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Georges Braque dans son atelier, rue Caulaincourt à Paris, en 1911 - fotografia de Mariette Lachaud |
Moacir Pimentel
Depois de ter em apenas dois anos e juntamente
com Picasso quebrado o domínio da perspectiva renascentista, Georges Braque se alistou antes mesmo que a Primeira Guerra Mundial
começasse. “Levei Braque à estação de
trem e nunca mais o vi”, disse Picasso, metaforicamente, na velhice.
Na verdade eles seguiram caminhos
separados e, como acontece com muitos casais divorciados, raramente falavam um
com o outro e quando se encontravam a antiga intimidade não era
retomada. Porquê? Nunca saberemos porque os dois amigos jamais explicaram. Os
biógrafos ventilam variadas hipóteses mas é tudo achismo e ninguém sabe realmente
as razões do distanciamento dos pintores.
Braque recebeu duas condecorações por bravura em combate, mas em 1915 foi
seriamente ferido na cabeça e teve uma experiência de quase morte: perdeu a
consciência por dois dias, ficou temporariamente cego, foi operado e escapou por pouco de perder a visão e só conseguiu voltar a pintar em
1917, receoso de ter sido superado por aqueles que, como Picasso, continuaram a
criar durante a guerra. Ele nunca recuperou seu grande vigor físico nem o
gregarismo da juventude. e meio que se exilou, voluntariamente, na bela
Normandia, no norte da França.
Apesar dele ter sido, na minha opinião,
extremamente criativo e original como pintor, o genial trabalho de Braque jamais
foi devidamente reconhecido e continua sendo subvalorizado porque ele não tinha
uma personalidade vistosa e midiática, nem pintava de uma maneira provocativa
ou sensacional.
O que não significa que ele não tenha
perseguido até o fim as suas próprias visão do mundo e concepções
de criação, em uma obra que desafia a classificação por qualquer dos “ismos”
conhecidos. Suas complexidade visual, honestidade intelectual e nobreza espiritual
não eram as qualidades preferidas em uma época na qual os olhos eram
arrebatados pela demonstração contínua do gênio autorenovador de Picasso.
De fato, de 1909 até 1919, não apenas o
público interessado, mas especialmente os críticos, deram pouca atenção ao
trabalho de Braque, a quem eles consideravam um imitador e satélite de Picasso.
Com todas as evidências à nossa disposição hoje, podemos ver o quão errado foi e
continua sendo esse julgamento.
Durante os anos em que trabalharam
juntos, nem Braque nem Picasso pensavam em si mesmos como líder ou discípulo e a
grande conquista da dupla foi, sem dúvida, ter sido capaz de misturar e manter
sob controle suas personalidades competitivas enquanto se concentraram de todo
o coração em criar a quatro mãos uma nova linguagem pictórica.
O espanhol contava nas rodas dos cafés
de Paris que, quando Braque estivera entre a vida e morte tentara vê-lo no
hospital. Em vão! Uma enfermeira lhe explicara que não seria possível pois
Madame Braque proibira todas as visitas. Picasso então retrucara para espanto
da mulher: “Como assim? Eu sou Madame
Braque!” (rsrs)
Usando uma expressão do próprio
Picasso, foi do “casamento” desses
dois temperamentos, um francês e o outro espanhol, que resultou a sucessão de
invenções imprevisíveis que mantiveram o desenvolvimento da pintura cubista em
movimento. No entanto, cada um dos dois artistas tinha dons distintos que
inevitavelmente encontraram expressão. Enquanto pintaram próximos um do outro
os rapazes tiraram vantagem criativa da interação e das divergências dela mas suas
respectivas pinturas sempre tiveram um caráter individual que um olho atento
detecta. Ambos deram a seus quadros descritivos um caráter inconfundivelmente
pessoal.
Embora Picasso tenha cometido o grande
insight do Cubismo – as figuras espaço/tempo ao mesmo tempo de frente e de
perfil - foi Braque quem “cubolizou” as paisagens, introduziu as “certezas” – as
palavras e os números que funcionavam como pistas para o tema pintado – texturizou as telas e
cometeu a primeira colagem. Vistas em confronto com as pinturas cubistas do
espanhol, às vezes as suas telas parecem mais bem acabadas, serenas, líricas e
requintadas. Em compensação, Picasso surge mais produtivo, agressivo, temerário
e corajoso e surpreendente.
Não é exagero dizer que o “divórcio”
entre eles ocorreu em 1913, época em que cada um passou a fazer o seu próprio
Cubismo Sintético. Em seguida os dois deixaram a comunidade de Montmartre,
enriquecidos pelas experiências e descobertas que haviam compartilhado, mas
cientes de que diferenças inatas e a crescente maestria exigiam, naquele
momento, que cada um perseguisse sozinho o próprio desenvolvimento artístico.
Durante sua longa convalescença dos
ferimentos da guerra Braque repensou-se e à sua arte. Sua maior e mais
ambiciosa tela dessa época fecunda de auto-renovação e descoberta tem um
significado especial. Primeiro porque marca o final da década de ouro, durante
a qual o artista absorveu as lições de Cézanne e desenvolveu a linguagem cubista,
e, em segundo lugar, porque ela foi e é a última pintura na qual ele usou um
idioma cubista puro.
O pintor terminou a tela de nome La Musicienne depois de nove meses de
trabalho, no início do verão de 1918. Esse primeiro trabalho no pós-guerra combina
as formas geométricas planas e interligadas e sobrepostas do período analítico
com a cor e a maior legibilidade dos anos sintéticos. Ao pintar uma moldura de
enquadramento retangular em torno dessa figura feminina, Braque enfatizou tão
claramente seu achatamento que é como se estivéssemos olhando para a imagem de
uma rainha de carta de baralho.
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Georges Braque - La Musicienne (1918) |
Essa senhora braqueana tem uma silenciosa e sugerida majestade que evoca
aquelas madonas da Renascença que nos encaram de frente - aqui por trás de uma
máscara - mas cujos torsos são representados de lado. Porém essa criatura
musical em meio a espaços pontilhados de tinta, papéis de padrões diversos,
retalhos de tecido e muita textura, em vez de se ocupar com um instrumento de
cordas parece segurar o cabo de uma espada, como se fora uma Santa Joana d’Arc medieval.
A partir desse momento, aos trinta e
seis anos de idade, o talento de Braque reafirmou-se plenamente; sua pintura
tornou-se completamente pessoal e sua arte floresceu pelos próximos quarenta
anos em telas monumentais, porque quanto maior era a escala em que ele
trabalhava mais completa e brilhantemente ele criava.
Durante o resto de suas longas vidas, o francês e o espanhol em muitos
aspectos - especialmente em termos de estratégia profissional - tiveram pouco
em comum. Picasso foi um mestre da autopromoção, seja como pintor, desenhista,
gravador ou reinventor da escultura. Braque, muito ao contrário, jamais
perseguiu aplausos e fama. Sim, ele se afastou de Picasso mas não, ele nunca se
divorciou do cubismo que, para ele, era um assunto inacabado.
Quando o dominó geopolítico caiu após o assassinato do arquiduque Franz
Ferdinand da Áustria, em 1914, Picasso, por ser cidadão da neutra Espanha,
ficou fora da carnificina das trincheiras mas não conseguiu escapar da tristeza
de ver seu país adotivo dilacerado pela guerra.
Então, o nome de Picasso já era sinônimo de arte moderna, especificamente
do cubismo. O arquimodernista, portanto, chocou a todos em 1914 com o desenho
naturalista e neoclássico que fez do poeta Max Jacob, um dos seus poucos amigos
franceses que não foram afastados pela guerra. Mas como o pintor evitou o
rascunho do exército e da guerra, continuou sendo a mente central por trás de eventuais
visuais cubistas sintéticos.
Uma vez começada a Primeira Guerra Mundial, o significado anterior que
as cubices tinham de destruição, de energia primária e recomeço do zero mudou
completamente. A grande aventura cubista livre e desinibida acabou naqueles
anos de convulsão, quando a velha ordem parecia estar morrendo e muitos
artistas queriam vê-la morta. É preciso lembrar que sempre que alguém queria
rotular Picasso com um ismo qualquer, ele procurava uma nova saída (rsrs) Mas acontece
que durante o conflito mundial o artista estava mesmo dividido, definindo uma
estratégia que lhe permitisse reter a estrutura composicional do cubismo
enquanto introduzia elementos de representação naturalista. Parece que, antes
de olhar para frente, Picasso olhou para trás e viu o neoclássico Ingres (rsrs)
Ele continuou a oscilar entre estilos, não esquizofrenicamente, mas em
uma busca sincera de soluções para expandir seus horizontes enquanto escapava
de todos os limites. Os pierrôs e arlequim da montagem abaixo são exemplos
perfeitos da capacidade de Picasso de mudar de marcha e de consolidar novas
abordagens continuamente. A única constante é a procura de um jeito novo para
representar o mundo e as pessoas nele presentes.
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Pablo Picasso - Pierrot (1918) / Pierrot et Harlequin (1920) |
Cometidos no mesmo período, o tristonho pierrô à esquerda é mais
realista, mas a dupla cubista à direita, supostamente fria e sintética, explode
em cor e alegria e o pintor nos obriga a perguntar: qual é a imagem mais “real”?
Tudo o que Picasso queria era a liberdade de todas as ideologias, de todos os
dogmas, de todos os rótulos limitantes, a liberdade de ser e de descobrir o que
isso implica.
Foi no verão de 1921 que Picasso cometeu sua derradeira tela em idioma
cubista sintético puro sangue: Os Três
Músicos, dos quais ele pintou duas versões. A
maior das telas tem mais de dois metros de largura e /ou altura e mora no Museu de Arte Moderna de Nova Iorque. Ele pode ter decidido trabalhar assim em grande
escala porque sabia que o trabalho seria o monumento que marcaria a conclusão
da fase cubista, que o tinha sequestrado por quase quinze anos.
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Pablo Picasso - Les trois musiciens (1921) |
Muitos linkam essas imagens ao trabalho de Picasso para os Ballets
Russes e identificam os personagens como seus amigos bailarinos mais recentes.
Os trajes das figuras certamente derivam das tradições do teatro popular
italiano. Dizem que o pintor ficou encantado quando Gertrude Stein lhe contou
que finalmente entendera o que os três músicos significavam:
“Uma natureza morta!” (rsrs)
Picasso pintou três músicos construídos com formas abstratas planas,
coloridas e brilhantes, em uma sala rasa e semelhante a uma caixa. Do lado
esquerdo está um clarinetista, no meio um violeiro e, à direita, um cantor segurando
partituras. Note que o primeiro personagem de azul e branco, à esquerda, está
fantasiado de Pierrô– veja como ele segura o clarinete com as mãos. O do meio, de
amarelo e laranja, finge ser um Arlequim e à direita vemos um frade vestido de
negro.
Na frente do Pierrô mora uma mesa, sobre ela um cachimbo enquanto que
debaixo dela se esconde um cão, cujos focinho, barriga, pernas e cauda
espreitam por trás das pernas dos músicos. A sombra da sua cabeça, no entanto,
se projeta no ar e não na parede de fundo.
Como o palco castanho no qual os três músicos tocam, tudo nesta pintura
é feito de formas planas. Atrás de cada músico, o chão castanho claro está em
um lugar diferente, estendendo-se muito mais para o fundo, à esquerda do que à
direita. Ou seja, o chão e as paredes lisas que enquadram as figuras deixam a
sala de lado e inclinada, mas os músicos parecem firmes e mantém o equilíbrio.
É difícil dizer onde um deles começa e o outro termina, porque as formas que os
criam se cruzam e se sobrepõem, como se fossem recortes de papel.
Que me desculpem os sabichões mas ISSO além de uma obra prima é um poema
nostálgico, uma despedida dos dias de sol em Montmartre, dos velhos
companheiros, das gargalhadas, da alegria descuidada dos cabarés e dos circos,
da trilha sonora da juventude, dos seus primórdios artísticos, do cubismo da
gema parido no Bateau Lavoir.
Picasso está no centro da foto - como sempre de Arlequim! - e seus
amigos mais caros, o poeta Guillaume Apollinaire, morto em 1918, e Georges
Braque, de quem ele havia se distanciado, sentam-se cada qual de um lado.
Quem observa de longe as estradas separadas trilhadas por Picasso e
Braque encontra sim várias “coincidências” nos temas de suas tintas: músicos,
pintores e suas modelos, mulheres defronte dos espelhos e por aí vai que podem
significar que cada um deles mantinha o olho atento ao que o outro criava. Mas
quem estuda mais atentamente as obras dos velhos companheiros percebe que o
link entre esses dois criadores era mais profundo que seus títulos e temas. Para
ambos, por exemplo, o espaço de criação - seus estúdios! – era algo sacro e
inescrutável.
Ora, o ateliê de um pintor é em parte o seu refúgio e, em parte o seu
campo de batalha, o seu laboratório de alquimista. Dentro desse espaço sagrado,
o artista usa seus poderes para produzir ilusões e transformar materiais
físicos comuns em ouro criativo. O tema dos estúdios apareceu na arte ocidental
pelas mãos de Vermeer no século XVII e foi pintado magistralmente por Courbet na
metade do XIX, mas tornou-se universalmente conhecido graças à magnífica e
gigantesca tela de nome As Meninas, a obra prima do pintor espanhol Diego
Velázquez, na qual o pintor se auto retratou no seu atelier, no palácio do rei
da Espanha, enquanto pintava as infantas.
Sucede que essa pintura foi repaginada várias vezes por Picasso e pode ser que
o toureiro tenha tido outras motivações para se interessar por esse trabalho específico
do compatriota. Diz Dona Lenda que sempre que Picasso estava no sul da França
visitava o amigo britânico Douglas
Cooper, um historiador, crítico e colecionador de arte que vivia perto
de Avignon, no Château de Castille, que transformara em museu para sua imensa
coleção de arte moderna.
Ora, Cooper comprara uma tela pertencente à mais famosa entre as muitas “séries”
de Braque chamada “Estúdios”. O
colecionador narrou a John Richardson
- o principal biógrafo de Picasso – como o toureiro costumava ficar horas estudando
a tela, pendurada em lugar de honra acima da lareira do escritório do Château,
resmungando que não a entendia.
Nos seus “Estúdios”, durante
longos anos Braque pintou a parafernália de objetos que moravam no seu ateliê
normando, usando técnicas associadas tanto ao primeiro estágio analítico do
cubismo quanto à sua segunda fase sintética. As telas de Braque estão entre as
mais belas e originais representações já feitas de um estúdio de pintor.
Penso que tais misteriosos trabalhos do único parceiro que teve na vida
desafiaram o toureiro a recomeçar o velho diálogo artístico. Sim, Picasso
respondeu diretamente a Velázquez mas se dirigiu formal e indiretamente a
Braque com a sua própria série de variações e releituras das Meninas.
Em sentido horário, note na montagem abaixo e em detalhe a obra prima de
Velázquez e, à sua direita, a primeira das Meninas de Picasso. Se dividirmos a
versão do toureiro ao meio veremos que à direita e oriundos do território
velazqueano estão presentes a pequena princesa de branco e, ao fundo, o homem
na soleira da porta deixando a luz entrar para iluminar a cena. Mas constataremos
que todo o lado esquerdo da composição revisita o aparente caos dos Estúdios de
Braque, mais abaixo.
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Diego Vélasquez - Las Meninas (1657) / Pablo Picasso - Las Meninas (1957) Georges Braque - L'Atelier VI (1951) / L'Atelier II (1949) |
Porém, por mais que tentasse, Picasso não conseguia igualar a estranheza
elementar alcançada por Braque na sua obra tardia.
As obras dos dois são a prova de que o Cubismo não foi absorvido pela
história, não se tratou apenas de um movimento com sua própria lógica, um ponto
no caminho entre o Impressionismo e a Abstração. Para os seus pais fundadores
essa arte que abraçou a desordem e o caos para criar uma nova ordem pictórica permaneceu
irresistível. Até quase o final de suas vidas, Braque e Picasso continuaram a
construir grandes estruturas de tinta, impuras e híbridas, a partir de
fragmentos da natureza misturados com características cubistas, a meio caminho
entre o mundo conhecido e outras realidades alternativas que serão uma outra e
derradeira conversa.