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29/11/2018

O menino

Jackie Coogan no filme "O Garoto"  de Charles Chaplin (imagem Chaplin Productions)

Heraldo Palmeira
Saí da garagem do prédio do escritório e tomei o asfalto. Para variar, o trânsito estava ruim, como todos os dias. Paciência! Era melhor não ter pressa, para poder chegar em paz em casa. Segui naquele cortejo que encurrala a vida. Não havia o que fazer além de ligar o rádio do carro.
Fiquei pensando que nunca me separei do menino que vive em mim desde a infância. Tenho com ele uma convivência pacífica. Evito que sua inocência sofra com as dores da vida adulta, para que não perca a pureza de que precisamos lançar mão em alguns momentos. E sempre fico a sós com ele se preciso de ajuda, porque fala coisas que não sei dizer, enxerga saídas que não encontro.
Talvez seja difícil acreditar, mas é esse menino interior que me ajuda a manter a serenidade e a firmeza em situações incomuns. Talvez por que ele seja um sonhador, um sujeitinho de bem com a vida que deu de enxergar sempre um passo adiante. E cada vez mais confio nele, inclusive meus segredos – até aqueles que eu gostaria de esquecer.
Havia uma multidão diante da matriz da minha cidadezinha. Era festa da padroeira, missa campal de encerramento, gente vinda de várias cidades, das redondezas e mais alhures - tem quem calcule vinte mil pessoas todos os anos, naquele dia.
De repente, um menino raquítico, assustado rompeu a área reservada, subiu em desespero a escadaria central do átrio, chorando aos gritos e foi direto na direção do bispo que presidia a celebração. Mas driblou o sacerdote e seus auxiliares, e seguiu para dentro da matriz vazia.
Agi por impulso e fui atrás. Ele procurava a mãe. Descalço, sujo, cansado, apavorado. Estendi os braços e ele veio sem titubear.
Comecei a falar baixinho no ouvido dele, palavras de acalmar. Foi se deixando aceitar naquela nova situação, só queria amparo. Eu, homenzarrão, querendo chorar minha paternidade revivida naquela criaturinha. E ele me apertava com carinho, confiante, seguro. Passo seguinte, deitou a cabecinha no meu ombro, entregue, calmo.
Saímos da matriz assim, direto no altar solene daquela festa. Percebi que todos os olhares nos acompanharam, enquanto fomos para a lateral conversando ao pé do ouvido. De imediato, principalmente as mulheres me cercaram prontas para ajudar – o sentido de maternidade é algo fantástico!
Todos tentávamos arrancar do menino alguma informação que pudesse nos ajudar a encontrar seus familiares. E ele permanecia agarrado ao meu pescoço recusando qualquer outro braço que se apresentou.
Um dos coroinhas me avisou que na base da escadaria central, diante do altar, havia uma moça se dizendo tia do menino. Lá fomos nós conversando, mas ele recusou os braços que ela estendeu. Disse baixinho no meu ouvido que não queria ir e pareceu sentir medo.
Fui tomado pelo dilema de entregar uma criança desconhecida a outra desconhecida. E voltamos para o ponto anterior, cercados pelas mulheres aflitas. Corria a missa e logo eu teria funções na liturgia, na hora de conduzir com a equipe o andor com a imagem da padroeira para dentro da matriz.
Começamos a cogitar chamar as autoridades, até que alguém deu uma pista, o menino era de uma família de moradores de um sítio perto da cidade. E a moça voltou, desta vez trazendo uns chinelos na mão. Eu perguntei ao menino se eram dele, confirmou balançando a cabeça. Desci-o para o chão, os calçados serviram perfeitamente, como revivendo o conto de Cinderela no masculino e em pleno sertão do Nordeste.
Ele já estava mais calmo, aceitou ir com a moça. Ela nos explicou quem era a mãe e todos nos lembramos de tê-la visto por ali, momentos antes de a celebração começar. Quando tudo parecia bem, chegou a hora de nos despedir. O menino ergueu os bracinhos, queria meu colo, recusava ir embora. Como não me curvei para pegá-lo, agarrou-se à minha perna, irredutível.
Tomei-o novamente nos braços, saímos do assédio das pessoas e conversamos um pouco. Falei palavras brandas – acho que ele nunca ouviu isso de nenhum homem da família, muito menos de alguém do meu tamanho, de uma voz grave. Parou de soluçar e prometeu que iria com a tia, mas combinamos nos reencontrar dali a um ano, novamente na festa da padroeira. Ele apenas concordava com movimentos de cabeça, incapaz de entender o hiato do tempo.
Voltei à realidade engarrafada pela fuligem dos automóveis quando o locutor anunciou três tempos dos Secos & Molhados, retirados daquele disco lendário com as cabeças servidas de bandeja na capa.
Leve, como leve pluma
Muito leve, leve pousa
Na simples e suave coisa
Suave coisa nenhuma
Que em mim amadurece
Não sei se o menino vai lembrar do nosso compromisso, mas estarei lá conforme combinado. E meu braço, envelhecido mais um ano, ainda parecerá firme para ele.
Andei mais um pouco quase sem sair do lugar, ilhado naquele mar de carros na região de hospitais e cemitérios, estranha e premonitória conexão da metrópole nos dois lados da grande avenida. Como se ao destino bastasse apenas atravessar a rua para estar finado. E as rosas já estavam ali mesmo, entupindo barracas, fingindo enfeitar o cortejo urbano.
Dois semáforos adiante, um rapazola magérrimo perambulava entre os carros. Tinha um sorriso e uma esperança incompatíveis com aquela realidade. Arrisquei abrir o vidro e assumi os riscos, e em pouco tempo ele desistiu de tentar outros carros. Ficamos conversando, meu corpo dividido entre o ar refrigerado vindo pelo lado direito e o calor poeirento entrando da rua pelo lado esquerdo.
Seguimos ele e eu, esforço mínimo sobre o asfalto. Passo a passo (para ele) e metro a metro (para mim) – o conforto do câmbio automático, apenas pisar e soltar levemente o pedal do freio. Um leve chuvisco, mas ele quis seguir, os respingos molhando seu corpo e o meu braço. Fiquei pensando se deveria convidá-lo a entrar para seguirmos a prosa, mas confesso que aquela foi uma das primeiras vezes que fiquei sem resposta para uma dúvida. Até o meu menino da infância se absteve de opinar.
O rapazola me disse que tinha sido expulso de casa quando resolveu assumir sua homossexualidade. O masculino do pai ameaçou de morte, o feminino da mãe esvaiu-se em pranto. Ela morreu pouco depois, ele acha que de desgosto pela separação forçada. Era filho único. Perdeu a escola cara. Caiu nas ruas. Sem destino, sem sentido. Sem medo porque não havia mais o que perder. Espaço vazio para qualquer temor.
O chuvisco parou. Eu tentei chorar apenas com o olho direito, para não ser visto em lágrimas. Pendi um pouco a cabeça para o lado direito, como se a lei da gravidade pudesse ajudar ali. Ele tentou com o esquerdo, pois caminhava lado a lado, com a mão posta sobre a porta do carro como quem sonha lançar âncora. Resolvemos liberar os olhos centrais, o meu esquerdo, o direito dele. Fazia mais sentido. Chorar pleno às vezes faz bem.
Eu não sei dizer
Nada por dizer
Então eu escuto
Se você disser
Tudo o que quiser
Então eu escuto
Fala
Se eu não entender
Não vou responder
Então eu escuto
Eu só vou falar
Na hora de falar
Então eu escuto
Fala
Ouvimos a música em silêncio. “Eu adoro esses caras, eram de outro planeta” – ele disse ao fim, com autoridade. Apenas balancei a cabeça, concordando.
Eu ia dobrar à direita no próximo semáforo, na esquina final do cemitério, ficar livre daquele cortejo quase fúnebre. Dei a ele um dinheiro maior para ajudar, sem atribuir valor. Não tinha preço aqueles minutos em que dividimos o mesmo mundo. Nos despedimos ali, com um aperto de mão firme, prometendo outra conversa qualquer dia naquele engarrafamento eterno.
Fiquei olhando-o ir embora, cada vez menor no retrovisor. Acionei o vidro elétrico e fechei meu mundo novamente. Olhei aquele painel enorme, couro e madeira gritando que nada tem valor absoluto. Tudo tão claro, um desânimo, uma carga de interrogações.
É claro que eu não poderia ignorar minha história, mas gostaria de saber porque fui eu quem achou o caminho para estar dentro do carro e agora me sentir absolutamente incapaz de fazer algo melhor.
A avenida que tomei estava calma ladeira abaixo, poucos carros, sem ninguém nas calçadas escuras. Um mendigo juntava porcarias pelo chão, um cachorro lúdico abanava o rabo para ele. O encontro quase suicida de quem não tem para onde ir e faz da rua um destino, e acha os seus que não são de ninguém. E seguem porque o jeito é seguir. E seguimos pois não há outro jeito de escapar.
A voz do locutor avisou que os três tempos estavam chegando ao fim e anunciou a última música.
Pensem nas crianças mudas, telepáticas
Pensem nas meninas cegas, inexatas
Pensem nas mulheres, rotas alteradas
Pensem nas feridas como rosas cálidas
Mas, oh! Não se esqueçam da rosa, da rosa
Sem cor, sem perfume, sem rosa
Sem nada
Pensei no menino em meu colo seguro. Pensei no rapazola pouco mais que um menino que já não cabia nos meus braços inseguros. Pensei no mendigo e seu cachorro fuçando porcarias que talvez eu mesmo tenha jogado pela janela. Pensei em mim incapaz de fazer algo melhor do que dirigir, ouvir e calar. Sem coragem para desligar o ar-condicionado e abrir os vidros em busca de ar. Sem nada para dizer. Sem ninguém para me escutar. Sem rosa. Sem nada!
Comecei a contar os minutos para chegar em casa e ficar a sós com o meu menino da infância. Tínhamos muito o que conversar.

Trechos de:
Amor (João Apolinário-João Ricardo)
Fala (João Ricardo-Luli)
Rosa de Hiroshima (Gerson Conrad-Vinícius de Moraes)


8 comentários:

  1. 1) Belo texto do Heraldo, me fez lembrar muitas coisas, desculpe se não gostar das minhas interpretações:

    a) O menino na Igreja me fez lembrar do Menino Jesus de Praga e que, digamos, você teria essa bênção.

    b) O seu lado humanista, ante as contradições sociais de nossa terrível realidade econômica, os disparates, uns praticamente sem nada...

    c)Lembrei que você pode ser da Falange das Crianças (eu sou dessa falange)na Umbanda são pessoas que se identificam com os Espíritos de crianças. Na verdade, uma onda de energia que caracteriza essa faixa etária, pois quando crescemos temos outras ondas energéticas.

    d) A sua sensibilidade musical vivenciou os momentos com o rapazola no trânsito e com o mendigo.

    e) Por fim, deduzo que você é médium, todos somos um pouco, uns mais outros menos, somos seres sensitivos e esta sensitividade vez por outra aflora.

    2)Desculpe pelas interpretações, mas esta é a beleza da Literatura, a partir de uma crônica bem pensada e bem elaborada, cada um viaja pelos sentimentos e emoções.

    3) Abraços de bom final de semana.

    4)E ainda tem a interpretação psicológica, fico por aqui, pois não é a minha área.

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    1. Heraldo Palmeira02/12/2018, 22:14

      Antonio,
      Grato por sua leitura. Não há o que dessculpar.

      Não entendi muito bem a relação que você fez com o Menino Jesus de Praga, cuja devoção conheço da casa materna e cuja igreja visitei recentemente, em Praga.

      Não compreendi o episódio com toda essa profondidade que seus conhecimentos religiosos permitem, apenas me vi numa situação de tentar ajudar uma criança que estava perdida e desorientada. E o menino da infância a que me refiro é apenas uma lembrança dos meus tempos da infância, que sempre me vêm à mente como uma época de tranquilidade, onde era possível ver as coisas com mais ternura e simplicidade. Então, hoje, nas aflições, tento buscar esses sentimentos para tentar encontrar as melhores saídas.

      No mais, continuo achando que sou apenas um rabiscados das histórias que acontecem ao meu redor. Que já é muito, uma felicidade que a vida me concede. Abraço.

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  2. Lea Mello Silva30/11/2018, 09:35

    Me despertou lembranças boas e ruins
    E aprendi com vc o valor das nossas memórias
    E vc sempre colocando as musicas é muito interessante
    Obrigada e um abraço

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    1. Heraldo Palmeira02/12/2018, 22:16

      Lea,
      Esses episódios cotidianos podem ocorrer a qualquer um, daí suas lembranças. A música, que faz parte da minha vida de forma visceral, é trilha sonora da vida, eterniza tudo. Obrigado.

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  3. Olá Heraldo,
    Outro texto comovente.
    Como é bonito ver você colocar no papel, como pequenas construções (casinhas do meu fazer),esses sentimentos seus e outros que lhe são oferecidos. Momentos dádivas que você vive sem medo e sem pudor. E tem de volta o calorzinho talvez sujinho e fedidinho dessa criança sem chinelos com os braços ao seu redor.
    Ou caminhar lado a lado, a pé e de janela com vidro aberto, o rapazola pouco mais que um menino, que em uma eternidade de minutos coloca a vida a seu dispor.
    E o olhar dolorido por ter visto um mendigo suicida e seu cachorro lúdico.
    Só posso não dizer mais nada para emprestar de você esses pensamentos e passar com eles o resto do dia.
    Até muitos mais.

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    1. Heraldo Palmeira02/12/2018, 22:19

      Ana,
      Sou um vivente e, como tal, aprendo todos os dias a entender melhor tudo isso. Daí, a falta de medo e de pudor a que você se refere. E tudo isso vale pelas voltas, sempre melhores do que a gente imagina. São os pensamentos que nos ocupam e, muito mais, nos fazem crescer. Até muito mais.

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  4. Moacir Pimentel01/12/2018, 11:25

    Mestre Heraldo,
    Muito obrigado pela bela leitura da sua “paternidade revivida” diante das ”crianças mudas. Nas suas pretinhas tremeluzentes o menino sempre disse presente! em alto e bom som. Imagino que o reconheço com facilidade porque também tento cuidar do meu do lado de cá (rsrs)
    Fazer o quê diante da miséria do mundo? Cada um de nós responde como pode a essa pergunta irrespondível. Você é capaz de observar, sentir e escrever depois de ter escutado.
    “A maioria das pessoas nunca escuta.”
    Para tocar melhor a vida talvez tenhamos mesmo que botar para conversar, dentro de nós, os nossos moleques “sem perícia” e os nossos “velhinhos em formação“ sem noção.
    https://www.youtube.com/watch?v=G9RS2BkbqHw
    Abração

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    1. Heraldo Palmeira02/12/2018, 22:27

      Caríssimo,
      Sim, o menino da infância vive lambuzado de tinta ao redor do papel dos meus rascunhos, já que me ajuda a enxergar o mundo. Sorte de quem, como nós, pode contar com esses danados. Que, pelo menos, nos ensinam a escutar - verbo e prática muito mais poderosos do que falar, talvez, exatamente, porque não emitam sons, tenham o silêncio como princípio.

      Sim, os dois estágios do mesmo homem ficam ótimos com a música, com a força lúdica do assobio que anuncia a voz de Deus cantando que o menino dá a mão na hora dos apertos, inclusive quando "o adulto fraqueja". Temos dito. Abração.

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