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Juan Gris - Portrait de Pablo Picasso (1912) |
Moacir Pimentel
No retrato que abre o post o pintor Juan Gris pintou seu compatriota e vizinho, Pablo Picasso, bem vestido, de paleta
pronta para a guerra. O toureiro parece maior do que a vida, de frente e de
perfil, ocupando a maior parte do espaço com os tons de azul, cinza e marrom
dos prismas e planos e formas que, ao mesmo tempo, fraturam a sua imagem e a colocam
em movimento, só que inteiramente de acordo com a missão cubista, na
divergência com a representação e no esforço para capturar o dinamismo da vida
moderna.
Uma das coisas que na Montmartre
da primeira década do século XX turbinou o desenvolvimento dessa nova e
estranha linguagem cubista foi a seguinte questão: Por que fazer pinturas? Para que continuar pintando retratos quando
a fotografia estava se desenvolvendo furiosamente e, portanto, já ficara claro
que seu domínio seria a captura da realidade? Os artistas passaram a se
questionar como é que Dona Arte continuaria viva e relevante em um mundo onde
as imagens visuais estavam se tornando mais acessíveis e mais fáceis de
replicar?
A resposta foi simples: as
ferramentas da arte das tintas - o plano, a linha, a cor e a luz - não tinham necessariamente
que ser colocados a serviço da natureza. O mundo exterior passou a dar origem à
expressão da identidade do criador de arte. Essa rejeição da imitação da vida e
do mundo objetivos abriu oportunidades incríveis para os artistas. É claro que essa virada foi um processo lento que ocorreu de várias maneiras e em várias etapas.
Mais lá atrás os
impressionistas já haviam dedicado um capítulo à luz e à fixação de impressões
fugazes. O pontilhismo de Seurat, por sua objetividade construtiva,
também de algum modo preparou o terreno para a mudança futura. A libertação das cores foi
iniciada por van Gogh e regida por Matisse enquanto que Cézanne e os fauvistas
abriram caminho para uma arte mais construída e menos sujeita à imitação
do mundo exterior.
Mas nada disso tocou no cerne da questão que deflagrou a reviravolta
estética promovida através desse tão falado cubismo que revolucionou a forma graças a Pablo Picasso,
Georges Braque e Juan Gris e tantos outros pintores. O movimento cubista
surgiu da necessidade de definir e representar uma nova realidade moderna,
complexa e ambígua, moldada pela especulação filosófica, movida pela
Relatividade, influenciada pelas diversidades e interações culturais que
ocorriam entre o o primitivo e o industrializado, o Oriente e o Ocidente e
mexida pelas novas tecnologias e invenções e descobertas científicas.
Cada uma dessas novidades trouxe consigo uma maneira nova de ver as
coisas e o intercâmbio que ocorreu entre tantas visões obscureceu a percepção
da verdade, virou a experiência da realidade de ponta a cabeça, tornou as perspectivas
mutantes, mudou radicalmente o ritmo da vida e a forma como a sociedade
percebia a natureza das coisas. O que todas essas novidades sugeriam era que
vivemos em um mundo onde a aparência dos objetos está em fluxo constante,
dependendo do ponto de vista a partir do qual os enxergamos.
Foi ali, na comunidade artística de Montmartre, que o escultor lituano
judeu Chaim Jacob Lipschitz, mais conhecido como Jacques Lipschitz assim
definiu o cubismo:
“É como estar em um certo ponto de uma
montanha e olhar ao redor. Se depois você subir lá no alto, as coisas parecerão
diferentes e se você descer, novamente elas ficarão diferentes. É um ponto de
vista”
Tudo tornara-se relativo, o tempo e o espaço tinham se casado e
entendeu-se que dois observadores nem sempre vêem exatamente o mesmo e por aí
se ia. No passado a vida e a pintura tinham sido estáticas, mas a ciência e a
tecnologia passaram a obrigar o homem a experimentar tempo, movimento e espaço
de forma mais dinâmica. Para os pintores, o dilema era específico: como
representar o fluxo de tempo, o movimento e o espaço mutante em um meio que se
presta à mera captura do momento fugaz, como a pintura?
O cubismo nasceu como uma resposta a esta situação e não é por acaso que
o movimento foi um fenômeno parisiense, considerando o legado artístico da
cidade e sua capacidade magnética de atrair os artistas e escritores mais
talentosos de todo o mundo. Paris ofereceu-lhes ótimos museus de arte, uma
tradição de liberdade moral e artística, e a boêmia artística de Montmartre na
qual podiam viver e beber de forma barata à margem da sociedade burguesa. E deu
no que deu: o cubismo explodiu!
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Pablo Picasso - Jeune Fille à la Mandoline (Fanny Tellier) - (1910) |
Essa Garota com um Bandolim, além de ser uma das mais belas, líricas e
traduzíveis de todas as pinturas cubistas, dá um testemunho importante da sua
época e das intenções estéticas de Picasso que embora com tintas cada vez mais abstratas
ainda estava, em 1910, profundamente condicionado pela materialidade
circundante e pela aparência física de seus temas.
A tela ilustra, de forma didática, um Picasso lutando com o desejo de
dar às formas um tratamento volumétrico e a necessidade de tornar as coisas
planas. Compare, por exemplo e por favor, o cuidado quase escultural que os
seios e os braços dessa moça receberam do artista versus a forma plana como foi
pintada a dupla cabeça. Pois é. O espanhol pintava dividido. Acontece que o
cubismo não é fácil. Então por que deveria ter sido para os pintores cubistas?
Uma coisa é gostar ou não da arte moderna, “ver algo” ou “não ver nada”
nela e tudo bem. E outra coisa é esse cubismo prepotente nos dizendo que o
mundo é profundamente diferente da forma como nós achamos que ele é. Há uma
diferença fundamental entre o cubismo e outros estilos modernistas posteriores:
ele nunca foi um estilo mas sim um interrogatório (rsrs) Pense em uma prova de matemática
difícil na entrada da arte moderna!
Nos maiores museus de arte do vasto mundo, muita gente boa passa direto
pelas primeiras cubices analíticas legítimas, pelas tintas calmas dessas telas
entre as quais surgem espaços de lona branca que ficaram cor de café com leite
com o tempo, sem lhes dar a menor bola, porque há vários outros estilos
modernos muito mais chamativos. E a dificuldade de “tradução” do cubismo não é
do tipo que recua com o tempo e/ou a familiaridade.
Acontece que nas paredes dos museus as primeiras pinturas cubistas parecem
pálidas, inflexíveis e herméticas em meio a modernices bem mais simpáticas! Nós
podemos desfrutar ou, pelo menos, ser provocados por outras artes modernas, com
muito mais facilidade. Podemos decidir se gostamos ou não dessa ou daquela arte
– das cores do abstracionismo, do simbolismo, do surrealimo, do expressionismo
- sem precisar de outro GPS além da intuição.
Hoje a arte é construída a partir de flashes e pedaços da vida. O cubismo, no
entanto, os deletou. A maioria das artes confirma a nossa noção de quem somos e
de como vivemos. O idioma da arte contemporânea é democrático e o seu vocabulário
é o da nossa experiência cotidiana. Os do cubismo também são assim, só que de
uma maneira muito mais ameaçadora.
O Cubismo Analítico, ao promover a decomposição, a fragmentação e a
geometrização das formas, sugeriu que nossa existência real escapava às imagens
e narrativas que vemos constantemente, que não somos como nos vemos no espelho,
como é o caso do retrato de um colecionador de arte, de nome Wilhelm Uhde, pintado por Picasso e dessa mulher estranha, de autoria de Braque.
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Pablo Picasso - Portrait de Wilhelm Uhde (1910) / Georges Braque - Portrait d'une femme (1910) |
A ideia principal do movimento foi fragmentar a realidade, mostrando,
assim, que há outras maneiras de perceber e interpretar a real. É por isso que o
cubismo permanece não domesticado, enquanto todas as outras vanguardas puderam
ser transformadas em decoração ou romance.
Paradoxalmente o cubismo é difícil, não porque seja abstrato, mas porque
é descritivo. Os cubistas não eram pintores abstratos nem o cubismo jamais
pretendeu ser bonito. Queria ser verdadeiro, levar a sério o objetivo declarado
de todo pintor desde o Renascimento, qual seja o de descrever o mundo como ele é.
No entanto, ao tentar honestamente desenhar as experiências mais humildes e
cotidianas, como olhar para uma garrafa, um cachimbo e um jornal sobre uma
mesa, ou para um amigo querido ou para a mulher amada sentada nua em uma
poltrona, os cubistas descobriram e mostraram muitas complexidades.
E o resto dos mortais simplesmente espera que a arte seja amena e fácil
e não um desafio cansativo que obriga seus pobres cérebros, movidos pela lei do
menor esforço, a trabalhar duro ou, pelo menos, a brincar de Hercule Poirot
e/ou de Miss Marple (rsrs) Só que, apesar da calmaria cromática, Pablo Picasso,
mais uma vez, conseguiu roubar o show.
Por incrível que possa parecer, o cara revolucionou a arte do retrato quando
pintou, em 1910, duas telas que não podem estar ausentes de nenhuma conversa
cubista de respeito e/ou da lista dos melhores retratos feitos por mão humana. Mesmo
enquanto o cubismo foi – e para muita gente boa continua sendo!(rsrs) - um ato
de terrorismo contra os hábitos não só de pintar, mas de ver, uma guerrilha
contra a beleza, o toureiro não se afastou dos temas tradicionais da sua arte,
como as naturezas mortas e o retrato.
Só que, apesar de manter os fundamentos que um retrato sempre teve, a
pintura do espanhol foi capaz de subvertê-los. Ainda que o mistério dos seus
retratos cubistas seja eterno e mesmo que as suas representações do “eu”
continuem intangíveis e indescritíveis, Picasso nos faz reviver, na arte moderna
e do ponto de vista de uma imaginada quarta dimensão, as profundeza e seriedade
dos retratos de Rembrandt.
A primeira das duas obras primas é o retrato de Daniel-Henry Kahnweiler,
o seu marchand de 1908 até 1915, uma pessoa notória, um escritor e editor de
arte de origem alemã. Dizem que quando o toureiro voltou a Paris, depois
daquele verão espanhol passado em Horta do Erbro trazendo a tiracolo quase uma
centena de telas nas quais retalhara a aldeia e a companheira, Kahnweiler
comprou todas elas.
O marchand posou entre vinte e trinta vezes para esse retrato, no qual,
no entanto, a imagem foi impiedosamente fraturada e o personagem foi altamente
abstraído. Mas Picasso adicionou ao conjunto atributos para direcionar o olho e
focar a mente: mechas de cabelo, um bigode, feições afiladas, um impecável nó
de gravata, uma corrente de relógio de algibeira.
O fato é que, não mais preocupado em criar a ilusão de aparências
verdadeiras, Picasso quebrou e recombinou as formas que viu, descrevendo
Kahnweiler através de uma rede de superfícies semi-transparentes - marrons,
cinzas, pretas e brancas - que se fundem com a atmosfera ao seu redor. E dessas
paragens cintilantes emerge um retrato bastante tradicional de um homem distinto,
sentado de frente e de perfil, com as mãos cruzadas.
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Pablo Picasso - Portrait de Daniel Henry Kahnweiler (1910) |
O retrato de Kahnweiler é considerado um dos melhores exemplos desta
etapa do Cubismo Analítico e sintetiza o desejo de penetrar na natureza
interior do objeto tridimensional representado – no caso, o dono da galeria de
arte – de compreender a essência do espaço que ele ocupa, os limites nos quais
se situa. Essa cena de aparência quase impenetrável foi cristalizada, foi
lapidada e cada faceta foi definida para permitir-nos avaliar os volumes que se
encontram na sua superfície e abaixo dela, enxergando em profundidade.
Esse Kahnweiler é um exemplo mais que perfeito da fragmentação cubista
cuidadosamente planejada para nos assombrar como se fosse um fantasma impresso
no espaço, uma sombra de si mesmo. À distância, pode-se distinguir a sua forma,
as mãos cruzadas e o bigode afiado entre os planos cinzas que dançam soltos no
tempo e no espaço. Tem mais: não sei explicar como mas à primeira vista sabemos
que o modelo é bem apessoado e elegante e vaidoso.
Porém quando a gente se aproxima o cara desaparece na superfície
fragmentada da tinta, deixando para trás apenas o bigode (rsrs) De repente a figura
humana - o cabelo basto, as feições, o queixo, o nó da gravata, a corrente do relógio,
as mãos cruzadas - que antes e de longe víamos sem dificuldades na pintura,
quando olhamos novamente de perto, não está mais lá.
As formas que pareciam ser dois olhos tornam-se apenas intertextos
triangulares na multiplicidade de planos inacabados que formam a composição.
Essa não é uma imagem de alguém, mas uma caricatura de tudo o que foi suprimido
da imagem de um homem. No lugar das cores do cabelo, roupas, sorriso, hábitos e
expressões do amigo, Picasso pintou os escombros das suas percepções dele que
são vislumbrados por nós e mantidos apenas por um segundo. A palavra imagem
aqui talvez seja muito inapropriada. O retrato de Daniel-Henry Kahnweiler é antes
uma miragem, um espectro, um enigma frio e lógico a ser resolvido.
Mas apesar dessa visão não corresponder aos fatos, não se parecer com o
marchand, no entanto ele está completamente lá, sentado sozinho em uma parede de
um museu de arte em Chicago, sua identidade vislumbrada com uma estranha e
calorosa intimidade. Note que, a essa altura do baile, o termo “cubismo” já não
é mais capaz de descrever essa pintura, pois ela não possui um diagrama
geométrico, mas um desenho denso de muitas texturas.
Picasso era um homem muito físico e emocional e, portanto, o seu cubismo
não foi uma tentativa de, cientificamente, explicar o mundo mas de
experimentá-lo mais plenamente, de trazer os objetos ao alcance do observador em
uma pintura. O Kahnweiler de Picasso é algo complicado cujos contornos nos
escapam, mas cujo conteúdo intuímos. E ele é tão real e desconcertante e
relativo quanto o universo que habitamos.
O segundo melhor dos retratos cubistas de Picasso, na minha modesta opinião,
é o de Ambroise Vollard, um dos maiores comerciantes de arte do século XX que
teve a coragem de expor as obras dos ainda desconhecidos van Gogh, Cézanne,
Gauguin e Rousseau e que apoiou Picasso durante as suas fases azul e rosa, mas que
balançou a cabeça, coçou a careca e se segurou diante do cubismo, demorando a
divulgá-lo.
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Pablo Picasso - Portrait d'Ambroise Vollard (1910) |
Essa obra de arte tem características distintas da anterior: os olhos
baixos, aparentemente fechados, a explosão maciça de uma cabeça calva, o nariz
bulboso, a boca mal humorada, o rosto gordo e o triangulo escuro da barba são
os primeiros detalhes que se encaixam nas nossas miradas por serem
reconhecíveis. É assim, através de detalhes, que a mente humana, através do
hábito, processa a informação visual.
Mas acima dos olhos de Vollard mora uma arquitetura doida de pedra,
quebrada em pedaços cor de tijolo, uma estranheza que se multiplica em
fragmentos de tinta, em planos que foram iniciados e deixados inacabados. A explicação
física é grosseira e, ao fazê-la, Picasso transfigura a cabeça de Vollard em um
domo de catedral, uma cúpula maciça, que impressiona. Muitos interpretam tal deformidade
como uma alusão à poderosa mente do homem.
Essa visão se parece com o rosto real do marchand, mas quanto mais
procuramos pela sua imagem, mais Picasso demonstra que a vida não é feita de
imagens, nem de aparências, mas de relações instáveis entre o artista e o
modelo, o observador e a pintura, nós e o mundo. E, no entanto, esse é um
retrato de um indivíduo, cuja presença domina a pintura. Vollard tem volume e é
mais real do que o seu entorno, que se desintegra à sua volta como uma mortalha
brilhante preta e cinza.
Diz Dona Lenda que Picasso afirmou para sua vítima que o retrato era
lisonjeiro, pois insinuava que Vollard era um membro da minúscula elite que
entendia o cubismo. O enorme cérebro dele deve ter ajudado (rsrs)
Outras surpresas cubistas nos aguardam na próxima conversa...