi apagando pelo cansaço físico desumano acumulado antes da
final.
Ao fim dos acréscimos, apito final trilado por “sua excelência” Néstor
Pitana, o argentino que leva para sua biografia a honra de também ter dado o
apito inicial da mesma Copa. E as reclamações a respeito do primeiro gol da
França – não teria sido falta em Antoine Griezman – completamente abafadas pela
goleada dos novos campeões do mundo.
Gritarias à parte, vê-se que o VAR (árbitro de vídeo) agiu
corretamente no pênalti a favor da França e em diversas outras ocasiões do
torneio, mas ainda depende de critérios mais claros para amparar decisões cada
vez mais justas, que terminarão por elevar o nível da disputa do esporte mais
popular da Terra.
E o futebol ficará ainda mais irresistível quando a Fifa tiver o
bom senso de quebrar mais um tabu e tirar de campo essa aberração chamada
impedimento. Vai abrir e soltar o jogo, ampliar os espaços para os craques
brilharem e ressuscitar o futebol arte. Afinal o campo de jogo é o mesmo desde
sempre, centenário, enquanto a capacidade física dos jogadores multiplicou-se
ao longo do tempo. Hoje, vemos os goleiros debaixo de suas traves e os outros vinte
jogadores amontoados em um terço do gramado. Abolido o impedimento, que os
técnicos mostrem competência para criar novas táticas defensivas.
Na premiação, a bela atitude dos franceses formando um corredor
polonês para homenagear e festejar os croatas passando a caminho do pódio, que
ganharam o ouro de ver seu Luka Modric escolhido o melhor jogador da Copa.
O pódio teve um contraponto à grandeza da festa, uma cena dispensável
que dá a dimensão de Vladimir Putin: o mundo desabando em água e apenas ele,
impassível, debaixo de um guarda-chuva sustentado por um assistente. E sem demonstrar
qualquer constrangimento de ver o presidente da Fifa Gianni Infantino, o
presidente da França Emmanuel Macron e, pior, a cativante presidente da Croácia
Kolinda Grabar-Kitarovic ficando ensopados até a chegada de outros
guarda-chuvas. A diplomacia e a elegância reclamavam se molhar junto, mas
brincar na chuva não é para qualquer um!
E a França saiu para o abraço e para levantar a taça, numa vitória
incontestável, apesar do chororô dos cronistas viciados em pachequismos, que
passaram o jogo inteiro torcendo vergonhosamente contra, sendo parciais.
Definitivamente, o extraordinário time e a campanha inesquecível da Croácia não
precisavam deles.
Falou-se muito de uma nova ordem no futebol, cujos primeiros
sinais apareceram na Rússia. Que essa verdade se mostre logo, inclusive nas
telinhas da nossa televisão, pois o Qatar 2022 é logo ali.
1) Boa crônica esportiva. sugestão ao Heraldo, escreva mais sobre futebol.
ResponderExcluir2)Bela foto ilustrativa. A chuva de verão moscovita veio coroar o evento.
3)A meu ver, belíssima Copa.
4)A nota dissonante foram alguns brasileiros que postaram nas redes sociais palavrões em português para mulheres e alguns meninos. Um absurdo !
Antonio,
ExcluirSó me animo a escrever sobre futebol em tempos de Copa. Sim, esta foi muito boa mesmo. Infelizmente, nós brasileiros costumamos espalhar notas dissonantes pelo exterior. O tal "espírito alegre" que inventaram para tentar explicar tudo.
Mestre Heraldo,
ResponderExcluirDesde 1982 quando o Brasil tinha tudo para ganhar o caneco e perdeu para a Itália de Paolo Rossi. Mai più! Passei a assistir a Copa não só para ser campeão mas para ver bom futebol.E nos 64 jogos dessa, mesmo lamentando a supremacia europeia a partir da quartas de final, tivemos uma overdose de gols sensacionais, viradas inacreditáveis, defesas estupendas, grandes vitórias. Você narrou-a brilhantemente, como sempre, mas também vimos lances estupendos cometidos por seus perdedores. O que dizer dos gols de Coutinho contra a Suíça, de Cavani contra Portugal, de Mário Fernandes empatando para a Rússia contra a Croácia e do Nacho contra Portugal? E aquela maravilha cometida por Toni Kroos contra Suécia ? Como esquecer do golaço do cigano português Ricardo Quaresma, de trivela, encobrindo o goleiro do Irã e do terceiro gol de Ronaldo contra a Espanha? Beleza pura!
Temos uma amiga que grita "goooool" e pula e fica feliz independentemente de quem marca e/ou para quem ela esteja torcendo. Certa está ela mas, concordando com você,"brincar na chuva não é para qualquer um!"(rsrs) Tem que ser panamenho! Um dos momentos mais hilários da Copa foi o modo como os torcedores do Panamá comemoraram a goleada de 6 a 1 diante da Inglaterra. Os caras enlouqueceram de alegria quando Felipe Baloy marcou o solitário e redentor gol porque foi o primeiro do país em uma Copa do Mundo.
E porque há poucas coisas mais emocionantes do que ver uma danada de uma bola voando antes de afundar na rede! É por isso que, viciados, queremos sempre mais.
Abração
Caríssimo,
ExcluirEsta Copa teve espetáculo e isso é ótimo. Também gosto muito de ver não apenas com o desejo de ganhar. O que me incomoda é ver a postura do nosso time, sempre parece que os jogadores dão menos importância ao encontro mundial da bola.
Sua amiga está certa, é preciso festejar todos os gols, como fizeram lindamente os panamenhos, sentindo honra e glória de estar ali - dane-se a goleada que estavam sofrendo. Gostaria que os nossos canarinhos sentissem essa honra e glória, mas não desculpemos os 7x1 inapagáveis! Abração.
Olá Heraldo,
ResponderExcluirGostei muito do muito bem escrito. E assino em baixo dos comentários feitos.
Só acrescento que a torcida foi um show à parte. Todas elas. Alegria saudável, genuína, mesmo perdendo, só pelo espetáculo e por estarem participando.
Alegria igual à da bela presidente da Croácia, beijando e abraçando debaixo da chuva. E o savoir faire do Macron.
Seu texto me fez ver os jogos de novo.
Obrigada pela surpresa. Até mais.
Ana,
ExcluirObrigado pelo comentário. Sim, a torcida foi um show à parte, mesmo a FIFA tendo proibido a divulgação de imagens de pessoas bonitas!!! Diante de jogada tão duvidosa, temos de chamar o VAR!
Imagino que o estóico Macron deva ter tido alguma dificuldade para expressar savoir faire em casa. Afinal, a presidentona da Croácia estava em campo sem medo de ser feliz, diante de uma Brigitte Macron desanimada com o andamento do jogo. Peleja desigual.
Ótimo que tenha revisto os jogos. O futebol é mesmo cheio de surpresas. Até mais.