Jackie Coogan no filme "O Garoto" de Charles Chaplin (imagem Chaplin Productions) |
Heraldo Palmeira
Saí da
garagem do prédio do escritório e tomei o asfalto. Para variar, o trânsito
estava ruim, como todos os dias. Paciência! Era melhor não ter pressa, para
poder chegar em paz em casa. Segui naquele cortejo que encurrala a vida. Não havia
o que fazer além de ligar o rádio do carro.
Fiquei pensando
que nunca me separei do menino que vive em mim desde a infância. Tenho com ele
uma convivência pacífica. Evito que sua inocência sofra com as dores da vida
adulta, para que não perca a pureza de que precisamos lançar mão em alguns
momentos. E sempre fico a sós com ele se preciso de ajuda, porque fala coisas
que não sei dizer, enxerga saídas que não encontro.
Talvez seja
difícil acreditar, mas é esse menino interior que me ajuda a manter a
serenidade e a firmeza em situações incomuns. Talvez por que ele seja um
sonhador, um sujeitinho de bem com a vida que deu de enxergar sempre um passo
adiante. E cada vez mais confio nele, inclusive meus segredos – até aqueles que
eu gostaria de esquecer.
Havia uma
multidão diante da matriz da minha cidadezinha. Era festa da padroeira, missa
campal de encerramento, gente vinda de várias cidades, das redondezas e mais alhures
- tem quem calcule vinte mil pessoas todos os anos, naquele dia.
De repente,
um menino raquítico, assustado rompeu a área reservada, subiu em desespero a
escadaria central do átrio, chorando aos gritos e foi direto na direção do
bispo que presidia a celebração. Mas driblou o sacerdote e seus auxiliares, e
seguiu para dentro da matriz vazia.
Agi por
impulso e fui atrás. Ele procurava a mãe. Descalço, sujo, cansado, apavorado. Estendi
os braços e ele veio sem titubear.
Comecei a
falar baixinho no ouvido dele, palavras de acalmar. Foi se deixando aceitar
naquela nova situação, só queria amparo. Eu, homenzarrão, querendo chorar minha
paternidade revivida naquela criaturinha. E ele me apertava com carinho, confiante,
seguro. Passo seguinte, deitou a cabecinha no meu ombro, entregue, calmo.
Saímos da
matriz assim, direto no altar solene daquela festa. Percebi que todos os
olhares nos acompanharam, enquanto fomos para a lateral conversando ao pé do
ouvido. De imediato, principalmente as mulheres me cercaram prontas para ajudar
– o sentido de maternidade é algo fantástico!
Todos tentávamos
arrancar do menino alguma informação que pudesse nos ajudar a encontrar seus
familiares. E ele permanecia agarrado ao meu pescoço recusando qualquer outro
braço que se apresentou.
Um dos
coroinhas me avisou que na base da escadaria central, diante do altar, havia
uma moça se dizendo tia do menino. Lá fomos nós conversando, mas ele recusou os
braços que ela estendeu. Disse baixinho no meu ouvido que não queria ir e
pareceu sentir medo.
Fui tomado
pelo dilema de entregar uma criança desconhecida a outra desconhecida. E voltamos
para o ponto anterior, cercados pelas mulheres aflitas. Corria a missa e logo
eu teria funções na liturgia, na hora de conduzir com a equipe o andor com a
imagem da padroeira para dentro da matriz.
Começamos a
cogitar chamar as autoridades, até que alguém deu uma pista, o menino era de
uma família de moradores de um sítio perto da cidade. E a moça voltou, desta
vez trazendo uns chinelos na mão. Eu perguntei ao menino se eram dele, confirmou
balançando a cabeça. Desci-o para o chão, os calçados serviram perfeitamente, como
revivendo o conto de Cinderela no masculino e em pleno sertão do Nordeste.
Ele já
estava mais calmo, aceitou ir com a moça. Ela nos explicou quem era a mãe e
todos nos lembramos de tê-la visto por ali, momentos antes de a celebração começar.
Quando tudo parecia bem, chegou a hora de nos despedir. O menino ergueu os bracinhos,
queria meu colo, recusava ir embora. Como não me curvei para pegá-lo, agarrou-se
à minha perna, irredutível.
Tomei-o novamente
nos braços, saímos do assédio das pessoas e conversamos um pouco. Falei palavras
brandas – acho que ele nunca ouviu isso de nenhum homem da família, muito menos
de alguém do meu tamanho, de uma voz grave. Parou de soluçar e prometeu que
iria com a tia, mas combinamos nos reencontrar dali a um ano, novamente na
festa da padroeira. Ele apenas concordava com movimentos de cabeça, incapaz de
entender o hiato do tempo.
Voltei à
realidade engarrafada pela fuligem dos automóveis quando o locutor anunciou três
tempos dos Secos & Molhados, retirados daquele disco lendário com as
cabeças servidas de bandeja na capa.
Leve,
como leve pluma
Muito
leve, leve pousa
Na
simples e suave coisa
Suave
coisa nenhuma
Que em mim amadurece
Não sei se o
menino vai lembrar do nosso compromisso, mas estarei lá conforme combinado. E meu
braço, envelhecido mais um ano, ainda parecerá firme para ele.
Andei mais
um pouco quase sem sair do lugar, ilhado naquele mar de carros na região de
hospitais e cemitérios, estranha e premonitória conexão da metrópole nos dois
lados da grande avenida. Como se ao destino bastasse apenas atravessar a rua
para estar finado. E as rosas já estavam ali mesmo, entupindo barracas, fingindo
enfeitar o cortejo urbano.
Dois semáforos
adiante, um rapazola magérrimo perambulava entre os carros. Tinha um sorriso e uma
esperança incompatíveis com aquela realidade. Arrisquei abrir o vidro e assumi
os riscos, e em pouco tempo ele desistiu de tentar outros carros. Ficamos conversando,
meu corpo dividido entre o ar refrigerado vindo pelo lado direito e o calor poeirento
entrando da rua pelo lado esquerdo.
Seguimos ele
e eu, esforço mínimo sobre o asfalto. Passo a passo (para ele) e metro a metro
(para mim) – o conforto do câmbio automático, apenas pisar e soltar levemente o
pedal do freio. Um leve chuvisco, mas ele quis seguir, os respingos molhando
seu corpo e o meu braço. Fiquei pensando se deveria convidá-lo a entrar para seguirmos
a prosa, mas confesso que aquela foi uma das primeiras vezes que fiquei sem
resposta para uma dúvida. Até o meu menino da infância se absteve de opinar.
O rapazola me
disse que tinha sido expulso de casa quando resolveu assumir sua
homossexualidade. O masculino do pai ameaçou de morte, o feminino da mãe
esvaiu-se em pranto. Ela morreu pouco depois, ele acha que de desgosto pela
separação forçada. Era filho único. Perdeu a escola cara. Caiu nas ruas. Sem destino,
sem sentido. Sem medo porque não havia mais o que perder. Espaço vazio para
qualquer temor.
O chuvisco parou.
Eu tentei chorar apenas com o olho direito, para não ser visto em lágrimas. Pendi
um pouco a cabeça para o lado direito, como se a lei da gravidade pudesse
ajudar ali. Ele tentou com o esquerdo, pois caminhava lado a lado, com a mão
posta sobre a porta do carro como quem sonha lançar âncora. Resolvemos liberar
os olhos centrais, o meu esquerdo, o direito dele. Fazia mais sentido. Chorar pleno
às vezes faz bem.
Eu
não sei dizer
Nada
por dizer
Então
eu escuto
Se
você disser
Tudo
o que quiser
Então
eu escuto
Fala
Se
eu não entender
Não
vou responder
Então
eu escuto
Eu
só vou falar
Na
hora de falar
Então
eu escuto
Fala
Ouvimos a
música em silêncio. “Eu adoro esses caras, eram de outro planeta” – ele disse ao
fim, com autoridade. Apenas balancei a cabeça, concordando.
Eu ia dobrar
à direita no próximo semáforo, na esquina final do cemitério, ficar livre
daquele cortejo quase fúnebre. Dei a ele um dinheiro maior para ajudar, sem
atribuir valor. Não tinha preço aqueles minutos em que dividimos o mesmo mundo.
Nos despedimos ali, com um aperto de mão firme, prometendo outra conversa qualquer
dia naquele engarrafamento eterno.
Fiquei olhando-o
ir embora, cada vez menor no retrovisor. Acionei o vidro elétrico e fechei meu
mundo novamente. Olhei aquele painel enorme, couro e madeira gritando que nada
tem valor absoluto. Tudo tão claro, um desânimo, uma carga de interrogações.
É claro que
eu não poderia ignorar minha história, mas gostaria de saber porque fui eu quem
achou o caminho para estar dentro do carro e agora me sentir absolutamente incapaz
de fazer algo melhor.
A avenida que
tomei estava calma ladeira abaixo, poucos carros, sem ninguém nas calçadas
escuras. Um mendigo juntava porcarias pelo chão, um cachorro lúdico abanava o
rabo para ele. O encontro quase suicida de quem não tem para onde ir e faz da
rua um destino, e acha os seus que não são de ninguém. E seguem porque o jeito
é seguir. E seguimos pois não há outro jeito de escapar.
A voz do locutor
avisou que os três tempos estavam chegando ao fim e anunciou a última música.
Pensem
nas crianças mudas, telepáticas
Pensem
nas meninas cegas, inexatas
Pensem
nas mulheres, rotas alteradas
Pensem
nas feridas como rosas cálidas
Mas,
oh! Não se esqueçam da rosa, da rosa
Sem
cor, sem perfume, sem rosa
Sem nada
Pensei no
menino em meu colo seguro. Pensei no rapazola pouco mais que um menino que já
não cabia nos meus braços inseguros. Pensei no mendigo e seu cachorro fuçando
porcarias que talvez eu mesmo tenha jogado pela janela. Pensei em mim incapaz
de fazer algo melhor do que dirigir, ouvir e calar. Sem coragem para desligar o
ar-condicionado e abrir os vidros em busca de ar. Sem nada para dizer. Sem ninguém
para me escutar. Sem rosa. Sem nada!
Comecei a
contar os minutos para chegar em casa e ficar a sós com o meu menino da
infância. Tínhamos muito o que conversar.
Trechos de:
Amor (João Apolinário-João
Ricardo)
Fala (João Ricardo-Luli)
Rosa
de Hiroshima
(Gerson Conrad-Vinícius de Moraes)