O dono do jogo (imagem AFP/SCANPIX, Malmö, 1960) |
Domingo especial em dezembro de 1971. O Brasil ganhara a Copa do
México ano e meio antes, com aquele show de futebol de uma das melhores
seleções de todos os tempos. O clima daquela campanha memorável ainda dominava
o país. Pelé, na plenitude do seu reinado, jogaria ali pela primeira vez, num
amistoso contra um clube local.
A cidade estava em festa depois de dias de preparativos. Como o
estádio era pequeno, colocaram “cadeiras especiais” atrás do gol – ingressos
mais caros, disputados a tapa, mesmo com o risco de levar uma bolada na cara ou
cair no bolo de jogadores nalguma trombada na região da linha de fundo.
O pai zeloso adorava aquele filho, que se vestiu a caráter com o
uniforme do time local, em vermelho e branco, bandeirola com escudo à mão.
Sentariam naquele lugar VIP no gramado, veriam o jogo quase jogando. Mal haviam
terminado o almoço e já estavam de saída, apesar de o jogo da bola estar
marcado para o finalzinho da tarde. Uma multidão rumaria para o estádio e era prudente
chegar cedo, garantir lugar mesmo com ingresso caro à mão. Sabe-se lá!
O menino, impaciente, já estava na calçada. O tio querido chegou e
cochichou alguma coisa em seu ouvido, sem que o pai percebesse, ocupado que
estava em manobrar o carro para fora da garagem.
O pequeno torcedor era já leitor – gibis Disney, revistas Recreio, Placar e Realidade – e achou
aquela conversa estranha, pois jamais vira qualquer referência ao que ouvira
ali. Confiava demais no próprio tio, mas quis ter certeza:
– Tio, o senhor tem certeza?
– Claro. Pode perguntar a ele – respondeu o homem, convicto.
O carro partiu com o rádio ligado numa emissora que transmitiria o
jogo, locutores, comentaristas e repórteres já em completo alvoroço. E o menino
seguiu mais calado do que de costume, repassando na memória duas lendárias matérias
de capa da Realidade, que o pai
colecionava e ele havia lido com grande interesse – porque adorava Pelé.
A da edição número 1, cuja capa foi produzida na Argentina
aproveitando uma visita do Santos para uma série de apresentações. Cenário
montado, o repórter da Realidade Sérgio de Souza vira-se para Pelé e avisa:
– Vai começar, crioulo, abra o sorriso!
Diante daquele sorriso perfeito, espetacular – tempos sem politicamente
correto nesse molde exagerado atual –, o fotógrafo portenho bateu as primeiras
trinta e seis das noventa e duas poses do ensaio sem ter colocado o filme na
câmera, de tão emocionado por estar cara a cara com o mais fotografado dos
brasileiros.
O Negão que imortalizou a camisa 10 de todos nós aparecia com um busby na cabeça, um daqueles chapéus
peludos usados pelos guardas da rainha Elizabeth. A matéria traduzia nossa
esperança de ganhar o tri na Copa da Inglaterra. Lançada em abril de 1966, a
revista esgotou em três dias e a capa foi reproduzida semanas depois em página inteira
da renomada Paris Match.
Nosso time era ruim, Pelé foi caçado em campo por búlgaros e portugueses
e nós sumimos em campo sem ele e com um Garrincha em indisfarçável decadência.
Chegamos lá como favoritos e voltamos para casa mais cedo.
A da edição 58 trazia uma previsão de como seria Pelé aos 50 anos,
grisalho, de bigode e com uma bola de futebol em cada mão. Na direita a famosa
Carijó da Copa de 1970 – a primeira bola a ganhar um nome de batismo para uma
copa e denominada oficialmente Telstar, para homenagear o satélite que permitiu
a transmissão dos jogos do México para a Europa. Na esquerda uma pelota anônima
recoberta de cédulas prevendo sua fortuna.
Pai e filho chegaram antes da uma da tarde às cercanias do pequeno
estádio já animado pelo fluxo de torcedores, verão inclemente, o sol a pino.
Enfrentaram a fila que saracoteava ligeira diante dos portões e em poucos
minutos estavam acomodados atrás do gol, naquelas velhas cadeiras de ferro e flandre
usadas nos bares (com marcas de cervejas no espaldar), traseiros pegando fogo
pela quentura do sol acumulada no metal. Sem contar a visão tracejada pelo
emaranhado da rede branca, alvíssima, que veriam balançar mais tarde. Desconfortos
ínfimos ante a possibilidade de reverenciar o maior jogador de futebol de todos
os tempos, o rei Pelé.
Mais uma hora e pouco e a delegação do Santos chegou. Alvoroço no
estádio quase cheio, pois os jogadores desceram do ônibus, entraram pelo portão
de serviço na rua dos fundos e cruzaram todo o campo. Passaram ao lado de pai e
filho, o menino mesmerizado com a imagem do rei caminhando a poucos passos
dele.
O pai, que frequentava o mundo do futebol local, conseguiu acesso
ao ambiente dos vestiários. Diante do titã negro, o menino não perdeu tempo:
– Pelé, você conhece tio Tota?
O Negão, famoso pela forma carinhosa com que tratava qualquer fã,
ainda mais as crianças, olhou aflito para o pai também aflito e, em resmungos
disfarçados, perguntou baixinho a quem estava ao redor se Tota era algum
jogador local.
Diante do aperreio e da negativa do pai do menino por meneio de
cabeça, e do silêncio sepulcral que se instalou, o rei, desarmado por esse
zagueiro imaginário invencível, ficou na marca do pênalti, parado naquela sua
paradinha famosa. E como a resposta não saía, o menino, irritadíssimo, deu as
costas e não deixou barato, foi saindo aos resmungos:
– Ah, você nem lembra de tio Tota!
Ali, o rei Pelé, acostumado a receber afago de reis, rainhas e
maracatus de toda espécie, perdeu cetro e coroa no reino do futebol daquele
menino decepcionado com seu ídolo. Ora, afinal era o velho e bom tio Tota. Como
é que aquele sujeito não lembrou dele?
Até o meteórico Deodato Dantas, velho e folclórico fotógrafo
sempre vestido em conjuntos cinzas ou azuis de mescla Renaux, que apesar da
idade dava piques descomunais para não perder nenhum flagrante e agitava a
torcida com suas correrias, sequer conseguiu apontar a câmera! O menino já
estava longe e não quis saber de autógrafo ou foto de recordação.
O jogo encantou a torcida e o time local abriu o placar. A dez
minutos do fim do primeiro tempo, Amorim estufou a rede na cara do menino e do
seu pai, ambos emburrados com a cena do vestiário – cada qual com seu motivo. Mas
festejaram. Nove minutos depois, o espetacular Edu balançou a rede do outro
lado do campo e empatou o jogo. O menino desviou o olhar para a lateral quando
Pelé passou a caminho do vestiário. E repetiu o gesto de desprezo quando as
equipes retornaram para o segundo tempo.
Por azar, na troca de campo, o menino teve de conviver um segundo
tempo inteiro com o Negão sempre rondando o gol diante do seu nariz. Foi
difícil evitar cruzar o olhar. Foi difícil não se encantar com aquele jeito
único de jogar bola. Foi difícil conviver com o perigo iminente de gol naqueles
quarenta e cinco minutos finais, como se aquela trave estivesse sub judice, à mercê de uma sentença do
rei.
E ela veio. O juiz deu um minuto de acréscimo, o suficiente para o
Negão balançar a rede do time do menino e do pai, a bola tirando fino nas
ventas dos dois depois de vencer o goleiro. O Santos venceu o jogo, 2x1.
Resultado suficiente para aumentar o mau humor dos dois. A bandeirola com
escudo do time local ficou esquecida no gramado, debaixo das cadeiras especiais
de ferro e flandre. Quem lembra se havia alguma logomarca de cerveja?
Em casa, o pai quis saber do menino que diabo de história era
aquela. O moleque contou em detalhes.
– Tá indo pra onde, meu filho?
– Ver o jogo do América com o Santos. Pelé vai jogar!
– Se você encontrar o Negão, diga que mandei um abraço pra ele.
– E você conhece Pelé, tio Tota?
– Claro! Fui eu que ensinei ele a jogar bola. No colégio. Ele nem
levava muito jeito, mas insisti e ele terminou aprendendo.
– Onde foi isso?
– Em Caicó. A gente chamava ele de Charuto. Mas não chame de
Charuto, pois ele não gosta, não.
Pelé experimentou, provavelmente pela primeira e única vez, o
desinteresse de um menino que conseguiu a proeza de estar ao seu lado num
ambiente puro do futebol. O pai e Deodato já foram embora daqui. O filho é
homem de meia-idade especialista em fazer amigos e scotch. Pelé nem deve lembrar da “ingratidão” com quem lhe ensinou
o ofício. E tio Tota segue tirando onda com a cara alheia. É da sua natureza.
Dedicado a:
Zé Marinho
Lopes, o pai.
Jenner
Marinho, o filho.
Antônio
Lopes, tio Tota.
Deodato
Dantas, o veloz.
Pelé, o deus
da bola.
1) Boa crônica. Por falar no rei Pelé, que sempre admirei, eu sempre soube que ele era um ser humano 100% gente boa.
ResponderExcluir2) No tempo em que ele era Ministro dos Esportes, no governo FHC, eu lecionava meditação no Instituto de Yoga e Meditação Budista, uma academia aqui perto.
3)Belo dia, a fundadora e diretora, conceituada professora de Yoga, docente em Educação Física e formada em Hatha Yoga, em Nova York, no famoso Sivananda Institute...
4)Me disse que o Pelé era amigo dela, desde Nova York, onde se conheceram, e agora, ela estando de volta ao Brasil, o Rei do Futebol iria fazer uma visita à Academia que ela criara e que por uma série de motivos, já não existe mais...
5) Mas, nesse dia, um sábado, se não me falha a memória, eu me atrasei e o Rei, fez a honrosa visita, mas por compromissos vários teve que ir, eu cheguei logo depois...
6)Mas ficou a gratidão aos dois... à professora de yoga e ao Rei Pelé.
Antonio,
ExcluirA julgar por este causo cujos personagens conheço, imagino o que viveu Pelé em sua glória mundial. Abraço.
Prezado Autor Sr. HERALDO PALMEIRA,
ResponderExcluirParabéns pela bela crônica, envolvendo "artes" do Tio TOTA. O Santos F C dos anos 60' e 70' era um poderoso esquadrão, e não somente por causa do Rei PELÉ, o maior de todos os tempos, mas desde GILMAR no Gol, até EDU na ponta-esquerda.
Grandes Atletas que honraram o nome do BRASIL e encantaram o Mundo Inteiro.
Abração.
Flávio,
ExcluirTio Tota é um gozador nato, um grande sujeito. E o Santos, naquele jogo, já contava com o Cejas no gol, sucessor do lendário Gilmar. E o time jogou assim:
Cejas, Orlando, Paulo, Oberdan e Rildo. Léo e Dicá. Jadir, Ferreira, Pelé e Edu.
O lateral Rildo encerrou sua carreira em Natal, anos depois.
Obrigado pela leitura e comentário. Abração.
Olá Heraldo,
ResponderExcluirEstas estórias são deliciosas!
Mas o Tio Tota...será que o sobrinho adulto perdoou o Pelé?
Até mais.
Ana,
ExcluirSem dúvida, ainda mais pelo inusitado - porque absolutamente verdadeira! Imagine a cara do Pelé solenemente desprezado e, neste caso, sem culpa nenhuma.
Sim, a esta altura, todos estão devidamente perdoados e a história tornou-se ainda mais deliciosa porque só provoca risos. Até mais.
O Brasil teve dois ícones até hoje, duas pessoas que enalteceram o país e povo, excetuando os heróis da Pátria, claro:
ResponderExcluirPelé e Senna.
Apesar do esporte absolutamente diferente que praticaram, ambos se identificavam no talento incomparável, na determinação e vontade de vencer.
Pelé foi um artista da bola, a ponto que até hoje ninguém fez mais gols do que o Rei, além das jogadas de efeito, de mestre, de gênio!
Considerado o Atleta do Século, merecidamente, EU VI O PELÉ JOGAR várias vezes:
A primeira vez foi em 1.961, no Rio de Janeiro, Maracanã, durante o antigo Torneio Roberto Gomes Pedrosa, que era restrito ao Rio e São Paulo.
Flamengo 1, Santos 1.
Pelé fez o do Santos e Silva, notório centroavante, do Fla.
Depois, no final da década de sessenta, quando entraram no torneio RS, PR e MG, assisti Pelé no Estádio Olímpico, do Grêmio, enquanto o Inter terminava de construir o Beira-Rio, em 1.969.
Logo, qualquer artigo que lembra Pelé deve ser aplaudido, pois precisamos reverenciar os nossos ícones, aqueles que nos deram alegria, que nos deixaram boquiabertos com seus talentos, com a sua magia, afora exemplos de caráter e personalidade.
Senna e Pelé foram inigualáveis, e não acredito que surgirão outros talentos semelhantes no próximo milênio.
Quem os viu atuar, participou de um momento na História da Humanidade muito especial e inesquecível, portanto, aplaudo o artigo em tela, pois relembrou o célebre Rei do Futebol, e deixo as minhas reverências para os dois maiores ícones do Brasil em todos os tempos, a meu ver, lógico.
Um forte abraço, Heraldo.
Saúde e paz.
Bendl,
ExcluirPelé é fascinante porque, além de estar anos-luz acima de qualquer outro que se meteu a jogar bola, foi um desbravador, atuou num momento em que o mundo estava descobrindo a maioria dos seus caminhos modernos. Ele floresceu no tempo de outros pioneiros espetaculares, que encantaram, profissionalizaram (nos seus campos) e mudaram o mundo, como Beatles. Não por menos, todos se tornaram heróis do século 20 e interferiram definitivament na vida humana. Abração.
Mestre Heraldo,
ResponderExcluirPonto para a lealdade do Jenner! É isso mesmo: que ingratidão a do Pelé para com o grande Tota. Os tios totas da vida são heróis para serem guardados do lado esquerdo do peito mesmo quando - que bandidos! - contam lorotas ou levam os sobrinhos de cinco/seis anos para passear e se escondem enquanto os moleques, desesperados, vão implorando: tio! Tio! TIO! TIIIIIIIIIOOOOOO! (rsrs)
Agora quanto ao Pelé, dentro do gramados, sem palavras: os números não mentem. A festa começava antes do gol, com ele aprontando a caminho, driblando o time todo, fazendo que ia por um lado e avançando pelo outro , dando um, dois, três chapéus em seguidinho nos caras atordoados. Uma maravilha! Eu não sei as causas da unanimidade do Pelé : se foi a sua história de menino negro e pobre que se tornou o melhor do mundo no seu ofício, se foi o talento descomunal, se foi a simpatia, ou se foi o fato da Copa do Mundo de 1970 ter sido a primeira a ser transmitida mundialmente a cores. Mas o fato é que o homem era um fenômeno global. Tudo bem que o Falcão foi o Rei de Roma e que o Maradona foi o Imperador de Nápoles e que o Messi é o dono de Barcelona. Mas Pelé foi o brasileiro mais conhecido de todos os tempos e apreciado em todas as latitudes, o que não é pouca coisa. Ele foi também o meu segundo passaporte nas décadas de 70 e 80. Não havia país, cidade, deserto, praia, galera e situação difícil que, diante do menção do nome dele, não se desanuviasse, sorrisse e puxasse muuuuita conversa.
Abração
Caríssimo,
ExcluirAté hoje, quando encontro Jenner e tio Tota, o riso é garantido. São, como era também meu saudoso Zé Marinho (o pai) grandes vivedores, desses que aproveitam cada segundo da vida. Por isso, acho que este episódio com Pelé lhes caiu no colo por puro merecimento. E falar do Negão... Abraço.
Heraldo, o tio Tota me lembrou de meu avô materno; não que ele fosse mentiroso, mas, digamos, gostava de enfeitar as suas histórias... Advogado, atrás dos sisudos livros de direito de sua alentada biblioteca escondiam-se livros do Emílio Salgari e do Karl May. Apaixonado pelo Rio Grande, onde tinha visitado amigos estancieiros, contava aos netos histórias emocionantes de caçadas e cavalgadas pelos pampas. Seus "enfeites" nunca fizeram mal a ninguém e animaram nossas infâncias :)
ResponderExcluirMano,
ExcluirTio Tota segue apenas um grande gozador - aliás, um certo "mal" de família. E ainda bem que tivemos na infância velhos queridos sempre prontos a "enfeitar a jogada", para nos encantar ainda mais. Abraço.
Amigo de fé Heraldo
ResponderExcluirPego carona nesse desfile de opiniões e histórias sobre Pelé.O atraso se deve a um período muito triste pelo falecimento de um parente querido. Mas,temos que aceitar e tocar a vida.
Minha experiência com nosso Rei se deu em Shanghai, que visitamos em 1983, eu e Marlene, minha mulher, em uma viagem de circunavegação aérea. Naquela época, a China começava a se abrir para o mundo, e andava de bicicleta, usando túnicas Mao. Os estrangeiros ainda causavam espanto nas ruas e,quando parávamos em algum lugar, éramos cercados por várias pessoas. A curiosidade era tanta que algumas mulheres apalpavam as roupas de Marlene.
Nesse caso,quando paramos os dois para tirar uma foto no belo calçadão que margeia o Rio Amarelo,no centro da cidade, dentre o grupo que nos cercou, havia um cidadão mais velho que arranhava francês. Isso possibilitou um diálogo em que negamos a pergunta de se éramos americanos, afirmando sermos brasileiros. Daí, surgiu uma pequena confusão que indicava a ignorância de onde era o Brasil.
Foi quando me lembrei de falar a palavra mágica: Pelé, enquanto ensaiava uma "embaixadinha". Foi um sucesso. Vários homens passaram a me imitar, complementando com alguns nomes da seleção brasileira, tais como Zicô, Socrátis, Zagalô, etc...
Depois de tirarmos várias fotos com eles, Marlene e eu saímos dali orgulhosos com nosso país.
Um abraço fraterno.
Domingos
Domingos, querido,
ExcluirA sua experiência chinesa repetiu ao redor do mundo, mesmo nos lugares mais remotos, em que citar Pelé era como abrir a porta do acolhimento. Por isso, acho graça quando vejo Maradona acreditando que era digno de nota no panteão onde só cabe o Negão - o argentino não passa de um aprendiz de Rivelino.