fotografia de Heraldo Palmeira |
Heraldo Palmeira
Acostumei a
uma agenda incerta. Foi um ano em que fiquei menos tempo em Sampa. Trabalhei e
descansei noutros lugares. Quase um ano depois voltei a Perdizes, o mesmo lugar,
a mesma casa, a mesma janela.
À entrada,
encontrei o mesmo gato que, um ano antes, não passava de um rapazola descobrindo
os segredos do mundo felino, assustado com as novidades. Agora, adulto, homem
feito, cheio de segurança, fingido.
Estava na
calçada, para me receber ao portão. Capitulou quando entramos na sala de estar e
o chamei pelo nome, com ternura: deitou e depois estatelou de lado sobre o tapete,
para que eu passasse o tênis – fui calçado neles de propósito – no seu dorso, da
cabeça ao início da cauda.
A cada
movimento, ele mexia as patas com prazer, enfiando as garras no tapete. E ficamos
assim alguns instantes, comprovando que os gatos têm, como dizem, memória
afetiva. Tanto que, nos dias seguintes, ele veio à porta do meu quarto se
anunciando em miados elegantes. E desfrutamos, como da primeira vez, nossa
companhia de amigos, eu escrevendo e ouvindo música, ele presente, cochilando
bem acomodado.
Agora é o
senhor do pedaço, já não se vale da minha cumplicidade para entradas e saídas
de emergência usando a janela e o telhado logo abaixo.
A casa está bonita,
a presença feminina que agora existe nela dá sinais em todos os cantos. Há um
clima de harmonia e felicidade no ar, que contagia silenciosamente os hóspedes.
Já na
primeira noite, cheguei discretamente à velha padoca. Ainda na calçada, vi pela
vidraça da vitrine que os mesmos funcionários estavam lá. Aproveitei o
movimento e entrei sem chamar atenção, sem falar com ninguém, e sentei no lugar
que fiz costumeiro, colado ao balcão.
De repente,
o primeiro me percebeu e, refeito da surpresa, quis saber como tinha sido
aquele meu ano distante. Desde minha estada em Portugal até o resto. E a farra
tomou conta do salão, resgatando nossos chistes e nosso carinho. Eles não
esqueceram nem mesmo de como gosto da comida! Claro que lacrimejei. Como não? A
selva de pedra tem seus bichos afáveis ronronando afetos.
Entramos em
campo para falar de futebol, dos campeonatos quase chegando ao fim, dos times
que estavam prestes a erguer suas taças. Claro, tirando sarro dos que estiveram
perto, dos que estão longe há tempos, usando tudo que servisse para tirar onda.
Pouco depois,
a dona da padaria entrou e veio me contar que desistiu da moto sonhada. Vai seguir
na garupa da Harley do filho, ele venceu no cuidado protetor, no medo pela
segurança dela.
O velho baiano,
o mais antigo dos funcionários, que não sabe exatamente quando nasceu, que não
tem documentos, veio me cumprimentar com sua voz doce e aquele jeito fidalgo de
quem sabe tudo e não arrota sabedoria. Já passou dos oitenta mas, por não saber
a idade, segue fazendo o pão nosso de cada dia da casa e vai enganar o tempo ainda
por muito tempo com aquele jeitinho de quem não quer nada.
Como só acontece
em Sampa, o dia teve os tempos das quatro estações. À noite, fui ficando tarde
sentado diante da minha janela, luz do quarto apagada, a chuva fina que sucedeu
a garoa dançando sob a luz do poste.
Eu
vim correndo à frente do sol
Abri
a porta e antes de entrar
Revi
a vida inteira
Pensei
em tudo que é possível falar
Sinais
de bem, desejos vitais
Pequenos
fragmentos de luz
Falar
da cor dos temporais
Do
céu azul, das flores de abril
Pensar
além do bem e do mal
Lembrar
de coisas que ninguém viu
Pensei
no tempo e era tempo demais
Eu
simplesmente não consigo parar
Lá
fora o dia já clareou
Você
vai ter que encontrar
Aonde
nasce a fonte do ser
O
mundo lá sempre a rodar
E
em cima dele tudo vale
Estrada de fazer o sonho
acontecer
Dormi uma
noite de sono e sonhos, perfeita, o friozinho de inverno fora de época dominando
o ambiente. O dia amanheceu e eu nem notei se fazia calor ou frio, apenas segui
pela rua como se houvesse um vento solar e estrelas do mar. Quem sabe o que
isso quer dizer?
Trechos de:
Quem sabe
isso quer dizer amor (Márcio
Borges)
1) Eu já li esse texto ou não? E se li foi aqui? Acho que sim, inclusive a foto iluminada que me lembrou um bairro paulista onde minha irmã morou um período e eu ia lá com frequência.
ResponderExcluir2) Se é uma repetição, nada contra, pois o Heraldo escreve e fotografa bem.
3)Se não é uma duplicidade me perdoem todos (as) estou vendo fantasmas. Talvez minha mediunidade/premonição anda meio pirada e ando trocando os artigos e as crônicas.
4)No mais viva Sampa e a MPB !
Antonio,
ExcluirNão, não leu. Foi escrito esta semana, continuava inédito. Apenas a foto já foi publicada no primeiro relato, da minha temporada do ano passado em Perdizes.
Este é o meu relato sobre o retorno ao lugar, um anos depois. Eu não repito texto aqui no Conversas, todos foram publicados uma única vez. Se precisar, um dia, e o Mano autorizar... eu vou evitar. Abraço.
Palmeira não deixou claro sobre o porquê do seu retorno a Perdizes.
ResponderExcluirDeixa evidente, no entanto, que foi para descansar na mesma hospedaria de antes, e que a encontrou mais alegre.
O que não invalida o seu bom texto a respeito de Uma Noite Perfeita, que tem a minha admiração.
Neste aspecto, a música cantada por Roberto Carlos, O Portão, teria se encaixado muito bem, apesar de o cachorro teria sido substituído pelo gato.
O relato feito com riqueza de detalhes, o reencontro com velhos amigos e com a dona da padaria, culminando com uma noite de sonhos, calma, e tendo despertado com dinamismo e felicidade, para mim Palmeira foi nostálgico, um retorno ao local que lhe agradava e que encontrou melhor do que antes.
A busca motivada pela saudade, e que poderia se realizar, transformando essa possível tristeza em alegria e que foi consumada com enormes vantagens, gerando um amanhecer que poderia ser a chance de novos retornos e com esta mesma importância e significado.
Quando saí de Brasília, em 1.967, somente retornei em 2001, 34 anos depois!
Um amigo, que também fora para o Distrito Federal na mesma época, meu vizinho em frente à casa onde morei em Taguatinga é que foi me apanhar no aeroporto.
Imaginem, por favor, o quanto este largo espaço de tempo não muda o aspecto de um jovem, pois nos despedimos com 16/17 anos, e agora estávamos com 50!!!
Eu torcia para reconhecê-lo, como acredito que ele a mim.
Mas, eu o identifiquei de longe, e quando o Sérgio também me viu, o abraço foi novelesco, cinematográfico, um tanto quanto escandaloso!
Claro que estávamos com alguns quilos a mais. Ele, mais destelhado do que eu. Porém era um homem realizado, um advogado conceituado, competente, e a sua situação financeira era invejável e sólida.
Fiquei na sua casa por três dias e duas noites, de quarta até sexta-feira, quando retornei aos pagos.
Bom, Brasília, Taguatinga, evidentemente que não eram mais nem sombra de quando fui embora.
Portanto, temos esta necessidade de voltar aos locais que foram importantes para nós, deixados por circunstâncias muitas vezes alheias à nossa vontade.
Uma espécie de completar o círculo deixado inacabado.
Logo, o valor do artigo de Palmeira se revela nessas lembranças, que têm o poder de nos fazer alegres ou de aumentar a saudade, a nostalgia, e de lamentar o que não se pôde completar.
Palmeira saiu feliz, compensado, certamente pensando retornar outro dia para Perdizes.
Um abraço, Palmeira.
Saúde e paz.
Bendl,
ExcluirEu sou um viajante, estou sempre em algum lugar, hoje já não tenho uma base tão fixa - Sampa é a mais parecida com isso, embora eu tenha vindo quase nada aqui, este ano.
Noite Perfeita é apenas o relato deste reencontro. E esta casa tem um valor especial para mim, pois foi aqui, nesta mesma janela que se debruça sobre o vale, onde finalizei meu primeiro livro. Portanto, minha alma estará sempre vagando por aqui e voltarei tantas vezes quantas eu conseguir.
Estar em Perdizes é porque preciso me hospedar em algum lugar. Não vim para descansar, estou trabalhando. Mas sempre acho o tempo de repousar, de aproveitar a vida - e isso pode acontecer fazendo coisas muito simples, como rever meus amigos queridos que trabalham por aqui e me acolhem com tanta nobreza. E os donos da casa que me hospeda, e o gato da casa.
"O Portão" fala de uma casa de origem afetiva, bem diferente desta casa de Perdizes (para mim). Eu não venho aqui resgatar nada, apenas viver novos momentos de alegria e reviver as lembranças recentes. Por isso, a música do Márcio Borges é muito mais adequada ao meu relato. Estar aqui é apenas uma escolha de hpspedagem dentre tantas, mas volto porque me identifico. Abraço.
Heraldo, viajando pouco ou muito, sempre se acaba um dia voltando para casa. Uns para a casa de sempre, outros para o novo lugar no mundo que naquele momento chamam de casa. Uma vez (acho que já contei isso aqui, mas não faz mal :), voltando de um longo e belo passeio pelas alturas do Caparaó, entrei em casa, sujo, cansado e contente e minha mãe, que abriu a porta para mim, perguntou: "Filho, que tal a viagem?" E eu respondi: " O fino é voltar para casa!" - e ela gostou tanto que isso virou um bordão na família...
ResponderExcluirPois desejo que todas suas voltas para todas suas casas na vida sejam tão boas quanto a que nos contou no post.
Um abraço.
Mano,
ExcluirPois é, a vida itinerante me dá casas para onde sempre vou de novo, sempre como novo lugar, mesmo quando eventualmente repito o endereço - caso de Perdizes. E espero que rendam mesmo boas histórias que eu possa contar. Até quando, um dia, eu resolver ter casa de novo. Com histórias. Abraço.
ResponderExcluiressa poetica mobilia por onde o tempo passa e se hospeda. esse se espalhar por sobre a geografia dos olhos e coração. e a vida fluindo e pedindo vazão. grande abraço, conterraneo irmão!
Cgurgel
Gurgel,
ExcluirA poesia está onde o olho vê e o poeta escreve, sua arte sem tempo de parar. Abração.
Grande Mestre Heraldo,
ResponderExcluirSe essa rua fosse minha nela haveria, além da padoca, um boteco servindo na caçada arborizada uma bela feijoada raiz de cumbuca ao meio-dia (rsrs) Mesmo que a rua, o gato, a noite perfeita sejam da exímia lavra da sua Bic, a beleza da palavra escrita é que sua mensagem também depende das leituras. Então... através dessa janela consigo vislumbrar imagens para além da garoa de Perdizes.Talvez oriundo da poeira de meus próprios bytes de memória, adivinho um pirralho caminheiro que olhava para os lados e anotava em um caderno tudo o que via pela estrada, depois de consultar o "Pai dos Burros", é claro. E talvez uma cidadezinha do interior, daquelas que tinham passarinho e estilingue, ladeiras, coretos e sinos, entre postes, fios e pipas.
Dia desses li o José Nêumanne Pinto poetando - quem sabe? - sobre o mesmo tema:
“Volta ainda melhor
quem sempre o faz
por um bule de café,
um parco naco de pão
e uma sutil ilusão
de quem só navega
para o eterno retorno,
sempre em busca
da paixão imóvel,
que não muda nem cala,
despedaçado o coração,
só pra depois o colar
caco a caco,
taco a taco,
toco a toco.
Assim são
os caminhos da volta:
sem medo e sem peso,
sem mágoa e sem rota.
Pois na volta
ninguém se perde"
Abração
Caríssimo,
ExcluirPois tem, mesmo na esquina, o tal sujinho com a feijoada famosa - é preciso reservar - ao meio-dia em ponto do sábado, raiz, servida na cumbuca de louça, mesas na calçada, cerveja mofada. E o velho garçom que já sabe do jeito que gosto, mais magra.
Sim, e para estar aqui nas Perdizes, houve muita estrada com lembranças anotadas e rabiscadas, sob a proteção do Pai dos Burros, o primeiro exemplar ganhei no meu aniversário de dez anos, está dito em algum lugar dos 30 CONTOS.
Por fim, apenas digo que ainda não chegou minha hora de voltar, ainda sigo indo, passo a passo, sempre querendo chegar. Talvez seja meu jeito de traçar vários caminhos de volta.
Olá Heraldo,
ResponderExcluirBem vindo! Sempre!
Para encontrar o gato fiel, a padoca cheirosa e os amigos amorosos, a noite paulista com friozinho gostoso depois das outras três estações do dia numa noite de sono e sonhos.
E para nós, que estamos sempre lhe esperando.
E quem sabe, um novo livro nessa sua escrita tão boa de se ler.
Até mais.
Ana,
ExcluirObrigado, aqui me sinto sempre bem-vindo mesmo. São os encontros das letras, como encontrar os amigos improváveis, amorosos porque a vida ensinou esse truque que facilita o movimento das engrenagens da existência.
A espera me honra e faço estoque de papel e tinta para um novo livro, filho do pensamento que vira palavra que se escreve para contar coisas que viram verdade quando alguém lê. Até mais.
Querido Heraldo,
ResponderExcluirAdoro essa sensibilidade que nos faz sentir a emoção que não é nossa.
Bj
Querida Ritinha,
ExcluirObrigado. Seja bem-vinda a este boulevard de letras e gente boa. Beijo.