Georges Braque - Le viaduc à L' Estaque (1908) |
Moacir Pimentel
O cubismo começou tanto em 1907, com aquela senhora
agachada na tela Les Demoiselles d'Avignon de Pablo Picasso, quanto com uma
série de paisagens feitas em 1908 pelo pintor Georges Braque de um pequeno
lugar chamado L'Estaque, no sul da França. As casas, árvores, estradas e outras formas arquitetônicas locais foram representadas pelo artista
como cubos e/ou pirâmides sombreadas que evoluíram nos
meses seguintes para um estilo de pintura que não tinha nome, nem escola, nem
rótulo. Uma estranheza sem precedentes que deixou seus colegas perplexos e seus
críticos atordoados, inclusive o prezado Matisse. E então um dos “sabichões” parisienses definiu as obras com
a palavra “cubistas”, como se
cuspisse um insulto. Só que viralizou!
Com certeza muito da
simplificação dos objetos naturais em formas puras, feita anteriormente por
Paul Cézanne, mora nessas telas de L'Estaque, nas quais Braque criou variações
da antiga noção de paisagem do professor. A bem da verdade nas paisagens
braqueanas não se verifica a antiga tensão entre realidade e ilusão, reprodução
e abstração, fato e invenção das obras de Cézanne, que aninhava cada elemento nos seus contextos paisagísticos com
exatidão mas criava uma sensação geral cada vez mais evanescente do lugar ao
qual pertenciam.
Paul Cézanne - Mont Sainte-Victoire vu de les Lauves (1906) |
Braque não imitou Cézanne, que pintava como se martelasse, nem copiou sua visão inquieta, nem plagiou esse conjunto azul/verde brilhante
de vislumbres e hesitações e reconsiderações e de formas se estilhaçando
imaginado pelo outro pintor para representar a “essência” dessa montanha, de
nome Santa Vitória. Nas paisagens que Braque fez de L'Estaque, em vez, o espaço
foi reconcebido e reconstruído geometricamente, sim, mas em vez de recuar
ordenadamente para o pano de fundo, como prescrito pela perspectiva
tradicional, as formas avançaram na direção a quem as olhava desconcertado. Tais
paisagens são quase desmoronamentos, como se estivesse rolando alguma atividade
vulcânica subterrânea sob elas. As casas e árvores de Braque afirmavam-se de
maneira silenciosa, reivindicando direitos inalienáveis à atenção, à luz, ao
espaço e, de quebra, uma certa dignidade, ora bolas e cubos!
Georges Braque - Paysage à L'Estaque (1908) |
No começo ainda havia vestígios do céu. No verão
seguinte, o céu desapareceu completamente, em favor de um fundo onde as
protuberâncias pictóricas surgiam onipresentes (rsrs) O espaço tradicional da
paisagem encontrou o mesmo destino da perspectiva tradicional e o céu não foi
visto novamente por décadas até que Braque pintou um campo cultivado em
homenagem aos do van Gogh (rsrs)
O grande Henri Matisse creditava a Braque “a primeira imagem do cubismo”. Porém
deixou escapar um detalhe que não é desimportante: ele não vira tal imagem no
ateliê do próprio Braque, mas “no estúdio
de Picasso que a discutia com seus amigos”. O toureiro havia pedido a obra
emprestada para estudar e aprender. Pois é. Matisse e Picasso, que nada tinham
de tolos, sabiam muito bem que havia um terceiro franco atirador na colina,
mais lento que eles, talvez, mas de munição muuuuito perigosa (rsrs)
Georges Braque - La Roche Guyon, le château (1909) |
Acontece que o bom Georges ficara realmente hipnotizado
pelas Senhoritas e, já influenciado pela visão de Cézanne, começara a tentar
explorar o potencial das estruturas dentro da pintura, intensificara suas próprias tentativas de simplificação da forma e
passara a cometer obras – paisagens, naturezas mortas, e marinhas e portos da
Normandia - que, eventualmente, o fizeram conhecido como um dos pais do cubismo.
Georges Braque - Plate avec fruite (1908) / Port en Normandie (1909) |
E então rolou o inevitável: a audácia do seu trabalho e a sua corajosa
experimentação chamaram a atenção do toureiro e conduziram Braque a uma
estreita parceria com Picasso. Sucede que o espanhol e o francês - de 1908 a
1914 – passaram a pintar em intensa colaboração diária, legislando o futuro,
vandalizando o passado, subvertendo os modos ocidentais de ver.
Ele foi o único pintor que conseguiu manter uma amizade verdadeira com o
gênio voraz que se relacionava melhor com os poetas, como era o caso de
Apollinaire e Max Jacobs (rsrs)
Picasso verdadeiramente respeitava Braque não só como pintor mas como
homem. Muitas telas de Braque, dessa época, conversam sobre camaradagem,
pescarias, bares e cafés, sobre o ato de beber, cheias de alegria em vez de
demônios alcoólicos torturados.
Georges Braque - Boutelle et poissons (1910) / Verre sur la table (1910) |
O francês, que chegara em Montmartre em 1902, foi um estupendo pintor
modernista. O espanhol, que se estabelecera definitivamente na colina em 1904,
foi um gênio que acabou se sentindo confinado por qualquer meio artístico.
Braque trabalhava devagar, com um rigor ético que rivaliza com o de Cézanne,
criando uma arte liricamente clássica posicionada entre transparência e
opacidade, privacidade e exposição.
Gorges Braque - La Mandore (1910) |
Para Picasso, em vez, tudo era matéria-prima para ser mastigada e
cuspida. Embora todos os trabalhos de Braque nos pareçam totalmente resolvidos,
há obras de Picasso tão repletas de curiosidade e idéias que os critérios de
equilíbrio e acabamento tornam-se inteiramente irrelevantes.
Foi a partir dos estudos que Braque fez das Demoiselles d'Avignon que
esse caso sério deles começou.O francês demonstrou, além do imenso interesse,
uma compreensão plena do trabalho do espanhol e, como artistas, os dois se
tornaram estranhamente complementares.
Braque e Picasso iniciaram ali, no Bateau Lavoir, um diálogo artístico
tão amplo que merece alguns posts para chamar de seus, no qual o próximo
trabalho de um era uma resposta à última experimentação do outro, como nos fica
evidente, abaixo, nesse Grande Nu musculoso que hoje mora no Centro Pompidou e
que foi pintado por Braque logo depois dele ter estudado atentamente as
caluniadas Senhoritas, então escondidas por Picasso no Bateau Lavoir.
Georges Braque - Le Grand Nu (1908) |
Esse Nu é pesado, desajeitado, tanto masculino quanto feminino, mas
mostra a aventura e a ambição sempre escondidas dentro das discrição e
elegância de Braque.
Porém... se havia nessa conversa um território onde Picasso assumia o
comando e se distinguia do amigo, era na “cubismonização” da figura humana e,
especialmente, nos nus femininos que sugerem uma fome, uma sexualidade
desenfreada que, decididamente, o outro não tinha.
Afinal Picasso dizia que fazer amor e/ou arte era a mesmíssima coisa e,
portanto o sexo permeou o trabalho do espanhol até na impotência dos seus
noventa anos. Picasso não pintava uma mulher despida, pintava a nudez e, quando
inventava um beijo, era faminto e de língua (rsrs)
“ A arte não é casta e sim perigosa”
Nessas paragens Braque foi o anti-Picasso, navegando em águas calmas e aparentemente
vazias da sexualidade onipresente do amigo. Picasso era ardente, Braque
independente. Porém havia mais do que uma libido de alta voltagem e potência em
Picasso. Ele era movido por um insaciável apetite pelo novo, por começos, por
mudanças.
Típicas do seu período africano e/ou negro, percebo na tela à esquerda
da montagem abaixo, nessas três mulheres adormecidas, algo das estátuas tardias
e inacabadas de Michelangelo - metade pedra metade gente - a sensação do barro
primordial , a impressão de que um mundo está prestes a recomeçar.
Pablo Picasso - Trois Femmes (1908) / Dryade (1908) |
Do mesmo modo que as franqueza e energia do nu feminino à direita – a
tela chama-se Dríade, a ninfa que na mitologia grega é associada ao carvalho –
atropela, bate de frente, tão irreprimível quanto uma avalanche, prestes a sair
da pintura que parece incapaz de contê-la. Mas note que todas essas figuras
foram claramente inspiradas pelo Nu e influenciadas pelas paisagens cezannescas
de Braque, graças a quem Picasso mudou das formas angulares e da cor metálica
de suas pinturas para um tom mais rítmico e primordial.
Eles faziam o que os garotos fazem desde as cavernas: competiam! Se
Picasso criava mulheres ancestrais logo Braque fazia uma Cabeça de Mulher
igualmente primitiva para chamar de sua.
Georges Braque - Tête de femme (1909) |
E, em seguida, Picasso inventava pelo menos uma dúzia de cabeças
femininas bizarras e pré-cristãs (rsrs) Mas essa fecunda amizade nascida em
Montmartre não era uma unanimidade, como veremos na próxima conversa...
Tive muito prazer de conhecer Georges Braque. Tenho vergonha de lhe dizer que não sabia de nada sobre ele, Moacir. Mas não tem nenhum quadro dele aqui que eu não goste. Todos são bonitos. Simpatizei até com as mulheres de Picasso, exceto a ninfa Driade, que é ‘franca’ demais pro meu gosto kkk Obrigada!
ResponderExcluirMônica,
ExcluirQue bom que você apreciou as cubices em pauta. E quem está com vergonha de escrever tanto sobre um mesmo tema, sou eu. E peço-lhe desculpas embora já estejamos no começo do fim da “franquia” sobre Montmartre (rsrs) Fazer o quê? Esse diálogo cubista entre Pablo Picasso e Georges Braque é um do momentos mais interessantes da História da Arte. O pintor espanhol que pintava sem rumo até se deparar com um parceiro francês cansado de explosões de cor, juntos e separados, trilharam longos e variados caminhos e criaram um vocabulário visual que ressoa até os dias de hoje. Sem esse "encontro na colina" não teria rolado o cubismo. As artes de Braque e Picasso foram definitivamente complementares. Havia no primeiro uma qualidade quase "feminina", uma delicadeza/elegância, um cuidado com os detalhes, uma inata noção de harmonia e equilíbrio que a alma agressiva e irrequieta e super fértil do último carecia. Porém é preciso conversar sobre todas as fases do cubismo com calma porque o movimento ao revolucionar a forma dos seus temas, obscureceu as distinções convencionais entre beleza e feiura e mudou o significado de "boniteza" para sempre. É prudente só se escolher “o que levar para casa”, depois de se ter visto tudo (rsrs) “Obrigado!” e abração
Moacir,
ResponderExcluirVocê está mostrando o cubismo em detalhes e desde o começo e pra mim este é o único jeito de aprender. Eu já conhecia alguns trabalhos de Braque sem imaginar a importância dele no cubismo. Mas a linda montanha de Cézanne hoje ofuscou todas as outras paisagens. A sua admiração pelo artista salta aos olhos embora tenha falado pouco sobre a arte dele. É clara a influência dele nas telas de Braque. Estou ansiosa para ver o conjunto da obra dos dois amigos.
Um abraço para você
Flávia,
ExcluirEmbora ele seja um dos movimentos artísticos mais conhecidos do mundo, o cubismo ainda é misterioso e, portanto, nem o seu início nem o seu fim são coisas concretas. É claro que nessa festa Braque e Picasso foram pioneiros mas, quando olhamos para além desse fato, nos deparamos com experiências visuais cubistas por todos os lados, com nomes diversos, que confundem e levam a mais perguntas, nunca a uma resposta definida. Às vezes penso que saber realmente o que é o cubismo arruinaria o charme e os desafios que ele ainda oferece. Mesmo conhecer, de antemão, o título de uma hermética pintura cubista, é um baita de um spoiler que obscurece o prazer de observar a tela. Pois o nome da obra desfaz de pronto a cortina sobre a nossa visão, não permitindo que sejamos tentados pela oportunidade de desvendar as várias formas e ângulos da pintura à nossa frente. É como ler o último capítulo de um livro antes do prefácio (rsrs)
É verdade que tenho citado Cézanne – para mim o pai do modernisno! - com bastante lateralidade por dois motivos: primeiro porque pretendo escrever sobre ele beeeeem mais adiante e segundo porque o pintor nasceu e viveu grande parte de sua vida na Provença, trabalhando na obscuridade, longe de Montmarte, que é o tema e o cenário da atual“franquia” (rsrs) Embora ele tivesse uma reputação lendária entre os da vanguarda parisiense - Modigliani, por exemplo, o idolatrava como retratista - foi a obra tardia e evanescente de Cézanne reunida em uma exposição retrospectiva da sua arte, realizada em Paris em 1907, que mexeu com as cabeças de Picasso e Braque. Entre as mais de cinquenta telas expostas estavam várias das Grandes Banhistas cujas formas sólidas e estruturas arquitetônicas inspiraram o futuro cubismo de Picasso e Braque.
https://en.wikipedia.org/wiki/The_Bathers_(C%C3%A9zanne)#/media/File:Paul_C%C3%A9zanne_048.jpg
Como perguntam os lusitanos: “Percebes?” E vamos em frente para ver tudo o que esses dois moleques aprontaram.
Outro abraço para você
Olá Moacir,
ResponderExcluirDe novo! O texto acabou antes ao me deparar com " Como veremos na próxima conversa..." Palavrinhas odientas! Odientas pero no mucho porque, se acabaram, pelo menos teremos mais!
Esse fantástico diálogo entre os cubistas, como você nos mostra, continua na modernidade atual (estou descobrindo muitas "modernidades"). Seja na reconstrução desses destroços até ao naturalismo fidelíssimo dos enormes retratos feitos à lápis que vejo nas Bienais SP , toda ação provoca uma reação,ou no rastro mesmo do destruído chegando às diabólicas instalações. Planejadamente fragmentadas mesmo quando investem na repetição. Sempre dialogando com o surpreendente procurando o novo. Como os cubistas.
Até sempre mais.
Caríssima Donana,
ExcluirPara começo de conversa permita que eu lhe agradeça e lhe diga o quão mais tranquilo fico ao saber que o texto "de novo acabou antes"! Ando preocupado com a quilomeeeetragem dessa conversa (rsrs) Em segundo lugar “aconteceu de novo”: a senhora simplesmente pula etapas! Eu deixei para falar "das diabólicas instalações" depois das colagens e texturas e relevos e das esculturas de papelão do cubismo mais tardio (rsrs) Finalmente concordo que “dialogar com o surpreendente e procurar o novo" é a missão do artista. A dos cubistas foi quebrar os volumes sólidos transformar o espaço físico em um sistema de andaimes, obscurecer a relação de uma figura e o espaço que a cercava. Só que essa explosão da perspectiva linear, essa nova visão do mundo talvez seja uma expressão da incerteza da própria modernidade. Porque eu também percebo a tal da fragmentação refletida nas narrativas não lineares de escritores modernistas como James Joyce e Virginia Woolf, nos poemas de T. S. Eliot, nas esculturas de Rodin, na qualidade fragmentada da música atonal de Igor Stravinsky. Hoje ela nos encara, todo dia, nas formas espelhadas da arquitetura moderna em tudo quanto é de horizonte. Sim, Dona Arte continua "planejadamente fragmentada" e portanto a resistência e a revolução cubista não terminaram.Torço para que a justaposição de imagens e ideias, o questionamento das definições tradicionais de arte, a apropriação de materiais inéditos, as transparências, a cola e a tesoura, o lixo, as formas e meios alternativos, continuem a ser um caminho em novos contextos estéticos. E torço mais ainda para que a senhora nos tecle sobre cada uma das " muitas modernidades" que tem descoberto.
Fiquei curioso (rsrs)
“Até sempre mais”
Pimentel,
ResponderExcluirAlém de explicar a arte e contar a vida dos pintores, os trabalhos que você seleciona casam perfeitamente com o texto. As imagens confirmam tudo e tornam a leitura agradabilíssima para leigos como eu. Entendi que o cubismo foi filho de uma das Demoiselles d'Avignon. Mas qual dos dois homens foi mais pai? Qual deles criou uma pintura totalmente cubista primeiro? Picasso quando concebeu ou Braque que entendeu tão bem o conceito das Senhoritas e o desenvolveu nestas obras?
Sampaio,
ExcluirEssa pergunta permanece sem resposta e, sinceramente, talvez ela seja menos importante do que encontrar as influências intelectuais do cubismo. Para mim, na construção do movimento, Braque e Picasso tiveram o mesmo peso. Todas as coisas que eles pintaram foram desafios: à ideia de espaço, à nossa localização nele, à “realidade” dos objetos, seus ângulos e detalhes e como eles se relacionam com nossos sentidos e noções visuais. Eles foram aventureiros, verdadeiros pioneiros. Em 1910 o mundo mal escapara da era vitoriana, e ali em Montmartre esses dois trabalhavam, comparando, documentando, pensando sobre o futuro da pintura e empurrando para a frente todas as nossas noções pré-concebidas sobre a arte. Que tal continuar lendo e olhando para formar a melhor das opiniões: a sua? Obrigado e abração
Pimentel,
ResponderExcluirTu sabes que eu não tenho capacidade para comentar mais um artigo de tua autoria – e brilhante, como sempre – em termos técnicos.
Nada parecido – aliás, muito longe, a perder de vista – com o que disse a nossa amiga Ana a respeito do teu texto ( o termo, muito longe, me traz a lembrança um comediante que temos no RS, chamado Guri de Uruguaiana. Usa um bigode farto, vestimenta gaúcha, e se apresenta excepcionalmente divertido. Certa feita, sendo entrevistado pela Rádio Gaúcha, ele comentava que a sua esposa era parecida com a apresentadora do jornal local na TV, a belíssima Carla Fachin. Um dos entrevistadores mostrou-se curioso, comentando então que ela deveria ser tão bonita quanto à sua colega, obtendo como resposta que, de fato, a sua mulher era mesmo parecida com a apresentadora, porém de longe, muito de longe)!
Mas, vejo-me obrigado a realçar tanto a importância do que escreves quanto à densidade deste trabalho magnífico que nos apresentas.
E te felicito, portanto, pela obra magnífica, e que merece o nosso reconhecimento pela sua qualidade, teus conhecimentos a respeito e as informações que nos prestas sobre a arte da pintura, verdadeiramente importante, mesmo eu sendo um ilustre leigo neste particular (evidente que o ilustre é por minha conta)!
E te digo que o meu acervo dos artigos teus que copio e os arquivo em pasta especial, teve duas pessoas que desejam cópias do que tenho, por terem constatado que estavam diante de um trabalho maiúsculo, de enorme serventia em algumas faculdades existentes ( da mesma forma, resgato um episódio famoso, que aconteceu em uma delegacia de Porto Alegre, na década de cinquenta. Como não havia máquina de escrever em muitas delas, os depoimentos eram registrados à mão, e que a caligrafia do policial fosse depois legível, pelo menos. Outro detalhe é que não podia haver erro ou palavras apagadas ou rabiscadas. Uma vez acontecendo essa situação, usava-se o “digo” para corrigir o lapso. Pois bem, a vítima se chamava Diogo, e durante a sua declaração, o inspetor cometeu o erro de confundir o nome do depoente com a palavra “digo” e errou de novo quando quis consertar. Criativo, saiu-se com esta: Quando digo digo não digo digo, digo Diogo, e quando digo Diogo não digo Diogo, digo digo)!
Pois bem:
Quando digo arte, digo Pimentel, e quando digo Pimentel, digo arte!
Abração.
Saúde e paz.
Chicão ,
ExcluirObrigado pelo simpaticíssimo comentário. Dizia o velho Sêneca que inexistem histórias ruins mas abundam as" mal contadas". Você, embora em contenção de pretinhas pelo menos nessas paragens, é um exímio contador de histórias! Conte mais! Sabe? Um dos grandes paradoxos da humanidade é por que tanto tempo e esforço foram e são gastos na criação de coisas sem um óbvio valor de sobrevivência, nesse comportamento estranho também conhecido como arte (rsrs) Tentar esclarecer essa questão é complicado, porque primeiro precisamos definir precisamente o que é arte e, muito mais difícil, o que não é. Afinal a arte, ou as artes, já eram praticadas pelos primeiros humanos durante o período Paleolítico Superior não como o são no mundo moderno - como meio de expressar o individualismo - mas por pequenos grupos de caçadores-coletores como meio de articular normas sociais e civilização. Por que aqueles indivíduos se envolviam com artes que lhe exigiam esforços significativos, um gasto de energia que poderia ser melhor direcionado para atividades mais lucrativas e sensatas, como a busca de alimentos e/ou de outros recursos vitais? Porque os caras pintavam bichos nas paredes? Por que meus netos desenham meia dúzia de linhas em um papel e depois dizem: “Isso é uma casa?” Porque aprecio tanto a pintura? Não deixa de ser estranho que para o bicho homem, desde sempre , representar ilusões sobre superfícies planas seja a coisa mais normal do mundo! Isso sugere que o processo de produção e não o produto final, é mais significativo. E que a arte em vez de ser uma coisa que ninguém sabe explicar talvez seja um caminho. O nosso.
Saúde e paz e um grande abraço
A sua iniciativa de comparar as pinturas cubistas de Picasso com as de Braque é excelente. Nunca tive a oportunidade de ver os trabalhos dos dois assim reunidos e de constatar o quanto se influenciaram. Mas fiquei surpreso ao ler que Matisse era da torcida de Braque no debate da paternidade do cubismo. Pensava que os dois tivessem brigado.
ResponderExcluirMárcio,
ExcluirNunca ouvi falar disso. Deve ser intriga da “torcida” abstracionista (rsrs) Matisse não era homem de briga nem Braque era chegado à rivalidades. Quando Picasso e Braque chegaram a Montmartre, Matisse já era o maioral entre os pintores da colina, conhecido e estimado por todos, começando a fazer sucesso graças aos irmãos colecionadores Leo, Gertrude e Michael Stein que lhe compravam as telas "em seguidinho". Antes de conhecer Picasso, Braque havia orbitado em torno do “rei das feras", tentando ser um fauvista mesmo que calmamente soubesse que nunca seria selvagem o suficiente (rsrs) Picasso e Braque se aproximaram porque compartilhavam uma insatisfação com a pintura tradicional que Matisse já não experimentava, simplesmente porque estava às voltas com a sua própria revolução das cores. Talvez a tal “briga” seja uma versão torta da lendária rivalidade que, dizem, Picasso nutria por Matisse e/ou uma interpretação errônea do fato do último ter participado em grande estilo dos Salão de Outono de 1908, enquanto que algumas dessas paisagens que Braque fez do L’Estaque nele foram rejeitadas por serem estranhas "coleções de pequenos cubos”(rsrs) A bem da verdade Matisse foi um dos mais ferrenhos defensores do talento de Braque considerando-o, inclusive e entre aspas como "o pai do cubismo". Obrigado por participar.
Prezado Autor Sr. Moacir Pimentel,
ResponderExcluirA fascinante invenção do Cubismo, levada a efeito pelos Artistas inquilinos de Bateau Lavoir, do famoso Bairro de Montmartre Paris,especialmente Picasso e Braque, se torna compreensível devido a didática do Sr. Moacir Pimentel.
Vemos que a inspiração foi o "Tratado Elementar de Geometria da Quarta Dimensão de Jouffret", e seus hiper-poliédros.
Parabéns a esse Viajante do Mundo, que começou na juventude com mochila, e que tem tanto amor e conhecimento das Artes, especialmente a Pintura.
Abração.
Prezado Bortolotto,
ExcluirNada é incompreensível para um atento leitor como você. Quanto ao cubismo eu desconfio que El Greco lá atrás , na virada dos séculos XIV e XV, foi um cubista "em formação" (rsrs) Cézanne também desempenhou um papel definitivo para que o movimento decolasse mas morreu em 1906 sem ter o prazer de ver uma pintura cubista dando continuidade às suas naturezas mortas e paisagens que não eram sobre maças nem sobre montanhas mas sobre o espaço e os ângulos e as estruturas no reino 2D. O espanhol saiu das suas proto cubistas Senhoritas, ainda sob o fascínio das artes africana e ibérica, para um período dito "negro" povoado por mulheres primitivas e angulosas. Braque não fez escalas antes de geometrizar tudo. Sim ambos foram influenciados pelas geometrias não euclidianas, pelos poliedros de Jouffret , pela quarta dimensão além de trabalharem com a forma , é claro, porque Matisse escolhera explodir a cor. Nisso tudo podemos localizar as raízes cubistas. Melhor ainda é poder continuar a ver os sinais cubistas em nossos tempos e entender que a arte deve resistir e apontar caminhos diversificados, reflexões mais profundas a fim de garantir um lugar de experimentação e liberdade.
Muito obrigado e abração
1) "Observa uns bambus durante dez anos, torna-te bambu a ti mesmo, depois esquece tudo, e, então, pinta" (O Zen na Arte Cavalheiresca do Tiro ao Alvo", Eugen Herrigel).
ResponderExcluir2)Pimentel, achei que o trecho acima tem um pouco de vc que vem pintando artigos muito bonitos sobre Arte.
3)Vc nos faz mergulhar, em profundidade, nas Artes e todos crescemos com isso.
4) Parabéns e obrigado sempre.
Antonioji,
ExcluirPelo título do livro do Eugen Herrigel suponho que a tenha a ver com o “bushido”, o caminho do guerreiro, o código de conduta dos samurais do período feudal japonês, sobre o qual li antes de me aventurar por paragens nipônicas na frustada tentativa de compreender a cultura local. Ainda baseado no nome da obra deduzo que tanto os budistas quanto os samurais acreditavam no “caminho do meio” e por ele tentavam seguir alguns princípios e adquirir e aperfeiçoar qualidades como o senso de honra e de dever, a dignidade pessoal, a honestidade, a coragem, o conhecimento, o autocontrole, a compaixão, a justiça e, last but not least, a gentileza, a maior das virtudes, aquela que se preocupa com os sentimentos alheios e deveria temperar todas as demais.
Quanto mais envelheço mais entendo que “não há caminho, se faz caminho ao andar e ao voltar a vista atrás se vê a senda que nunca se há de voltar a pisar”. Então penso que Picasso ainda não chegara nesse estágio avançado de “tornar-se o bambu” mas estava em um outro trecho da estrada muito bem descrito por Mestre Ariano:
“ Olhar e desejar são dois momentos do mesmo ato e os pintores são, talvez, entre todos os homens, os que mais treinam a vista, tão apurada e sequiosa, quanto a de uma ave de rapina ou de um animal de presa. Os pintores tudo olham e tudo vêm, por isso tudo desejam. É daí que se origina sua sede, sua incansável ânsia de posse” (rsrs)
Fazer o quê? Vamos em frente passo a passo, verso a verso, flecha a flecha, tela a tela, mantra a mantra, post a post...
“Gratidão” e namastê!
Moacir, e Mestre Antonio, pedindo desculpas por me intrometer nos seus belos comentários, o livrinho do Eugen Herrigel (cujo título em português, no meu exemplar escondido em alguma das camadas das minhas estantes é um pouquinho diferente, "A arte cavalheiresca do arqueiro Zen") é um que eu recomendaria a qualquer um, seja ou não arqueiro, e que fala de uma imersão tão profunda e tão completa que quando acontece o arqueiro se esquece de si mesmo e, nas palavras do autor, " não é o arqueiro quem dispara a flecha", mas é como se uma força superior o fizesse por ele. No meu tempo de atirador dizíamos que "quando tudo está certo a arma dispara sozinha".
ExcluirNum livro do James Clavell que certamente o Moacir já leu, "Xógum", há uma referência a isso na passagem em que o marido samurai da mulher por quem o protagonista ocidental se apaixonou dispara três flechas em sucessão através da parede de papel da sala onde eles se encontravam, e crava as três na mesma coluna do portão, lá bem longe no final do jardim, que ele não podia ver.
O Mestre Antonio, bem melhor do que eu sabe nos contar dessa imersão, não só do arqueiro, mas em tudo na vida (torna-te um bambu ti mesmo)...
Olá,
ResponderExcluirMoacir deculpe estar invadindo a sua área mas preciso falar com o Antônio que o comentário dele sobre seu post está um primor. Delicadezas de budista e bambu.E virar bambu antes de desenhá-lo é a mais perfeita verdade.
Abraço aos dois.
Caríssima Donana,
ExcluirNa sua casa não posso lhe dizer "be my guest" mas posso pedir-lhe, por favor, para comentar sempre e mais! Não duvido que a senhora antes de pintar uma flor se torne capaz do seu perfume e sim, bem sei que o Antonioji e a senhora são ambos talentosos praticantes da maior e mais difícil das virtudes - a gentileza – sem a qual todas as demais perdem a graça. Diante da minha já manifesta incapacidade de “ ser bambu” nosso budsita predileto já consolou-me teclando que, sem o saber, eu “meditava” ao focar nos detalhes de uma pintura e depois traduzí-la(rsrs) “Gratidão”! Os zens japoneses dizem que quando rimos “somos um com os deuses” e que portanto, permanecer perto da galera divina, pelo maior tempo possível, é o “nosso dever, neh?” Então é o seguinte: “Enquanto tiver bambu, vai flecha".... e tela (rsrs)
Outro abraço para a senhora
Wilson,
ResponderExcluirSe concordamos que “cada ato de comunicação é um ato de tradução” e que "traduzimos" de acordo as nossas paisagens psicológicas e as experiências de vida que tivemos, então imagine o quanto são complicadas as conversas entre o Ocidente e o Oriente! Lembro sim daquela tensa situação, na casa do Blackthorne, durante a qual o general japonês Buntaro reagiu ao ouvir que "cem homens bem posicionados com mosquetes poderiam derrotar quinhentos dos seus samurais armados com arco e flecha". Ele disparou de onde estava sentado e através da fina parede de papel, e cravou todas aquelas flechas no portão do jardim para demonstrar que um arqueiro podia disparar muito mais rapidamente do que um atirador. E por aí se vai na leitura do livro “Shogun” – um paperback quarentão (rsrs) - que oferece uma perspectiva da cultura japonesa através das aventuras do seu protagonista estrangeiro, comparando a vida que ele tinha na Inglaterra do século XVII com os costumes japoneses que é forçado a adotar: peixe cru, saquê, banho quente, disciplina, boas maneiras, novidades de “travesseiro” e conceitos estranhos sobre honra e dever e sacrifício, sobre a guerra, sobre o “inimigo perfeito” cuja morte é chorada com sincero pesar (rsrs) Clavell, um ficcionista competente, desafia seus leitores a confrontar suas próprias premissas culturais com o comportamento japonês - ou com a versão que o autor lhes apresenta dele - no espelho das reações de Blackthorne enquanto o cara aprende a conviver com os valores e atitudes nativas. É divertido ver como a opinião do "Anjin" sobre o Japão, vai de um extremo ao outro, passando da mais completa rejeição inicial à quase total aceitação final. Ele atravessa o livro inteiro ouvindo a Mariko dizendo-lhe para “ser japonês”. E a pergunta é: nós ocidentais podemos ser orientais? Somos mesmo capazes de entender conceitos como "morrer quando é certo e lutar quando é certo”? Ou a noção labiríntica de se ganhar e/ou perder "face" sem praticá-la ou a forma de suicídio dos samurais, o seppuku, sem termos sido educados e treinados desde crianças quanto ao significado espiritual do ato? Podemos apreciar de verdade a filosofia do cha-no-yu, a humildade e o cuidado com os detalhes ensinados pela cerimônia do chá? Conversar com as pedras e os bambus?
O meu argumento é que o Oriente e o Ocidente pensam de modo diferente. A explicação óbvia para isso seria que os diversos pensamentos refletem as filosofias predominantes em cada lado do mundo ao longo do tempo: a filosofia ocidental grifou o individualismo, a liberdade e a independência, enquanto que as tradições orientais, focaram holisticamente nos conceitos de coletividade e unidade. Confúcio, por exemplo, enfatizou os deveres entre “imperador e súdito, pai e filho, marido e mulher, irmão mais velho e irmão mais novo, amigo e amigo”. Resumindo: nós usamos o zoom e os caras preferem as fotos panorâmicas. Beleza!
Só que essas visões de mundo díspares foram internalizadas, inseridas na literatura, na educação, nas instituições , na arte e, ao longo de milênios, permearam as psiques e influenciaram os processos psicológicos, afetando não apenas os costumes, mas a própria forma das pessoas experimentarem a vida. Compreender as diferenças culturais das mentes é cada vez mais importante à medida que o mundo se globaliza mas acredito que apenas quando se muda de lado radicalmente, quando se vive uma experiência de "profunda imersão" do lado de lá, os hábitos de pensamento e percepção podem começar a mudar para que possamos "tornarmos bambus a nós mesmos". Como é o caso espiritual do Antonioji ao professar uma religião oriental ou do personagem do Blackthorne que teve não apenas que viver mas sobreviver no Japão medieval. Fazer o quê?
Obrigado pelo belo comentário.
Abração