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17/09/2018

Passado a limpo

Xilo impressa em papel artesanal - Ana Nunes



Ana Nunes
O papel para mim é interessante, lindo e fundamental.
É o impasse.
É a textura que me chama e o branco que me angustia.
É a crise que se instala.
É a certeza do que o imaginado nunca será o mesmo do feito.
É a escolha do papel adequado.
É a escolha da tinta mais delicada ou mais forte assombrando olhos e mentes, ou preto e branco diluídos nos cinzas de meio tom.
É a indecisão dos primeiros traços.
E, por fim, a surpresa do desenho pronto. Pronto mesmo? Aí reside o perigo, o saber parar.

É sobre este papel aparentemente simples que vamos conversar.
Esse papel que começou longe na distância no império chinês e longe no tempo com Sai Lun, um funcionário do rei Ho-Tino em 105 DC. Encarregado de procurar um meio mais maleável e fácil de manejar, ele tentou diversos materiais e técnicas até chegar à folha feita de trapos de seda. Vindo de um chinês só podia mesmo ser de seda. E certamente de alguma concubina infeliz. Trapos devidamente apodrecidos, cozidos com as fibras desagregadas em pasta e moldadas em folha.
Novidade levada para o oriente, Bagdá, Damasco, Egito e Marrocos pelos árabes e para a Sicília e a Península Ibérica pelos mouros, sempre investigando materiais locais.
As primeiras fábricas só surgiram na Itália no século XIII e no Brasil em 1809. Sempre atrasadinhos esses brasileiros colonizados!

A maioria dessas fibras utilizadas vêm do reino vegetal. São fibras envolvidas em lignina e distribuídas pelo corpo da planta em feixes, redes ou mesmo em cilindro contínuo. Que nada mais é que a celulose que organizada e entrelaçada nos dá a folha de papel. Toda planta pode vir a ser papel, dependendo do tipo e da qualidade de papel desejado.

Já fiz papel de talo de mamão, delicado amarelo quase bege, de pita parecendo um Toblerone claro todo pintadinho de marrom, de agapanto, maravilhoso, manchado, ele próprio um desenho a la Pollock, espada de São Jorge e outras agaves, uniformemente amarelado e delicado, de cana que dá um papel mais rústico, de gengibre de papel fino, delicado e sedoso, quase branco, de palha de milho flocado com o cabelo dourado, um assombro, mamona, cabacinha de coqueiro, canela de veado num lindo tom de marrom.
Papel de mamão / pita / fibras com papel fotográfico
Papel de agapanto / gengibre / fibras tingidas
Papel de espada de São Jorge / mamona / canela de veado

A essas fibras maravilhosas misturei sobras de papel fotográfico, coador Melitta, ou só de retalhos de papéis variados.
O mais difícil sem dúvida é o de trapo de algodão demorado para apodrecer e desmanchar as fibras. E o mais exaustivo o de alamanda de talos duros, teimosos demandando marteladas e mais marteladas sem fim até desmanchá-los.

E ainda podemos tingi-los também com pigmentos vegetais extraídos do fruto da lobeira, do vinhático, barbatimão e ruão. E outros mais. Ou fazer um branqueamento.

O processo para a coleta das plantas é cheio de segredos. Quase superstição. A época boa é na lua minguante quando o caule está mais seco, os líquidos estão na raiz e as brocas aí hibernadas. A planta fica mais porosa e permite uma absorção maior da soda cáustica usada no cozimento.
Para a tintura é o contrário, a melhor lua é a cheia, quando se precisa da planta com todos os líquidos para uma cor mais escura. Dizemos que é quando a planta “sangra” mais.

Muitos desses conhecimentos vieram da cultura popular repetidos ao longo da vida, passados de pai para filho. Não devem nunca ser subestimados. Por exemplo, na touceira da bananeira não podemos cortar o tronco mãe central porque ela morre. Devemos cortar as filhas, que ficam à direita e esquerda. Assim como as flores que devem ser colhidas em libra, gêmeos e aquário, e grãos e frutos em leão, áries e sagitário! Alguma coisa a ver com meses que têm ou não a letra erre no nome...

O processo propriamente dito é extenso mas divertido. Quase sempre acontece com amigos juntos, rindo de bobagens conversadas. Talvez por isso mesmo.
Depois da coleta na lua minguante, limpar o material, cortar em pedaços e colocar de molho por um dia inteiro. Depois de escorrida e lavada a planta é cozida com soda cáustica por algumas horas.

fotografias Ana Nunes

Por desprezar o equipamento de segurança, EPI, quase perdi a visão quando uma lasca de soda caiu no meu olho. Só não a perdi pela proteção da lente de contato que preservou a íris. O resto ficou como um bife de fígado. O pior foi dirigir do campus até a cidade, chorando sem parar e enxergando com um olho só. E depois ficar sem lentes de contato por seis meses e com um pouquinho de visão dupla. Tudo recuperado com o tempo!
Voltando ao papel, há de se acrescentar à pasta batida nos grandes liquidificadores industriais fungicida, bactericida e aglutinante e água bastante.
fotografias Ana Nunes

Espalhar esta pasta nas telas do tamanho que se quer a folha. Nesta hora se decide a gramatura do papel de acordo com a quantidade de pasta.
fotografias Ana Nunes

Tirar o excesso de água com esses paninhos absorventes de limpeza e virar delicadamente em grandes pedaços de pelon fazendo uma pilha. Prensar por uma noite para tirar toda a água. Pendurar no varal que fica uma lindeza! Depois é só prensar de novo e o papel está pronto. É só usar. Em carta, convite, envelope, copa de abajur, capa de livro. O que você quiser.

E descansar bastante até partir para o próximo.
Como dizem alguns, enquanto houver bambu vai flecha.


11 comentários:

  1. Moacir Pimentel17/09/2018, 09:40

    Caríssima Donana,
    Mais um dos seus belos e interessantes posts. É claro que, sendo quem é, só podia mesmo meter as mãos na massa quando se trata de suas tintas e papeis. E começar o texto pelo mais importante: o seu processo criativo, “o impasse, a angústia, a crise instalada e o perigo de não saber parar na hora certa”! Brava!
    Confesso que sabia pouco sobre as origens do papel e nada sobre o seu processo de feitura, embora minha saudosa mãe confeccionasse o que usava em alguns dos seus trabalhos manuais, como cartões de Natal.
    Por fim, entre as fibras citadas dei por falta das da planta do linho. É que suas pretinhas me lembraram que em algumas aldeias da t’rrinha as senhoras ainda a plantam, colhem e dela retiram fibras com as quais tecem artesanalmente em velhos teares, um linho grosso e rústico que, pelo menos à distância, se parece com seus preciosos papeis.
    Obrigado pelos bons bytes de memória e “até sempre mais”

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    1. Olá Moacir,
      Não se engane. Enquanto houver massa eu meto as mãos. Pode ser de cimento para fazer rejunte e pode ser de farinha com fermento para fazer pão. E já estou preparada para o caso de ter que viver no mato. Só se for necessário, lógico, porque gosto mesmo é da muvuca da cidade.
      Sua querida mãe devia fazer reciclado de papéis. Não demanda cozimento nem banhos de soda cáustica.
      Quanto ao linho da sua t'rrinha não sei como se faz. Mas em algum momento o processo para tirar a fibra deve ser parecido com o do papel. O tecido rústico deve ficar bem bonito e gostoso de pegar.
      Os bytes a gente está sempre trocando. Devo estar ficando velhinha, velhinha, porque em vocês marmanjões só desperto lembranças de mães, tias e até avós (muitos, muitos risos!) Poveretta di me!
      Até sempre mais.

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  2. Lea Mello Silva17/09/2018, 13:19

    E a gente aprendendo com vc Ana
    Interessante estes processos e que beleza estesbpapeis artesanais
    Vendo os seus gatos no início já sabia que era vc
    Obrigada e continue a nos presentear com seus escritos

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    1. Querida prima,
      Como você sabe, gato é comigo mesmo. Tenho que me segurar na aula de cerâmica para não sair fazendo gatos e mais gatos. Mas acho que vou fazer um hoje. Tudo indica!
      Obrigada pelo seu comentário. E, apeasr do medo, acho que vou mesmo continuar escrevendo por aqui. Esse blog e seus filiados são a minha perdição!
      Beijo prima querida.

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  3. Flávio José Bortolotto17/09/2018, 21:00

    Prezada Autora, Sra. ANA NUNES,

    Somente uma grande Artista Plástica como a senhora, para produzir pigmentos de efeitos especiais com o lindo solo metalífero das Minas Gerais, e produzir artesanalmente papel com vegetais e suas fibras, e tingí-los com outros vegetais, conseguindo efeitos únicos e muito bonitos.
    Também como a Sra. LEA MELLO SILVA acima, achei muito bonito a xilogravura em papel artesanal de vossa lavra, dos gatos, que ilustra o Artigo.

    Parabéns pela originalidade e beleza dos Trabalhos Artísticos.

    Saudações.

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    1. Olá Flávio Bortolotto,
      Obrigada pelo comentário e elogios.
      Você é sempre elegante e gentil.
      Até mais.

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  4. Francisco Bendl18/09/2018, 09:34

    Pois é.

    A Ana me surpreende a cada artigo que publica.

    E são tão diferentes e interessantes, que até os elogios que merece precisam ser originais, novos, inéditos!

    Do alto dos meus 69 anos feitos na sexta-feira passada, dia 14 de setembro, jamais li um texto tão criativo quanto à confecção de papel, das misturas empregadas, de suas texturas, de suas cores.

    Inegavelmente a Ana é uma artista neste sentido, que se completa maravilhosamente bem com o modo como descreve a manipulação do material para obter o que deseja.

    Eu sempre gostei de pesquisar, de fuçar nos livros, bibliotecas, sebos, de buscar informações que, na minha época de escola não havia outra forma, pois sequer sonhávamos com a palavra computador e Internet.

    Curiosamente, a Ana volta ao passado como o chinês que criou o papel, para fazer um caminho inverso, ou seja, a obtenção de um papel que lhe sirva para suas artes, para a plasticidade que a sua mente tem com relação ao uso do papel em suas mais variadas utilidades!

    Ora ora, a Ana ao mesmo tempo é escritora e artista plástica, além de nos trazer esta novidade a respeito do ... papel, que usamos cotidianamente.

    Artigo primoroso, bonito, bem feito, que mostra o quanto a mulher é sensível, e se dedica a afazeres que se identificam com a sua mente tão prodigiosa, tão criativa, e diferente da mesmice do homem.

    Essa procura de elaborar um papel que se encaixe naquilo que deseja, de odo que possa fazer melhor a sua peça artesanal, também nos mostra uma pessoa determinada, que não se abate diante das primeiras dificuldades.

    Parabéns, Aninha.

    Apreciei em demasia este artigo, pois algo verdadeiramente novo no Conversas do Mano, um blog extraordinário.

    Um grande abraço, como sempre respeitoso.
    Saúde e paz, extensivo aos teus amados.

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  5. Parabéns querido amigo!
    Muita saúde. Muita alegria.
    Eu sabia que era por esses dias mas a viagem intensa (e bota intensa nisso) à São Paulo de três dias com direito a netos me tirou do eixo. Fiquei assustada quando vi que hoje já era dia 18. Daqui a pouco é Outubro. E o Natal. Não vi o ano passar! Sinceramente acho que logo vou ter que fazer outra"a vida é uma festa" e arredondar para setenta! Isso me assuuuusta! Muuuuuito!
    Você me elogia demais e isso não é bom. Nem com uma escrita tão boa. Não se deve dar asas à cobra.(rsrsrs)
    Nesse texto mostro um pouco do que aprendi nas aulas "Artes da Fibra" na escola de belas artes. Pratiquei bastante e me diverti muito também.
    Obrigada por tudo, pelos elogios exagerados, por seus escritos e por mais um aniversário aqui com a gente.
    Até muito mais.

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    1. Moacir Pimentel18/09/2018, 12:35

      Dá licença, Donana? Vou pegar uma carona no seu post para dar ao Chicão os parabéns pelo aniversário e um abraço do tamanho dele!

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  6. Francisco Bendl18/09/2018, 14:00

    Muito obrigado, Aninha e Pimentel!

    Devolvo o abraço a ambos, com fraternidade e carinho.

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  7. 1) Também sou um admirador da folha de papel em branco, qualquer folha.

    2) Existe uma meditação de gratidão que a gente faz agradecendo à pessoa ou pessoas envolvidas na fabricação do papel, os que comercializam o papel até chegar às nossas mãos.

    3)Portanto, Ana, parabéns e obrigadíssimos pelas fazeduras de papéis. Fazimentos...

    4)Quem gostava de escrever assim era o mineiro Darcy Ribeiro...

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