Retrato de Vasco da Gama em edição dos Lusíadas (imagem Domingos Ferreira) |
Domingos Ferreira
DESVELAMENTO
Moçambique
foi o primeiro porto onde entraram. O Sultão os recebeu muito bem, por
julgá-los muçulmanos, e prometeu-lhes dois práticos para levá-los até a Índia.
Contudo, ao serem identificados como cristãos, foram obrigados a sair de lá, atirando
contra a cidade.
A escala
seguinte foi em Mombaça, poucos dias depois. Cautelosos, fundearam longe do
porto e enviaram mensageiros à terra, onde a população moura se mostrou arredia.
Ao contrário, o regente local lhes enviou boas-vindas, com muitas promessas.
Vasco, temendo uma cilada, partiu para Melinde, a um dia de viagem.
Foram muito
bem recebidos no novo porto, apesar de a população ser indiana muçulmana. A
cidade era o principal centro comercial daquela costa, acostumada a conviver
com estranhos. O rei de Melinde fez questão de vir a bordo, curioso sobre a
viagem dos portugueses e interessado em negócios regulares com eles.
Camões
aproveita a oportunidade para inserir, no diálogo entre o regente e Vasco, uma
detalhada descrição da geografia europeia, acrescida de narrativa minuciosa da
História de Portugal, desde as origens até aquele momento. Tudo isso temperado por
uma interação com os deuses do Olimpo e figuras notáveis do Império Romano. Tal
artifício, recorrente no texto, revela-se um dos principais esteios de “Os
Lusíadas”, sublimando toda a fantástica obra do Poeta.
Em consequência
da boa vontade do monarca, os navios foram bem reabastecidos e suspenderam alguns
dias depois, com um prático experiente para levá-los até a Índia, e com a
promessa de ali retornarem na viagem de regresso a Portugal.
Camões
descreve a ocorrência de uma violenta tempestade, por obra de Baco, em seus
últimos esforços para impedir o sucesso dos lusos. Porém, com nova ajuda de
Vênus, os navios de Vasco, após a travessia do Índico, aportaram em Calicute a 20
de maio de 1498. Haviam decorrido dez meses desde a saída de Lisboa.
A sensação
da chegada, sempre vivida intensamente por navegantes de qualquer latitude e época,
é assim descrita:
Tanto que à nova terra se chegaram,
Leves embarcações de pescadores
Acharam, que o caminho lhe mostraram
De Calecu, onde eram moradores.
Para lá logo as proas se inclinaram
Porque esta era a cidade, das milhares
Do Malabar, melhor, onde vivia
O Rei que a terra toda possuía.”
Canto VII, estrofe 16)
Um grupo de
turistas aproximou-se do túmulo de Camões, com um guia falando baixo, em
respeito ao ambiente severo do templo. O Almirante, arrancado de seus
devaneios, afastou-se do poeta e retornou a Vasco da Gama, retomando o diálogo com
o passado.
Os navios portugueses
permaneceram cerca de três meses em Calicute. O maior impacto para os lusos foi
o elevado grau de desenvolvimento da região, povoada por indianos e muçulmanos,
em convivência pacífica. Os cristãos eram raros, apesar de os tripulantes
terem, no início, confundido as imagens budistas com as de santos católicos. O sistema
de castas também os chocou, apesar de virem de um país com imensas e
consagradas diferenças sociais.
Da parte dos
visitantes, ressalte-se a má condição dos marujos em seus poucos navios,
duramente castigados pelo mar. As roupas gastas, o abatimento físico dos homens,
os aparelhos dos mastros danificados eram visíveis da praia, apesar da distância
dos navios ancorados, por inexistência de cais, regra geral na época.
Vasco da
Gama foi à audiência com o Samorim, soberano da região do Malabar, incluindo as
cidades de Cochin, Cananor e Chale. Acompanhou-o o Catual, governador de
Calicute, que o recebeu com pompas, na praia da cidade. Era o momento mais
importante da viagem.
Para tanto, sem
banho havia meses, o navegador português vestiu sua grossa roupa cerimonial, com
capa e chapéu de plumas, adequados ao clima europeu, e enfrentou o bárbaro calor
da época pré-monções. Foi seguido pelos portugueses mais representativos e um
mouro, chamado Monçaíde, nascido no Marrocos e morador da cidade, contratado
como intérprete.
O encontro
se deu no luxuoso palácio do Samorim. Gama iniciou o diálogo descrevendo-lhe o
reino de Portugal, de onde viera, e exaltando os feitos do seu povo, inclusive a
longa e penosa viagem até ali. Em seguida, em nome do Rei D. Manuel I,
transmitiu ao Samorim o interesse de seu soberano em firmar laços de amizade e
cooperação entre os reinos, incluindo eventual apoio militar.
Esses
entendimentos deveriam ser coroados com intercâmbio comercial regular entre eles,
pela rota recém-percorrida por seus navios. Finalmente, entregou ao indiano os
presentes que D. Manuel I lhe enviara, os quais não impressionaram o regente,
nem os membros da corte. Assim é descrito o momento histórico:
Tal embaxada dava o Capitão,
A quem o Rei gentio respondia
Que ver embaxadores de nação
Tão remota, grão glória recebia;
Mas neste caso a última tenção
Com os de seu conselho tomaria,
Informando-se certo de que era
O Rei e a gente e terra que dissera.
(Canto
VII, estrofe 64)
Os
portugueses foram alojados no palácio e celebraram-se festejos em sua honra,
noite adentro. Ali permaneceram nos dias seguintes, enquanto o Samorim
aguardava as informações que mandara levantar a respeito das afirmativas e propostas
de Gama.
Nesse
processo, Monçaíde foi objeto de longos interrogatórios sobre suas origens. O
Catual visitou os navios, fundeados a uma distância cautelosa da cidade, sob
comando de Paulo da Gama. Ele foi recebido com trombetas e tiros de canhões,
para impressionar os nativos. Travou-se, então, um longo diálogo entre o Catual
e Paulo, quando este exaltou os feitos portugueses.
Esses fatos
despertaram a curiosidade da população e a notícia da presença dos portugueses
correu o Malabar. A nova alarmou também os mouros, operadores no Mar da Arábia,
e deste para a África, Oriente Médio e Mediterrâneo, via Mar Vermelho e Golfo
Pérsico. Já os comerciantes indianos viram nos lusos uma opção para escapar desse
monopólio.
Os catuais
das diversas cidades do Malabar, bem gratificados pelos navegadores locais, pressionaram
o Samorim, em Calicute, para não aceitar qualquer negócio com os intrusos cristãos
europeus. O mesmo ocorreu com os conselheiros do monarca e, com os sacerdotes hinduístas,
vaticinando maus agouros para as tratativas com os portugueses. Camões mostra a
difícil situação do Rei:
Diversos pareceres e contrários,
Ali se dão, segundo o que entendiam;
Astutas traições, enganos vários,
Perfídias, inventavam e teciam,”
(Canto VIII, estrofe 52)
O Samorim
via algumas vantagens nas propostas lusas, e temia que o Catual da próspera Cochim,
com pretensões à independência, pudesse se aproveitar delas. Então, protelou as
decisões, retendo Vasco e seu cortejo no palácio. Em paralelo, o Catual de
Calicute passou a criar dificuldades, de toda ordem, para os navios lusos.
Vasco e
Paulo da Gama começaram a se comunicar por bilhetes. Preocupados em reabastecer
os navios e obter amostras das cobiçadas especiarias, resolveram transportar,
em seus próprios batéis, tapetes e tecidos portugueses para negociar no mercado
geral da cidade. Tal medida despertou o interesse de comerciantes indianos, que
passaram a freqüentar os navios.
Gama teve
notícia de um comboio mouro que, em breve, chegaria a Calicute. Ele incluía
navios armados e era oriundo de Jedá, no Mar Vermelho. Isso forçou Vasco a
buscar um entendimento definitivo com o monarca. Camões deixa de lado o Olimpo
e descreve a dura realidade, assim falando o Samorim:
Eu sou bem informado que a embaxada
Que de teu Rei me deste, que é fingida;
Porque nem tu tens Rei, nem pátria amada,
Mas vagabundo, vais passando a vida.
(Canto VIII,
estrofe 62)
E critica os
presentes recebidos, de pouco valor:
E, se de grandes Reinos poderosos
O teu Rei tem a régia majestade,
Que presentes me trazes valorosos,
Sinais de tua incógnita verdade?
(Canto VIII,
estrofe 6)
Ao que
responde Vasco da Gama:
Porque, se eu de rapinas só vivesse,
Undivago ou da pátria desterrado,
Como crês que tão longe me viesse
Buscar assento incógnito e apartado?
Por que esperanças ou por que interesse
Viria exprimentando o mar irado,
Os Antárticos frios, e os ardores
Que sofrem do Carneiro (2) os moradores?
(Canto VIII,
estrofe 67)
Os
desentendimentos causaram grande preocupação a Vasco, literalmente preso no
palácio. Além disso, qualquer pedido de apoio ao Catual era condicionado a
exigências para os navios fundearem mais perto da cidade, causando suspeitas da
intenção de abordá-los.
Tal situação
chegou a um impasse quando o Catual mandou prender os lusos no mercado e
apreender-lhes as mercadorias. A reação de Paulo foi reter a bordo alguns comerciantes
indianos de prestígio. Isso provocou a liberação de Vasco e acompanhantes do
cativeiro no palácio, com um pedido de desculpas do Samorim. Seguiu-se a troca
dos reféns e a devolução das mercadorias apreendidas. Não havia mais ambiente
para permanecerem no porto.
(Continua)
Prezado Domingos,
ResponderExcluirEu LOUVO a sua iniciativa de conversar tão bem e detalhadamente sobre esse poema épico “ sacrossanto” da lavra de um gênio que se foi “da lei da morte libertando” ao resumir o patriotismo da “ocidental praia lusitana” e oferecer “novos mundos ao mundo” nos seus versos tão pouco conhecidos. Posso bem imaginar o “trabalho insano” que foi ler, anotar, pesquisar e teclar essa viagem épica, até porque ando às volta com uma aventura parecida sobre um bardo de nome William. Complicado! Enquanto a gente tecla vai se perguntando mesmo se vale a pena. Acho que que sim!
Más notícias e besteirol e fake News são as nossas paisagens circundantes e, portanto, mais do que nunca é preciso olhar para trás e saber o que feito de belo e bom por esse mundão afora, por caminhos que desconhecemos no quais se esconde aquela esperança: “um não sei quê, que nasce não sei onde, vem não sei como ”, um artigo tão em falta no mercado.
Você terá , espero, oportunidade de ler, com que emoção eu me deparei na Índia - mais precisamente em Goa - com pegadas lusitanas como, por exemplo, as carnes “vindaloo” - de vinhas d’alho, é claro! - uma bela de uma galinha à cabidela e até mesmo um “sorpotel”, primo legítimo daquele alentejano e hoje nordestino sarapatel. Nem a alegria que foi fotografar uma senhorinha de sari fazendo renda de bilro –pasme!– na ilha de Sri Lanka. É nessas horas que a gente apreende que a nossa brava espécie tornou o planeta pequeno e que dele, por inteiro, somos cidadãos.
Obrigado, parabéns e abração
Amigo Moacir
ExcluirMuito obrigado por "LOUVAR" este texto, pelo qual tenho grande apreço por seu significado narrativo e carga simbólica. É uma das paixões do acervo que acumulei com as histórias que cometo...
Esta segunda parte tem uma conotação burocrática, devido à própria razão da viagem. Camões, por necessidade, descreve o cotidiano dos conflitos gerados com a presença dos intrusos navios portugueses, que viriam a alterar, para sempre, o comércio e as relações políticas da região e alhures.
Na última parte do texto, que se segue, o bardo, enlevado pelo sucesso da missão de Vasco da Gama, levanta vôo de forma espetacular e vai até o Olimpo, em merecida celebração. Além disso, descreve fatos abrangendo os sucessos que conduziram os lusos até o Extremo Oriente e ao surgimento de nosso gigantesco Brasil.
Até lá.
Abração
1) O bom trabalho do Domingos Ferreira me fez lembrar de um pequeno livro "As Edições de Os Lusíadas", de Rolando Monteiro, publicado pela antiga Livraria São José do RJ, em 1973.
ResponderExcluir2) A primeira versão em francês saiu em 1755; em inglês 1655; em italiano 1658; em alemão 1780; espanhol 1580; latim 1622; russo 1788; sueco 1852; húngaro 1865; polonês 1790; holandês 1777; dinamarquês 1828; bohemio 1836; árabe 1881; chinês 1942; hebraico 1892; grego 1894 = (pág 44).
3) E uma série de curiosidades, por exemplo; a tradução em italiano que foi feita em 1826, publicada em Paris, foi dedicada à Sua Alteza Imperial Senhora D. Maria da Glória, Princeza do Brasil (com o z da época).
Estimado Antonio
ExcluirMuito obrigado por sua manifestação a respeito deste texto, que deu muito trabalho para escrever, pelo volume e complexidade.
É curioso ver a sequência das edições de "Os Lusíadas", como você indica. No início, sua disseminação ocorreu na Europa, atingindo a China somente em meados do século XX.
Na terceira parte, Camões também vai até o Extremo Oriente.
Um abraço fraterno
Domingos
Domingos, mais um belo capitulo da sua trilogia que funciona como uma verdadeira "tradução", muito bem vinda, do épico quinhentista para os ouvidos modernos.
ResponderExcluirO segundo parágrafo do comentário do Moacir resume muito bem a necessidade, nestes tempos complicados em que vivemos , de olharmos para trás e nos lembrarmos de que, em tempos para eles igualmente difíceis, nossos antepassados saíram das fronteiras de seu pequeno país à beira do mar para descobrir para nós os caminhos do mundo. E de guardarmos a esperança de que ainda somos capazes, descobertos os caminhos desse pequeno e solitário mundo em que vivemos, de navegarmos também os caminhos nos mares mais altos e mais rarefeitos que nos separam, ainda, dos outros mundos.
Amigo Mano
ExcluirDe fato, estamos precisando encontrar novos caminhos e essa busca tem que ser feita com "engenho e arte", como fizeram Vasco da Gama e tripulantes nos precários navios. Desde a derrubada das torres em Nova York que o mundo está sem rumo, pela desorientação com que os EUA reagiram . Esse episódio coincidiu com o aparecimento da China no cenário, com influência cada vez maior. Além disso, a Russia está se reafirmando como grande ator neste palco, após o esfacelamento da URSS. E a Índia, com todos os seus defeitos, cresce aceleradamente, com armas nucleares e, com certa razão, reclama pedágio pelo uso do oceano com seu nome Índico.
Essa confusão toda vai demorar. E ela se reflete na América Latina, com seu histórico de "quintal" americano, onde a presença chinesa, em $$$$, na América do Sul, já é a maior e cresce a olhos vistos. O que está ocorrendo aqui depende visceralmente do Brasil. Como não podemos chamar os portugueses, precisamos nos acertar com a prata da casa. Temos todas as condições para isso e, basta uma boa dose de bomsenso e um pouco de sorte.
Vamos rezar...
Abraço fraterno.
Domingos
Prezado Autor Sr. DOMINGOS FERREIRA,
ResponderExcluirTambém louvo Vossa II Parte de " Os Lusíadas - Uma viagem pelo Tempo II", tão bem escrita e cheia de detalhes interessantes.
Uma das operações mais difícil era o contato inicial de negociações de Comércio. Se o Alm. VASCO DA GAMA e parte de seu Estado-Maior aterrassem para inciar conversações, poderiam ficar reféns e lhe ser exigido como resgate a pequena frota de Guerra Portuguesa de 3 Unidades.
Se o Almirante e parte do seu Estado-Maior ficasse embarcado, como seria mais seguro, as negociações perderiam em importância.
Ressalte-se então a grande coragem do Alm. VASCO DA GAMA, com pequeníssima Esquadra, ter cumprido a Missão e ter voltado são e salvo.
Já a esquadra do Alm. PEDRO ÁLVARES CABRAL que veio em seguida, tinha 12 Navios de Guerra, era bem mais imponente.
As demais Esquadras que aportaram nas Índias eram maiores ainda, facilitando as Operações a SEGURANÇA do Alm. e Estado-Maior.
Como foi grande e CORAJOSO o Alm. VASCO DA GAMA.
Obrigado, Parabéns e Abraços.
Amigo Bortolotto
ExcluirA missão recebida do Rei por Vasco da Gama, além dos percalços no mar, era muito espinhosa também em terra, como fica claro nesta segunda parte. Além de notável marinheiro, ele era bom negociador e Camões ressalta isso.
Na terceira parte, o bardo amplia o relato louvando os heróis e traz várias citações sobre novas conquistas de Portugal ao longo do século XVI, incluindo o Brasil.
Um abraço agradecido.
Domingos
Olá Domingos,
ResponderExcluirEstou gostando cada vez mais da sua aventura marítima literária. Espero curiosa a terceira parte, triste por ser a última.
Até então.
Estimada Ana
ExcluirO mar, com seus mistérios, é o ambiente mais belo e adequado para aventuras.
A terceira parte sacramenta isto.
Até lá.
Domingos
Estimada Ana
ExcluirO mar, com seus mistérios, é o ambiente mais belo e adequado para aventuras.
A terceira parte sacramenta isto.
Até lá.
Domingos