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01/04/2018

O chamado

As pedras da fé (fotografia Heraldo Palmeira)


Heraldo Palmeira
A rua do bairro residencial estava ainda mais quieta naquele final de noite de domingo – mais um domingo modorrento como são os domingos –, quando o interfone soou. O porteiro parecia aflito.
– Desculpe incomodar a esta hora, é que aquela senhorinha que mora aqui em frente está passando mal e pediu ajuda. Ela deu o número do celular da sobrinha, que é médica.
Ali tocou também a dura realidade: o flagelo da falta de instrução básica. O porteiro, senhor de idade já avançada, não conseguia se entender com os números que anotara, informava dez dígitos onde deveriam ser nove, eu tive que ir por dedução.
Antes de ligar para a tia da senhorinha, lembrei de uma experiência que vivi anos antes, quando, envolvido com um projeto cultural, tentei falar com a regente de um grupo coral religioso. Mesmo avisada por um padre que eu iria telefonar de São Paulo, ela simplesmente não atendeu minha ligação.
Sim, em algumas regiões do país, as pessoas não atendem ligações oriundas de celulares desconhecidos, principalmente de linhas habilitadas em São Paulo – meu caso – e Rio de Janeiro, temendo aqueles telefonemas agressivos dados por bandidos encarcerados tentando aplicar golpes.
Sempre me pergunto qual é a dificuldade de, ao constatar uma ligação indesejada, a pessoa mandar o interlocutor catar coquinhos, à puta que o pariu ou simplesmente desligar de pronto.
Por sorte, havia uma médica e uma dentista no apartamento, acostumadas a cuidar de pessoas. Por coincidência, a médica era amiga da tia médica da senhorinha, reconheceu o número de telefone que deduzi e ligou.
Descemos às pressas e nos surpreendemos com a senhorinha sentada na escadaria interna do nosso prédio. Providência do porteiro para protegê-la da rua afetada pelo risco da violência urbana que deformou a cidade outrora tranquila. Reclamava de sensação de enjoo. Decidiu-se levá-la ao pronto socorro.
Os homens do grupo nos encarregamos das providências de logística. Um foi buscar o carro na garagem; eu perguntei se a casa dela estava fechada. A senhorinha fez questão de atravessar a rua para ir trocar de roupa. Graciosamente, nos disse que não poderia sair de casa naqueles trajes domésticos.
As mulheres atravessaram a rua com ela, contando com a guarda dos dois homens. Entraram na casa, fecharam o cadeado do portão do pequeno alpendre. Preferimos garantir a privacidade feminina daqueles preparativos íntimos, ficamos na calçada prontos para correr de volta se aparecesse alguém inesperado. O porteiro estava atento aos nossos movimentos devidamente combinados com ele. Paranoia da insegurança, mas não custa prevenir. Ainda mais na modorra de uma noite de domingo, no vazio das ruas, no senso de oportunidade que isso gera. Numa sociedade onde até meninos aparecem armados e cruéis.
Nos disseram as mulheres, a casa é grande e surpreendente na extrema organização. Mérito da senhorinha de quase noventa anos, esperta demais para a idade. Que vive sozinha e que cuida de tudo. Inclusive dos seis gatos adotados, recolhidos das ruas, extremamente bem tratados e limpos. Todos muito bem acomodados em seus aposentos individuais, montados numa espécie de pombal.
Ficamos todos impressionados com a senhorinha. Naquela idade quase extrema, segue ágil, despachada, feliz, senhora da própria vida. E mesmo assim nós nunca tínhamos prestado atenção nela. Quase não nos demos conta de que ela vive ali a poucos passos, nada além de atravessar a rua.
A sobrinha médica chegou e levou a senhorinha para o hospital. Atendimento de praxe, exames, tempo de observação e foram dormir na casa da moça, soubemos depois. Amém!
Em poucos dias fui ao interior, ainda envolvido por aquela experiência de solidariedade, de estender a mão sem olhar a quem. E que nos fez tanto bem. No caminho da pousada, uma cena de gravar na memória. No alpendre simples, um casal de idosos certamente mais novos do que a senhorinha da noite de domingo. Sentados olhando para o nada, aguardando a hora do almoço. Cadeiras de balanço como aventura extrema, filhos e netos dependentes ao redor. Feriado enganando que há trabalho para todos. Escolas fechadas, como se ainda estivessem realmente abertas quando as portas não estão trancadas.
Mora ali o flagelo da baixa instrução, conheço bem a região para afirmar com dor. Décadas de uma política oficial de manter a maioria na ignorância, capaz de gerar uma horda de dependentes de favores pouco acima de esmolas. Direitos tratados como benefícios concedidos por bondade. E que gera costume, e que destrói tudo, geração a geração. E que segrega, e que fere. E que aparta de qualquer chance de futuro, de mudança verdadeira – não a das mentiras dos discursos. E que mata de vergonha ou vicia, como um jogo de azar de quem perde sempre. Mas há a precisão... De precisar. E que vence a vergonha de pedir.
Deixa essa criança chorar!
Deixa essa criança chorar?
Não adianta cara feia
Nem adianta se zangar
Qu’ela só vai parar
Quando essa fome passar
Ê, doutor, uma esmola
A um pobre que é são
Ou lhe mata de vergonha
Ou vicia o cidadão
Ê, sacode a poeira
Segui o tempo que faltava até a pousada com a imagem daquele casal revivida, passando como um filme na minha cabeça. Pelo menos, eram companheiros de sentar todos os dias naquelas cadeiras de balanço, mesmo sem conversar muito, mesmo com olhares perdidos, mesmo tendo uma vida inteira de sacrifícios enfrentada a dois, sem trégua.
Pensei no que aqueles dois poderiam ainda viver se soubessem ler! Haveria livros, revistas e jornais, a palavra escrita onde estivesse instalada. Como diversão, conforto, distração, meio de compreender a vida, de dar sentido melhor àquele tempo de simples esperar pela morte.
Teria servido para certamente melhorar aquela vida durante a vida que passou sob a cegueira da ignorância, atenuada apenas pelos truques de sabedoria popular aprendidos com os ancestrais – que também sumiram quase todos nas modernidades.
O sino da matriz da minha santinha me despertou, pôs de lado a minha dor com aquela agonia da barca dos homens. Marcados, despedaçados por uma vida, triste descendência repetida com a fé dos inocentes, quase sem chance para os inocentes que nascem descendentes à espera de um milagre!
Vejo com paixão as pedras incontáveis que resistem inertes à morte que não lhes enterra no solo verde deixado pelos reles chuviscos que deveriam ter sido chuva de inverno – que não veio no dia de São José e que não deverá mais vir este ano. Pedras que passaram o tempo da minha vida debaixo da água que foi embora, que agora se revelam murchas, imprestáveis para qualquer fecundação. Que talvez mergulhem de novo um dia, se Deus der bom tempo. Será apenas como Deus quiser – até as pedras aprenderam a repetir essa ladainha.
O sino da matriz da minha santinha nos convoca solene para a celebração da Semana Santa. O torvelinho cristão se põe a rodar misturando tudo, paixão e fé, dores e esperança de ressurreição vividas na grande dor de Nosso Senhor.
Seguimos agarrados na fé quase genética que aprendemos sem duvidar, até para manter a fé de que algo vai mudar para melhor algum dia. Entro no silêncio reverente carregando aquelas pedras inertes e ficamos todos quietos, quase inertes, ouvindo o som celestial do Filho do Homem que matamos pelo sofrimento que criamos. E que queremos rever no céu como recompensa pelo que não fizemos tanto.
Já bate o sino, bate na catedral
E o som penetra todos os portais
A igreja está chamando seus fiéis
Para rezar por seu Senhor
Para cantar a Ressureição
Enquanto passa a procissão
Louvando as coisas da fé
Velejar, velejei
No mar do Senhor
Lá eu vi a fé e a paixão
Lá eu vi a agonia da barca dos homens
Já bate o sino, bate no coração
E o povo põe de lado a sua dor
Esquece a sua paixão
Para viver a do Senhor
Pensei na senhorinha lépida que vive do outro lado da rua. Pensei no casal inerte em suas cadeiras de balanço que vive ali desde que eu era menino. Pensei no mistério da morte e Ressurreição do Senhor, que não tem data precisa exatamente porque vive todos os dias na nossa cegueira humana.
Pensei no sofrimento intenso e generalizado que mata devagarinho cada um de todos. Pensei nos coelhinhos de Páscoa que lambuzamos de chocolate para disfarçar nossa incapacidade de estender a mão, de dizer sim e não ao que precisa ouvir sim e não, que nos impede de ser irmãos professando qualquer fé ou descrentes.
Pensei na vontade de desejar boa Páscoa não apenas como gesto cristão. Como um afago humano a qualquer cristão que sequer saiba o que é ser cristão. Pensei seriamente em visitar a senhorinha lépida e o casal inerte. Apenas para dizer “Olá, como vai?”. Apenas para não ficar parado nesse sinal fechado emocional.
Pensei em deixar de ser inerte. Pensei em dizer sim e não! Pensei...


Trechos de:
Galope (Luiz Gonzaga Jr.)
Paixão e fé (Fernando Brant-Tavinho Moura)


9 comentários:

  1. Respostas
    1. Heraldo Palmeira02/04/2018, 14:27

      Antonio,
      Agradeço sua leitura e comentário.

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  2. Olá Heraldo,
    Triste seu texto.
    Como triste é a vida se pensarmos muito. Principalmente a velhice, que bonita, só nos filmes de Hollywood.
    Esse casal de velhos na varanda simples. Analfabetos. Privados dessas letras que nos despertam, nos sacodem e nos trazem mais vida e sabedoria.
    Mas... pensando bem, o que eu não deveria fazer e não sei como, não estamos nós, letrados e instruídos, também esperando a morte chegar? Cheios de planos e projetos, fingindo saúde e juventude só para nos distrair desse final inevitável porém desconhecido?
    E esses velhinhos na varanda, no PA,nos consultórios , nas ruas com carrinhos de recicláveis, que tambem são recicláveis só porque a gente quer acreditar. Porque, questão de tempo, vão parar no lixo poluindo do mesmo jeito.
    Seu texto me deixou assim, meio triste, imaginando, enquanto a Páscoa passa lá fora falando de ressurreição.
    Até mais.

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    1. Heraldo Palmeira02/04/2018, 16:53

      Ana,
      Sim, as tristezas da vida, que tem mesmo muito teor de tristeza. E a velhice é um período realmente complexo.

      Ao reclamar da impossibilidade da leitura daqueles casal de velhos na varanda, tive o outro lado da moeda diante de mim - a senhorinha do outro lado da rua. Certamente, a capacidade de leitura poderia trazer alguns confortos que certamente não mudaria o roteiro rumo ao final, mas acredito que poderia ajudar muito.

      E vou percebendo que tudo pode estar naquilo que conseguimos desejar. Até acreditar em algo pode ser uma forma de ser feliz. Vá saber! Até mais.

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  3. Moacir Pimentel02/04/2018, 19:43

    Mestre Heraldo,
    O filme de nome Amour com Emmanuelle Riva e Jean-Louis Trintignant, ambos irreconhecíveis oitentões, tão diferentes da garota linda de "Hiroshima, Meu Amor" e do macho alfa de "Um Homem e uma Mulher", me ajudou a perceber que a velhice é um lugar para os fortes e que isso nada tem a ver com corações alfabetizados ou não mas com uma força estranha que brilha por dentro e aceita com firmeza as realidades da idade e da vida. Do screenplay me persegue a cena na qual, depois do AVC da velha senhora, a filha do casal, coitada, tenta resolver o que não tinha solução, sugere esse e aquele curso de ação até que o velho pai lhe pergunta: “ Mas de que nos adianta o seu desassossego?”
    Não foi exatamente nesse momento do show, mas eu aprendi, por precisão e não por boniteza, a misturar compaixão e distanciamento. Não defendo a insensibilidade social nem pretendo padecer de desinteresse, mas há que viver o presente e dele tentar afastar a melancolia e nele aprender a conviver com a incerteza. Penso que não perdemos vida, mas pedaços da gente, tanto por fatores externos ao nosso querer quanto por escolhas conscientes na geografia cotidiana. A questão então é como perder-se melhor, como envelhecer mais dignamente, como suportar o familiar desaparecendo e continuar berrando como aquele personagem canalha do Bardo: "Dá-me vida!"
    Há que no trem viajar obedecendo à lei das direções: olhando para a frente, para poder continuar vendo os momentos de chegada. De resto concordo com a sua sábia BIC que o mesmo "afago" contido em um "Boa Páscoa", pode morar nos "Bom Dia" de cada dia.
    Abração

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    1. Heraldo Palmeira02/04/2018, 20:47

      Caríssimo,
      O casal representado no filme é europeu, a quem, parece, nunca faltou o básico para viver e envelhecer - como é comum aos velhos europeus de hoje, mesmo com os sacrifícios históricos sazonais que vivenciaram nas grandes guerras do século 20.

      Não desejei o (meu) desassossego para o velho casal plantado em suas cadeiras de balanço no alpendre, apenas sonhei que tivessem tido acesso às letras para, no mínimo, escapar da condenação de nunca ter chance nenhuma de ir além da espera, desde sempre, pela hora da morte. Queria que, ao menos, tivessem as letras que teve a senhorinha que vive do outro lado da rua.

      Afinal, os velhos do alpendre são pessoas que jamais compreenderão uma palavra sequer do que escrevemos aqui, uma cor das brilhantes páginas que você escreve sobre as artes. Não vejo desassossego em desejar-lhes acesso, sofro por eles a dor da ignorância que eles nem sabe que existe. Abração.

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  4. 1) Mais um bom texto de natureza humanista do nosso bom cronista Heraldo.

    2) Abraços !

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