As pedras da fé (fotografia Heraldo Palmeira) |
Heraldo
Palmeira
A rua do bairro residencial estava ainda mais quieta naquele final
de noite de domingo – mais um domingo modorrento como são os domingos –, quando
o interfone soou. O porteiro parecia aflito.
– Desculpe incomodar a esta hora, é que aquela senhorinha que mora
aqui em frente está passando mal e pediu ajuda. Ela deu o número do celular da
sobrinha, que é médica.
Ali tocou também a dura realidade: o flagelo da falta de instrução
básica. O porteiro, senhor de idade já avançada, não conseguia se entender com
os números que anotara, informava dez dígitos onde deveriam ser nove, eu tive
que ir por dedução.
Antes de ligar para a tia da senhorinha, lembrei de uma
experiência que vivi anos antes, quando, envolvido com um projeto cultural,
tentei falar com a regente de um grupo coral religioso. Mesmo avisada por um
padre que eu iria telefonar de São Paulo, ela simplesmente não atendeu minha
ligação.
Sim, em algumas regiões do país, as pessoas não atendem ligações
oriundas de celulares desconhecidos, principalmente de linhas habilitadas em
São Paulo – meu caso – e Rio de Janeiro, temendo aqueles telefonemas agressivos
dados por bandidos encarcerados tentando aplicar golpes.
Sempre me pergunto qual é a dificuldade de, ao constatar uma
ligação indesejada, a pessoa mandar o interlocutor catar coquinhos, à puta que
o pariu ou simplesmente desligar de pronto.
Por sorte, havia uma médica e uma dentista no apartamento,
acostumadas a cuidar de pessoas. Por coincidência, a médica era amiga da tia médica
da senhorinha, reconheceu o número de telefone que deduzi e ligou.
Descemos às pressas e nos surpreendemos com a senhorinha sentada
na escadaria interna do nosso prédio. Providência do porteiro para protegê-la da
rua afetada pelo risco da violência urbana que deformou a cidade outrora
tranquila. Reclamava de sensação de enjoo. Decidiu-se levá-la ao pronto
socorro.
Os homens do grupo nos encarregamos das providências de logística.
Um foi buscar o carro na garagem; eu perguntei se a casa dela estava fechada. A
senhorinha fez questão de atravessar a rua para ir trocar de roupa.
Graciosamente, nos disse que não poderia sair de casa naqueles trajes
domésticos.
As mulheres atravessaram a rua com ela, contando com a guarda dos dois
homens. Entraram na casa, fecharam o cadeado do portão do pequeno alpendre. Preferimos
garantir a privacidade feminina daqueles preparativos íntimos, ficamos na
calçada prontos para correr de volta se aparecesse alguém inesperado. O
porteiro estava atento aos nossos movimentos devidamente combinados com ele. Paranoia
da insegurança, mas não custa prevenir. Ainda mais na modorra de uma noite de
domingo, no vazio das ruas, no senso de oportunidade que isso gera. Numa
sociedade onde até meninos aparecem armados e cruéis.
Nos disseram as mulheres, a casa é grande e surpreendente na
extrema organização. Mérito da senhorinha de quase noventa anos, esperta demais
para a idade. Que vive sozinha e que cuida de tudo. Inclusive dos seis gatos
adotados, recolhidos das ruas, extremamente bem tratados e limpos. Todos muito
bem acomodados em seus aposentos individuais, montados numa espécie de pombal.
Ficamos todos impressionados com a senhorinha. Naquela idade quase
extrema, segue ágil, despachada, feliz, senhora da própria vida. E mesmo assim
nós nunca tínhamos prestado atenção nela. Quase não nos demos conta de que ela
vive ali a poucos passos, nada além de atravessar a rua.
A sobrinha médica chegou e levou a senhorinha para o hospital.
Atendimento de praxe, exames, tempo de observação e foram dormir na casa da
moça, soubemos depois. Amém!
Em poucos dias fui ao interior, ainda envolvido por aquela
experiência de solidariedade, de estender a mão sem olhar a quem. E que nos fez
tanto bem. No caminho da pousada, uma cena de gravar na memória. No alpendre
simples, um casal de idosos certamente mais novos do que a senhorinha da noite
de domingo. Sentados olhando para o nada, aguardando a hora do almoço. Cadeiras
de balanço como aventura extrema, filhos e netos dependentes ao redor. Feriado
enganando que há trabalho para todos. Escolas fechadas, como se ainda
estivessem realmente abertas quando as portas não estão trancadas.
Mora ali o flagelo da baixa instrução, conheço bem a região para
afirmar com dor. Décadas de uma política oficial de manter a maioria na
ignorância, capaz de gerar uma horda de dependentes de favores pouco acima de
esmolas. Direitos tratados como benefícios concedidos por bondade. E que gera
costume, e que destrói tudo, geração a geração. E que segrega, e que fere. E
que aparta de qualquer chance de futuro, de mudança verdadeira – não a das
mentiras dos discursos. E que mata de vergonha ou vicia, como um jogo de azar
de quem perde sempre. Mas há a precisão... De precisar. E que vence a vergonha
de pedir.
Deixa essa criança chorar!
Deixa essa criança chorar?
Não adianta cara feia
Nem adianta se zangar
Qu’ela só vai parar
Quando essa fome passar
Ê, doutor, uma esmola
A um pobre que é são
Ou lhe mata de vergonha
Ou vicia o cidadão
Ê,
sacode a poeira
Segui o tempo que faltava até a pousada com a imagem daquele casal
revivida, passando como um filme na minha cabeça. Pelo menos, eram companheiros
de sentar todos os dias naquelas cadeiras de balanço, mesmo sem conversar muito,
mesmo com olhares perdidos, mesmo tendo uma vida inteira de sacrifícios
enfrentada a dois, sem trégua.
Pensei no que aqueles dois poderiam ainda viver se soubessem ler!
Haveria livros, revistas e jornais, a palavra escrita onde estivesse instalada.
Como diversão, conforto, distração, meio de compreender a vida, de dar sentido
melhor àquele tempo de simples esperar pela morte.
Teria servido para certamente melhorar aquela vida durante a vida
que passou sob a cegueira da ignorância, atenuada apenas pelos truques de
sabedoria popular aprendidos com os ancestrais – que também sumiram quase todos
nas modernidades.
O sino da matriz da minha santinha me despertou, pôs de lado a
minha dor com aquela agonia da barca dos homens. Marcados, despedaçados por uma
vida, triste descendência repetida com a fé dos inocentes, quase sem chance
para os inocentes que nascem descendentes à espera de um milagre!
Vejo com paixão as pedras incontáveis que resistem inertes à morte
que não lhes enterra no solo verde deixado pelos reles chuviscos que deveriam
ter sido chuva de inverno – que não veio no dia de São José e que não deverá
mais vir este ano. Pedras que passaram o tempo da minha vida debaixo da água
que foi embora, que agora se revelam murchas, imprestáveis para qualquer
fecundação. Que talvez mergulhem de novo um dia, se Deus der bom tempo. Será
apenas como Deus quiser – até as pedras aprenderam a repetir essa ladainha.
O sino da matriz da minha santinha nos convoca solene para a
celebração da Semana Santa. O torvelinho cristão se põe a rodar misturando
tudo, paixão e fé, dores e esperança de ressurreição vividas na grande dor de
Nosso Senhor.
Seguimos agarrados na fé quase genética que aprendemos sem
duvidar, até para manter a fé de que algo vai mudar para melhor algum dia.
Entro no silêncio reverente carregando aquelas pedras inertes e ficamos todos quietos,
quase inertes, ouvindo o som celestial do Filho do Homem que matamos pelo
sofrimento que criamos. E que queremos rever no céu como recompensa pelo que
não fizemos tanto.
Já bate o sino, bate na catedral
E o som penetra todos os portais
A igreja está chamando seus fiéis
Para rezar por seu Senhor
Para cantar a Ressureição
Enquanto passa a procissão
Louvando as coisas da fé
Velejar, velejei
No mar do Senhor
Lá eu vi a fé e a paixão
Lá eu vi a agonia da barca dos
homens
Já bate o sino, bate no coração
E o povo põe de lado a sua dor
Esquece a sua paixão
Para
viver a do Senhor
Pensei na senhorinha lépida que vive do outro lado da rua. Pensei
no casal inerte em suas cadeiras de balanço que vive ali desde que eu era
menino. Pensei no mistério da morte e Ressurreição do Senhor, que não tem data precisa
exatamente porque vive todos os dias na nossa cegueira humana.
Pensei no sofrimento intenso e generalizado que mata devagarinho
cada um de todos. Pensei nos coelhinhos de Páscoa que lambuzamos de chocolate
para disfarçar nossa incapacidade de estender a mão, de dizer sim e não ao que
precisa ouvir sim e não, que nos impede de ser irmãos professando qualquer fé
ou descrentes.
Pensei na vontade de desejar boa Páscoa não apenas como gesto cristão.
Como um afago humano a qualquer cristão que sequer saiba o que é ser cristão.
Pensei seriamente em visitar a senhorinha lépida e o casal inerte. Apenas para
dizer “Olá, como vai?”. Apenas para não ficar parado nesse sinal fechado
emocional.
Pensei em deixar de ser inerte. Pensei em dizer sim e não!
Pensei...
Trechos de:
Galope (Luiz Gonzaga Jr.)
Paixão e fé (Fernando Brant-Tavinho Moura)
Bravo! Bravo!
ResponderExcluirObrigado, Suzy.
ExcluirSensacional.
ResponderExcluirAntonio,
ExcluirAgradeço sua leitura e comentário.
Olá Heraldo,
ResponderExcluirTriste seu texto.
Como triste é a vida se pensarmos muito. Principalmente a velhice, que bonita, só nos filmes de Hollywood.
Esse casal de velhos na varanda simples. Analfabetos. Privados dessas letras que nos despertam, nos sacodem e nos trazem mais vida e sabedoria.
Mas... pensando bem, o que eu não deveria fazer e não sei como, não estamos nós, letrados e instruídos, também esperando a morte chegar? Cheios de planos e projetos, fingindo saúde e juventude só para nos distrair desse final inevitável porém desconhecido?
E esses velhinhos na varanda, no PA,nos consultórios , nas ruas com carrinhos de recicláveis, que tambem são recicláveis só porque a gente quer acreditar. Porque, questão de tempo, vão parar no lixo poluindo do mesmo jeito.
Seu texto me deixou assim, meio triste, imaginando, enquanto a Páscoa passa lá fora falando de ressurreição.
Até mais.
Ana,
ExcluirSim, as tristezas da vida, que tem mesmo muito teor de tristeza. E a velhice é um período realmente complexo.
Ao reclamar da impossibilidade da leitura daqueles casal de velhos na varanda, tive o outro lado da moeda diante de mim - a senhorinha do outro lado da rua. Certamente, a capacidade de leitura poderia trazer alguns confortos que certamente não mudaria o roteiro rumo ao final, mas acredito que poderia ajudar muito.
E vou percebendo que tudo pode estar naquilo que conseguimos desejar. Até acreditar em algo pode ser uma forma de ser feliz. Vá saber! Até mais.
Mestre Heraldo,
ResponderExcluirO filme de nome Amour com Emmanuelle Riva e Jean-Louis Trintignant, ambos irreconhecíveis oitentões, tão diferentes da garota linda de "Hiroshima, Meu Amor" e do macho alfa de "Um Homem e uma Mulher", me ajudou a perceber que a velhice é um lugar para os fortes e que isso nada tem a ver com corações alfabetizados ou não mas com uma força estranha que brilha por dentro e aceita com firmeza as realidades da idade e da vida. Do screenplay me persegue a cena na qual, depois do AVC da velha senhora, a filha do casal, coitada, tenta resolver o que não tinha solução, sugere esse e aquele curso de ação até que o velho pai lhe pergunta: “ Mas de que nos adianta o seu desassossego?”
Não foi exatamente nesse momento do show, mas eu aprendi, por precisão e não por boniteza, a misturar compaixão e distanciamento. Não defendo a insensibilidade social nem pretendo padecer de desinteresse, mas há que viver o presente e dele tentar afastar a melancolia e nele aprender a conviver com a incerteza. Penso que não perdemos vida, mas pedaços da gente, tanto por fatores externos ao nosso querer quanto por escolhas conscientes na geografia cotidiana. A questão então é como perder-se melhor, como envelhecer mais dignamente, como suportar o familiar desaparecendo e continuar berrando como aquele personagem canalha do Bardo: "Dá-me vida!"
Há que no trem viajar obedecendo à lei das direções: olhando para a frente, para poder continuar vendo os momentos de chegada. De resto concordo com a sua sábia BIC que o mesmo "afago" contido em um "Boa Páscoa", pode morar nos "Bom Dia" de cada dia.
Abração
Caríssimo,
ExcluirO casal representado no filme é europeu, a quem, parece, nunca faltou o básico para viver e envelhecer - como é comum aos velhos europeus de hoje, mesmo com os sacrifícios históricos sazonais que vivenciaram nas grandes guerras do século 20.
Não desejei o (meu) desassossego para o velho casal plantado em suas cadeiras de balanço no alpendre, apenas sonhei que tivessem tido acesso às letras para, no mínimo, escapar da condenação de nunca ter chance nenhuma de ir além da espera, desde sempre, pela hora da morte. Queria que, ao menos, tivessem as letras que teve a senhorinha que vive do outro lado da rua.
Afinal, os velhos do alpendre são pessoas que jamais compreenderão uma palavra sequer do que escrevemos aqui, uma cor das brilhantes páginas que você escreve sobre as artes. Não vejo desassossego em desejar-lhes acesso, sofro por eles a dor da ignorância que eles nem sabe que existe. Abração.
1) Mais um bom texto de natureza humanista do nosso bom cronista Heraldo.
ResponderExcluir2) Abraços !