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Juan Gris - L'homme au café (1912) |
Moacir Pimentel
Como não sou chegado à nomenclatura enigmática da História da Arte, que
às vezes mais confunde do que explica, vou deixar para depois os entretantos e
partir para os finalmentes nessa conversa sobre a segunda etapa da revolução
cubista. Fica adiada então a teoria e, pedindo emprestadas duas obras de Juan
Gris, vou antecipar, na prática, os mistérios do Cubismo Sintético.
Muito bem. Imagine uma tela cubista que represente um indivíduo dentro
de um Café de Montmartre. Imaginou? Pois é. Juan Gris também imaginou, só que
duplamente, em duas telas diversas mas com um mesmo nome e tema: Homem em Um Café.
Veja, por favor, a primeira das duas telas, pintada em 1912, como uma
clássica representante, embora light, do Cubismo Analítico. Nela vemos um
indivíduo sentado solitário e pensativo em um belo Café diante de um copo de
bebida. Embora ele nos olhe de frente, seu rosto entre a orelha direita e a mão
esquerda, é formado por dois perfis. O homem está no centro do palco, no foco
da imagem, todo facetado em inúmeros planos geométricos. Tudo nele foi
esfaqueado e retalhado geometricamente a partir de diferentes perspectivas: as
roupas, o chapéu, suas feições.
Esse primeiro dos dois Homens no Café sorve tranquilamente uma bebida
metida à besta, talvez um dry Martini, ou talvez não, já que me parece que o
coquetel foi enfeitado por uma fatia de fruta. A bebida mora em uma taça triangular,
de design geométrico mais simples para não sobrecarregar a tela e é um
aperitivo elegante, que impressiona os observadores tanto quanto o impecável
fraque e a cartola do retratado. Note que o drinque também é um símbolo de
status social e significa que esse sujeito está sentado aí não apenas para
beber, mas para ver e, muito principalmente, para ser visto.
Porém apesar de explodir a partir da vestimenta aristocrática,
desintegrando-se e transformando-se diante de nossos olhos, esse Homem no Café é
totalmente reconhecível, muito mais do que o são as pessoas nos retratos feitos
no auge do Cubismo Analítico por Picasso e /ou Braque, certo?
No entanto, apenas dois anos depois, em 1914, Juan Gris pintou o seu
segundo Homem no Café em uma composição que é considerada uma das obras primas
do tal cubismo seguinte, apelidado de Sintético.
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Juan Gris - L'homme au café (1914) |
Aposto que você está se perguntando: “Oi? Mas
cadê o cara?”
Vamos com calma! Dizem que uma imagem fala mais
alto do que mil pretinhas e portanto olhe de novo, por favor, e permita que a
imagem lhe fale e mostre o protagonista, o mesmo sujeito elegante do trabalho
anterior, vestido nos trinques e usando a mesma cartola cuja sombra se projeta
na parede à direita. Viu?
Voilà! Aí está ele silhuetado e sentado bem no
centro do cenário pictórico, lendo o jornal Le Matin faz muitas horas se
levarmos em consideração que a publicação diária começa azul nos sugerindo a
luz natural do dia e termina da cor daquele amarelo típico da iluminação
elétrica que só é ligada à tardinha.
Com a mão direita – azul! - ele mantém aberto o jornal,
à esquerda. Talvez ele esteja usando um casaco azul petróleo a julgar por esse
braço esquerdo que termina em outra mão vestida por uma luva negra, com a qual
ele segura uma cerveja. Isso mesmo! Note a cerveja dourada de bigode branco,
dentro de uma caneca de alça. Pronto, à sua frente já está por inteiro o segundo
Homem do Café, lendo as notícias, tomando a sua loura gelada, curtindo a
sensação dura e fria dos azulejos e do copo de vidro, provando a leveza amarga
da bebida e sentindo os cheiros dos quitutes da cozinha.
Sim, já que se trata de um estabelecimento de
respeito, um daqueles famosos e belos Cafés parisienses sempre presentes nos
filmes e onde todo francês que se preza passa todos os dias para sentar e ler
ou jogar conversa fora, tomar um café ou um aperitivo e beliscar alguma coisa
gostosa.
Note que o Café em pauta não é um botequim acanhado,
nada disso, pois o pintor deu destaque à textura macia e às nervuras do couro
das poltronas. Onde e como?! Ora bolas, nesse retalho de couro que parece uma
mancha marrom escura solta no tempo e no espaço, mas que era de couro de
qualidade e brilhante o suficiente para refletir as feições e o chapéu do
cliente (rsrs)
Gris também grifou a nobreza dos painéis de madeira
que revestem as paredes e, bem assim, os belos veios da madeira de lei da mesa
na qual o freguês está bebericando. Só que o artista, ao descrever esse bebedor
de cerveja, também está nos narrando o que é um Café parisiense, o que é
bebericar uma cerveja por lá e, muito provocativamente, como diabos se sente um
sujeito solitário em um Café. Ou seja, não se trata só de pintura. ISSO é quase
uma filosofia (rsrs)
Curiosamente, apesar das inúmeras semelhanças entre
as duas cenas, entre a análise da forma na primeira e o resumo da ópera na
segunda, existe uma diferença fundamental: a bebida, é claro! O segundo homem
saboreia uma caneca de cerveja. A cerveja no lugar do dry martini, sinaliza uma
viagem do mundo externo para o mundo interno, da ostentação para a introspecção,
da análise para a síntese, da fina arte para a cultura popular : o homem não
mais quer ser visto, é ele quem contempla o mundo através da leitura do jornal
e dos seus pensamentos.
Estamos diante de uma múltipla passagem, ocorrida
no curto espaço de tempo entre 1912 e 1914: do cubismo analítico para o sintético,
de fora para dentro, do supérfluo para o essencial, da análise para a síntese e
– é claro! – do martini para a cerveja (rsrs)
A pintura de Juan Gris e/ou o cubismo é um desafio
intelectual, um quebra-cabeça, que de saída pode chocar e confundir mas que é
perfeitamente traduzível. Juan Gris, melhor que ninguém, explicou o Cubismo
Sintético com maestria :
“A
verdade está além de qualquer realismo e a aparência das coisas não deveria ser
confundida com sua essência.”
Ele na verdade pintou a essência da
experiência que é sentar-se em um Café, ler um jornal e, ao mesmo tempo, beber
uma cerveja. Pintou o jornal, a luz brincando de cores sobre suas folhas, o
conforto da poltrona de couro, a beleza das madeiras, as texturas do ambiente.
Juan Gris não nos queria como observadores do seu Homem no Café, mas nos convidar para entrar no quadro como se
fôssemos o seu modelo, pensando na vida e abrindo o expediente numa tarde
vadia.
A comparação entre as duas imagens evidencia a
diferença estética entre as tais fases cubistas: a analítica - representada
pelo Café de 1912 - e a sintética - exemplificada pelo de 1914. O objetivo do
cubismo analítico, como o próprio nome nos esclarece, era fazer análises
geométricas, promover a fragmentação das imagens em planos enquanto que o
cubismo sintético buscou capturar a essência
de uma situação, sintetizar uma experiência com extrema economia de elementos
visuais. Nesse Homem no Café, de 1914, Gris reorganizou todos os cacos da
imagem para nos dar uma poderosa impressão e nessa brincadeira a imagem já não
era mais importante do que a sensação. Mas atenção!
As nossas impressões sensoriais são dados complicados e caóticos com os
quais os nossos cérebros têm que fazer sentido. Ver imagens parece ser mais do que
necessário em nossas vidas. Por isso tantos rejeitam o cubismo, essa forma de
pintar onde em vez de receber as imagens de bandeja, temos que montar seus
quebra-cabeças visuais, que procurar por peças, pistas e fragmentos usando os
neurônios pois as relações físicas e lógicas dos objetos são muitas
vezes difíceis de construir. As brincadeiras em qualquer estágio da
criatividade cubista - sejam elas analíticas e/ou sintéticas - para uns são
cansativas e para outros muito divertidas.Milito no segundo time.
Embora, como vimos, a primeira fase fosse bastante inovadora em si
mesma, a última foi sem dúvida o período mais imaginativo da arte de vanguarda
e levou o movimento cubista ao extremo. Geralmente se considera que o Cubismo
Sintético tenha rolado entre os anos de 1912 e 1914, mas há exceções à regra
(rsrs)
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Juan Gris - Violon et Guitare (1921) |
A Influência do Cubismo Sintético na arte diminuiu, é claro, depois da
explosão da Primeira Guerra Mundial, quando muitos pintores em vez de usar seus
pincéis estavam lutando e perdendo suas vidas nas trincheiras da Europa, embora
muitos artistas, como é o caso de Juan Gris e Picasso, tenham continuado a evoluir,
mesmo durante os anos negros. Por isso é justo dizer que esse ato final e
sintético do cubismo teria ido muito além se tivesse ocorrido em tempos mais
pacíficos.
O fato é que o novo modus operandi introduziu muitas novas alternativas
conceituais à estética cubista já estabelecida. Aquela abordagem analítica
precursora baseada essencialmente em entrelaçamentos de planos e linhas, na
decomposição de um objeto em uma imagem fragmentada e em temas completamente
fraturados, tudo com pouca variação tonal em uma gama limitada de cores
escuras, anêmicas e silenciadas, simplesmente sumiu.
Durante a fase sintética os cubistas explodiram em cores e achataram as
imagens e varreram todos os vestígios de ilusão e/ou alusão a um espaço tridimensional.
Isso mesmo! No Cubismo Sintético todo o sentido de tridimensionalidade
simplesmente desapareceu.
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Jean Gris - Jalousie (1914) |
Esse trabalho que pintor o batizou de La Jalousie – A Inveja - é conhecido também como A Veneziana e como Le Socialiste, o nome do jornal que, na imagem, aparece contorcido em
harmonia com a forma do vidro de uma janela invisível. Gris pintou essa tela na
cidade de Collioure, nos Pirineus, onde ele esteve hospedado do final de junho
a outubro de 1914. O jornal era o da cidade e o seu nome completo era Le Socialiste des Pyrénées-Orientales.
A pintura nos mostra uma veneziana parcialmente fechada, através da qual
a luz ilumina uma alta taça de vinho e lança sua sombra sobre a superfície de
uma mesa de madeira. Veja como os planos de preto e cinza indicam áreas de
lusco fusco, como as sombra e luz que atravessam a superfície do vidro que Gris
representou usando giz azul claro e branco para fazer um pontilhado cuidadoso e
obter um efeito translúcido azulado em volta da forma da mesa, nas bordas da
veneziana e da taça que foi vagamente esboçada em giz branco para nos dar uma
sensação de forma.
As lâminas afiadas e cuidadosamente projetadas da veneziana são
precisamente ecoadas pelas bordas da mesa o que torna essa composição muito
equilibrada. A densidade e angularidade dos espaços negativos - essas áreas
negras rotineiramente utilizadas por Gris - emolduram e dão uma presença sólida
e formal aos objetos que, escolhidos a dedo, são geométricos e agudamente delineados
e mostrados de várias perspectivas: de cima e de lado. A composição é racional
e rítmica e, juntamente com sua paleta suave, consegue dotar esse ambiente
interior, com uma atmosfera calma e silenciosa.
Juan Gris, ao pintar essa legítima representante do Cubismo Sintético
inventado por Picasso e Braque, estava consolidando sua excepcional pintura
após sua primeira exposição individual, em 1912, e a assinatura de um contrato
de exclusividade com o famoso marchand Daniel-Henry Kahnweiler.
Mas, como sempre, a última palavra foi do toureiro. No outono de 1913,
Picasso inventou uma tela que combina as fraturas do cubismo analítico e a
estrutura esquemática do cubismo sintético: uma mulher nua sentada em uma
poltrona, anônima e neutra, que só não se perde no fundo da pintura graças à
linha de contorno pesado que define e limita a figura. As junções entre os
diferentes planos são tão profundamente projetadas para parecerem dobras e, de
fato, nessa obra não há desejo, por parte de Picasso, de ocultar a técnica do
cubismo sintético.
Mas as formas geométricas rígidas e lineares são combinadas com linhas curvas
que emulam rendas, transparências, franjas e veludos em tons quentes. A
poltrona confortável e macia que circunda o corpo da mulher dá à composição uma
aparência familiar, distante da frieza da abstração. Vemos uma forma feminina
com um colo largo e uma bela camisola na qual, à primeira vista, seios
pendulares e maternos foram pendurados, como um daqueles colares tribais
africanos. A segunda vista a gente se pergunta se os pregos não seriam mamilos
extras e se Picasso não estaria retornando às paisagens sexuais (rsrs)
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Pablo Picasso - Femme en chemise assise dans un fauteuil (1913) |
O volume maciço e escultural dessa mulher primitiva sentada – dizem que
ela era a “Eva” dele! – cuja cabeça é uma Esfinge com os traços faciais
diminutos, os cabelos ondulados, as costelas salientes, o umbigo à mostra, a camisola sedosa, a
poltrona confortável, o jornal diário, tudo isso, deixa essa composição carregada
de símbolos que remetem à vida cotidiana, ao quarto, à mulher e à casa da
gente. Creio que esse trabalho pode, para todos os efeitos, ser considerado
como o momento em que o Cubismo Analítico se rendeu diante do Sintético. A
pintura acima - que aliás chama-se Mulher
de Camisola - é um dos trabalhos sintéticos mais icônicos de Picasso.
Quando o Cubismo Analítico chegou ao fim, ele já quebrara todas as
regras seculares da pintura, fornecendo uma alternativa à perspectiva linear de
ponto único. No entanto, quando o Cubismo Sintético começou a estabelecer seu
próprio conjunto de regras, a cena artística da Europa foi tomada de assalto e
realmente balançou. Porque, diferentemente do Cubismo Analítico que desmontara ou
desconstruíra as figuras humanas e objetos, o Cubismo Sintético promovia a
construção ou síntese, preenchendo a lacuna entre realidade e arte,
interpolando literalmente partes do mundo real na suas telas.
Autênticos jornais, pedaços de papel, bilhetes de cinema, carteiras de
cigarro substituíram as representações planas pintadas e partituras reais
roubaram o espaço das notas musicais desenhadas, e esse processo de incorporação
da real nas composições marcou um afastamento do intelectualismo, direcionando
o movimento para um curso mais relaxado, popular e lúdico de estética.
Usando os símbolos da realidade, o cubismo de novo se reinventou em algo
inteiramente inédito, texturado, que incorporava uma ampla variedade de
materiais bastante familiares aos pobres mortais. Ao expandir o movimento para
seu segundo e último ato, Georges Braque, Pablo Picasso e Juan Gris e outros
companheiros de paleta, se deram a total liberdade criativa de retratar o mundo
ao seu redor como queriam e descobriram uma abordagem incrivelmente inventiva
para a criação de imagens. Não havia mais restrições de qualquer tipo, já que
os únicos limites eram estabelecidos pela quantidade de criatividade que cada
artista possuía, como veremos na próxima conversa sobre as famosas “colagens”.